Observatório Constitucional

Assimetrias no transconstitucionalismo: comparando dois casos

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18 de abril de 2015, 8h01

Há marcantes assimetrias entre  sistemas jurídicos confrontados com casos transconstitucionais. Elas apresentam diferentes níveis e formas. Isso pode ser visto como um resultado do fato de que certas ordens ou organizações jurídicas são predominantemente receptoras” e outras primacialmente “doadoras” de padrões jurídicos.[1]Também pode ser considerado como decorrente do fato de que algumas ordens ou organizações jurídicas, em vez de engajarem-se em "conversações" transconstitucionais, são  unilateralmente “convergentes”  ou “resistentes”  perante as soluções oferecidas  por outras.[2]  Mas  essa questão é passível de ser vista a partir de  uma perspectiva que leve em conta a força e solidez das ordens jurídicas envolvidas em relação à capacidade de influenciar e deixar-se  influenciar quando confrontado com  questões transconstitucionais. Concentrar-me-ei, neste artigo, em dois casos que  dizem respeito ao direito à participação política, um referente à Nicarágua (YATAMA v. Nicarágua), o outro relativo ao Reino Unido (Hirst v. Reino Unido), a fim de perguntar se é possível extrair deles algumas inferências sobre as diferenças básicas no que concerne às questões transconstitucionais.

YATAMA v. Nicarágua é um caso referente à participação democrática dos membros da comunidade indígena YATAMA, filiados a partido político homônimo, que foram proibidos de candidatar-se nas eleições municipais de 5 de novembro de 2000, por força de decisão do Conselho Supremo Eleitoral da Nicarágua.[3] A Corte Interamericana de Direitos Humanos não só condenou o Estado da Nicarágua a pagar indenização por danos materiais e não materiais, mas também ordenou que se procedesse à reforma da respectiva lei eleitoral, concluindo:

O Estado deve reformar a regulação dos requisitos dispostos na Lei Eleitoral nº 331, de 2000, declarados violatórios da Convenção Americana de Direitos Humanos, e adotar, em prazo razoável, as medidas necessárias para que os membros das comunidades indígenas e étnicas possam participar nos processos eleitorais de forma efetiva e levando em conta suas tradições, usos e costumes, nos termos do parágrafo 259 da presente Sentença.[4]

Este é um exemplo claro em que a ampliação de direitos fundamentais constitucionais encontrou apoio em norma da ordem internacional invocada para dirimir uma disputa: a própria compreensão do direito interno de cidadania ativa, matéria intrinsecamente constitucional, ficou vinculada a regulações internacionais, passando a depender da interpretação de um tribunal também internacional. Além disso, essa decisão foi integralmente cumprida e executada na ordem jurídica interna da Nicarágua. Atualmente, YATAMA (Yapti Tasba Masraka Nanih Aslatakanka: “Filhos da Mãe Terra”) é um partido muito ativo na política da Nicarágua, como se pode verificar em várias notícias e informações no seu website.[5]  A decisão do órgão eleitoral nicaraguense internamente competente para decidir sobre a formação e atividade dos partidos políticos foi praticamente anulada por um tribunal internacional. A questão pode ser interpretada de duas perspectivas: por um lado, pode-se levantar o argumento de que o cumprimento e a execução da decisão internacional surgiram a partir de uma capacidade de aprendizagem do Estado da Nicarágua;  por outro lado, pode-se argumentar que a postura “convergente” ou “receptora” da Nicarágua, neste caso, está mais relacionada à fragilidade desse Estado periférico na constelação da sociedade mundial, bem como a sua debilidade estrutural relativamente ao modelo do Estado democrático de direito.  Voltarei a este tema mais adiante. 

Voltando-nos, agora, para o outro lado do Atlântico, deparamo-nos com a decisão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos no julgamento do caso Hirst v. Reino Unido,[6] que remete a uma forma muito diferente de um Estado tratar um tribunal internacional de direitos humanos. O autor, um cidadão britânico, foi condenado por crime de homicídio culposo a uma “pena discricionária de prisão perpétua”, que, por um lado, implica a possiblidade de algo próximo a uma liberdade condicional ou da extinção da pena, mas, por ouro lado, a manutenção da prisão após um termo mínimo fixado para a pena [Post-Tariff], por força de algo aproximado a uma medida de segurança. Essa era a sua situação quando autor foi proibido de votar por força da seção 3 da Lei de Representação do Povo de 1983, mesmo depois que sua pena tinha expirado.  

O requerente entrou com uma ação no Tribunal Superior de Justiça da Inglaterra e País de Gales com base na seção 4 da Lei dos Direitos Humanos de 1998 (declaração de incompatibilidade), pedindo a declaração de que a disposição era incompatível com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos. No julgamento, em 4 de Abril de 2001, o Tribunal julgou improcedente o pedido do requerente de acordo a opinião conclusiva do Lord Justice Kennedy no que diz respeito à proibição geral de voto dos prisioneiros condenados, imposta pela seção 3 da Lei de Representação do Povo de 1983: 

No decorrer do tempo, essa posição pode modificar-se, quer através de uma sintonia mais fina, como recentemente foi feito em relação à prisão preventiva e outras, ou mais radicalmente, mas sua posição no espectro é claramente uma questão para o Parlamento, não para os tribunais. Isso se aplica até mesmo aos “casos difíceis” de prisioneiros condenados a pena perpétua discricionária após o termo mínimo da pena [Post-Tariff].

O argumento central de que apenas o Parlamento é competente nessa matéria, de modo que os tribunais não têm nada a dizer sobre o assunto, levou o requerente à última instância judicial europeia com competência para decidir sobre a sua pretensão, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Ele insistiu em requerer uma declaração de que a seção 3 da Lei de Representação do Povo de 1983 era incompatível com a art. 3º do Protocolo nº 1 à Convenção Europeia de Direito Humanos, que dispõe:


As Altas Partes Contratantes obrigam-se a organizar, com intervalos razoáveis, eleições livres, por escrutínio secreto, em condições que assegurem a livre expressão da opinião do povo na eleição do órgão legislativo.

Depois de uma Câmara da Quarta Seção do TEDH ter decidido, por unanimidade, que houve uma violação do artigo 3º do Protocolo nº 1 por meio da aplicação da seção 3 da Lei de Representação do Povo Europeu, a Grande Câmara, respondendo a recurso do governo britânico, confirmou essa posição, sustentando, por doze votos a cinco, que houve uma violação do artigo 3º do Protocolo n.º 1 e justificando esse entendimento principalmente nos seguintes termos:

…embora o Tribunal reitere que a margem de apreciação é ampla, isso não abarca tudo. Ademais, embora a situação tenha melhorado com a Lei de 2000, que pela primeira vez concedeu o voto a pessoas detidas preventivamente, a seção 3 da Lei de 1983 continua a ser um instrumento contundente. Ela retira do direito convencional de votar uma categoria significativa de pessoas e faz isso de uma forma que é indiscriminada. A disposição impõe uma restrição geral a todos os presos condenados enquanto ainda na prisão. Ela aplica-se automaticamente a esses prisioneiros, independentemente da duração da sua pena e independentemente da natureza ou gravidade de seu delito e suas circunstâncias individuais. Tal restrição geral, automática e indiscriminada a um direito convencional de vital importância deve ser vista como estando fora de qualquer margem aceitável de apreciação, o quanto ampla possa ser essa margem, e como sendo incompatível com o artigo 3º do Protocolo nº 1.[7]

Esta decisão ainda não levou a qualquer mudança na seção 3 da Lei de Representação do Povo de 1983. A Câmara dos Comuns antes reforçou o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual essa matéria pertence ao poder político do Parlamento, como em um debate ocorrido em 10 de fevereiro de 2011, no qual – “com vista a explorar a questão: não com o objetivo de modificar a lei” – “deputados votaram esmagadoramente a favor da manutenção da proibição geral do voto de prisioneiros e, além disso, a favor da visão de que a matéria deve ser decidida pelo Parlamento e não por um tribunal de justiça.”[8] Dessa forma, a posição do TEDH sobre o assunto foi propositadamente desafiada.

Mais tarde, o tema foi retomado pelo Supremo Tribunal de Justiça no julgamento do caso R (Chester) v. Secretary of State for Justice e McGeoch v. Lord President, tendo sido reiterada a posição sustentada no caso Hirst pelo Superior Tribunal de Justiça. Na ocasião, Lord Mance referiu-se à importância de um diálogo com o TEDH, mas parece que se trata de um diálogo mais relacionado com influenciar o último do que deixar-se influenciar por suas decisões, como se pode inferir a partir desta passagem de seu voto:

Em relação à autoridade consistente em uma ou mais decisões da Câmara simples, o diálogo com Estrasburgo pelos tribunais nacionais, incluindo a Suprema Corte, tem-se mostrado valioso nos últimos anos. O processo permite que os tribunais nacionais expressem as suas preocupações e, em um caso apropriado como R v. Horncastle, recusem-se a seguir a jurisprudência de Strasbourg, na confiança de que a expressão fundamentada de um ponto de vista nacional divergente vai levar a uma séria revisão da posição em Estrasburgo.[9]  

Lord Mance reconheceu, no entanto, que há limites a esta orientação:

Mas há limites para este processo, em especial quando o assunto já foi levado à Grande Câmara uma vez ou mais, como neste caso, duas vezes. Ter-se-ia, então, de estar envolvido algum princípio verdadeiramente fundamental do nosso direito ou algum descuido ou mal-entendido mais flagrante para que pudesse ser apropriado para este Tribunal contemplar uma recusa aberta de seguir a autoridade de Estrasburgo no nível da Grande Câmara. [10]              

Apesar dessa ressalva, a posição do Supremo Tribunal de Justiça não reverteu o entendimento anterior do Superior Tribunal de Justiça ao julgar a representação de Hirst. Algo novo relaciona-se antes à explicação do alcance da decisão do TEDH no julgamento dos casos Hirst (nº 2) e Scoppola, quando Lord Mance afirmou que “resulta claro tanto de Hirst (nº 2) quanto de Scoppola que, sob os princípios estabelecidos por esses casos, a proibição de votar será justificada em relação a um número muito significativo de presos condenados”.[11] No que diz respeito a este ponto, Adam Tomkins faz o seguinte comentário:

"De importância em Chester e McGeoch foi o fato de que, mesmo se o Parlamento alterar a lei para permitir que alguns presos condenados votem, ele certamente não alterará a lei – e não será certamente exigido pelo direito europeu dos direitos humanos a alterar a lei – de modo a estender a o direito a todos os presos condenados. Os condenados por crimes mais graves, e os condenados com os termos mais longos de prisão, vão continuar a ser marginalizados. Isto incluirá assassinos como os dois recorrentes no presente caso.[12]

Mas ele reconhece que “a decisão do Supremo Tribunal Federal em Chester e McGeoch deixa o direito como o Tribunal o encontrou”,[13] concluindo:

A decisão indesejada, imprudente e desnecessária em Hirst é deixada intacta; o direito europeu é mantido firmemente longe das agonias do direito dos prisioneiros de votar no Reino Unido; nenhuma declaração judicial definitiva do Reino Unido é oferecida para saber se (ou quais) presos condenados devem ser emancipados; o assunto é deixado para o Governo e o Parlamento. Nessa frente, o projeto de lei do Governo para definir o voto dos prisioneiros, publicado em novembro de 2012, continua o seu detalhado e demorado (morosidade?) exame pré-legislativo perante um comitê especialmente convocado no Parlamento. Se você pode suportá-la, acompanhe essa novela, enquanto a saga segue inexorável.[14]

De fato, a decisão do TEDH no caso Hirst, sustentando que a seção 3 da Lei de Representação do Povo de 1983 impõe uma proibição geral de votar aos presos condenados, que é incompatível com o art. 3º do Prototolo nº 1 à Convenção Europeia de Direitos Humanos, não produziu qualquer efeito na lei britânica após quase dez anos da decisão. O Judiciário britânico rejeitou pedidos individuais, alegando que o assunto é da competência política do Parlamento e do Governo. O Parlamento reage negativamente contra qualquer mudança na legislação que, sem discriminar os casos, proíbe de votar todos os prisioneiros condenados. A essa abordagem está subjacente a ideia de que a Câmara dos Comuns (representantes) expressa a “soberania do povo”. Além disso, na medida em que os tribunais não têm jurisdição sobre os litígios relativos a direitos reivindicados por razão de incompatibilidade das leis britânicas com o direito convencional europeu dos direitos humanos, deixando esse assunto exclusivamente para a luta entre partidos políticos no Parlamento e no Governo, pode-se argumentar que este ponto de vista está relacionado com uma teoria que eleva uma política supostamente democrática sobre qualquer modelo de rule of law. De acordo com este entendimento de uma “discrição” política ilimitada, o Parlamento britânico não está vinculado a nenhum direito, seja este nacional ou internacional. 

YATAMA v. Nicarágua e Hirst v. Reino Unido, com seus diferentes impactos nas respectivas ordens jurídicas e políticas nacionais, não mereceriam nenhuma atenção especial na perspectiva do transconstitucionalismo, se cada um caso fosse considerado isoladamente. Existe uma pluralidade de perspectivas das ordens constitucionais estatais em relação a suas colisões com as ordens jurídicas internacionais e outras ordens jurídicas. Isso decorre da estrutura heterárquica da sociedade mundial e dos arranjos multicêntricos dos processos jurídicos globais.


O problema ganha relevo quando comparamos as respostas e reações bem diversas que os dois estados deram, enquanto partes contratantes, a decisões fundamentadas em convenções internacionais de direitos humanos, nos níveis regionais correspondentes. Embora o julgamento do caso Yatama v. Nicarágua seja mais impressionante e nem tanto discutível, uma vez que se havia proibido “uma minoria étnica” de organizar-se como partido político e, portanto, de participar de eleições, enquanto o disposto no caso Hirst foi polêmico, como a opinião da minoria demonstrou, pode-se inferir que as diferentes reações internas a tribunais internacionais de direitos humanos estão associadas à assimetria dos respectivos países no arranjo de poder internacional. Há uma notável tendência de recorrer-se aos direitos humanos em detrimento da “soberania”, seja do povo ou do Estado, quando se trata de decisões que não foram cumpridas por Estados frágeis na constelação de poder internacional, ao passo que a “soberania” é o escudo usado pelos estados fortes na constelação de poder internacional quando confrontados com decisões dos tribunais internacionais que declaram a inconsistência da legislação estatal com as normas internacionais de direitos humanos. E Enquanto os primeiros, quando recalcitrantes, são expulsos da respectiva organização internacional ou compelidos a denunciar o tratado ou a convenção correspondente (para não falar dos casos de intervenção), os últimos tendem a permanecer na organização, embora persistindo em não cumprir as decisões ou normas em questão.

Essa assimetria contraria a dimensão normativa do transconstitucionalismo, na medida em que prejudica a disponibilidade para uma verdadeira aprendizagem recíproca entre as partes envolvidas em casos ou problemas constitucionais comuns. De qualquer maneira, o lado negativo dos entrelaçamentos constitucionais não nos deixa esquecer o desafio dos cada vez mais presentes problemas transconstitucionais, cujo processamento e cuja eventual solução não são de esperar-se em uma ultima ratio discursiva de um ponto de observação privilegiado, mas na precária racionalidade transversal não apenas de “diálogos” ou “conversações”, mas também de engajamentos conflituosamente construtivos com colisões. No entanto, isso exige uma ampliação de relações jurídicas e políticas simétricas (ou, no mínimo, menos assimétricas), ainda muito escassas na sociedade mundial hodierna, uma mudança improvável de ocorrer em um futuro próximo, a menos que nós apostemos nos potenciais emancipadores de uma “revolução” jurídica em jogo nos processos “evolutivos” globais.[15]

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).


* Os trechos citados de obras ou documentos originais em inglês foram traduzidos livremente pelo autor.   

[1] Cf. Baudenbacher, Carl. “Judicial Globalization: New Developments or Old Wine in New Bottles”. 38 Texas International Law Journal, pp. 505-26, p. 512.

[2] Jackson, Vicki C. “Constitutional Comparisons: Convergence, Resistance, Engagement”. 119 Harvard Law Review (2005), pp. 109-28.

[3] YATAMA v. Nicarágua – Série C, No 127 [2005] CIDH 9 (23 de Junho 2005).

[4] Ibid , § 275.1 (nesse ponto, o Juiz Montiel-Arguello divergiu).

[6] Case of Hirst v. Reino Unido (No 2) – 74025/01 [2005], 6 de outubro de 2005.

[7]  Ibidem, § 82.

[8] Turpin, Colin; Tomkins, Adam. British Government and the Constitution. 7a ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p. 81. O debate completo está acessível em http://www.publications.parliament.uk/pa/cm201011/cmhansrd/cm110210/debtext/110210-0002.htm (último acesso em 30 de janeiro de 2015).

[9] R (Chester) v. Secretary of State fo Justice e McGeoch v. Lord President [de 2013] UKSC 63, § 27.

[10]  Ibidem.

[11]  Ibidem, § 73. Cf. também os §§ 40 e 71.

[12] Tomkins, Adam. “Britisch Government ant the Constitution: Book Updates and News”, em https://britgovcon.wordpress.com/ (último acesso em 30 de Janeiro de 2015).

[13] Ibidem.

[14] Ibidem.

[15] A este respeito, ver Brunkhorst, Hauke. Critical Theory of Legal Revolution: Evolutionary Perspective. Nova York: Bloomsbury, 2014.

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