Consultor Jurídico

É preciso “mutatio libelli” para transformação de dolo em culpa

17 de abril de 2015, 8h00

Por Aury Lopes Jr., Alexandre Morais da Rosa

imprimir

Spacca
Infelizmente ainda se lê em muitos manuais de processo penal e também em acórdãos o seguinte reducionismo: o acusado se defende dos fatos e não da imputação legal. Com base nisso, são recorrentes as “desclassificações” de crime doloso para culposo com a invocação (errônea) do artigo 383 do CPP (emendatio libelli) e completa supressão do contraditório. Há uma surpresa argumentativa, desprovida de discussão democrática.

Mas existe esperança, não só pela resistência de boa parte da doutrina processual penal comprometida com a Constituição, mas também de julgadores conscientes da complexidade do tema. Iniciemos pelo seguinte acórdão do STJ, recentemente publicado, que rompendo com o senso comum, tratou de forma séria e correta do tema:

DIREITO PROCESSUAL PENAL. MUTATIO LIBELLI E DESCLASSIFICAÇÃO DO TIPO PENAL DOLOSO PARA A FORMA CULPOSA DO CRIME. Quando na denúncia não houver descrição sequer implícita de circunstância elementar da modalidade culposa do tipo penal, o magistrado, ao proferir a sentença, não pode desclassificar a conduta dolosa do agente – assim descrita na denúncia – para a forma culposa do crime, sem a observância do regramento previsto no artigo. 384, caput, do CPP. Com efeito, o dolo direto é a vontade livre e consciente de realizar a conduta descrita no tipo penal. A culpa, por sua vez, decorre da violação ao dever objetivo de cuidado, causadora de perigo concreto ao bem jurídico tutelado. A par disso, frise-se que, segundo a doutrina, “no momento de se determinar se a conduta do autor se ajusta ao tipo de injusto culposo é necessário indagar, sob a perspectiva ex ante, se no momento da ação ou da omissão era possível, para qualquer pessoa no lugar do autor, identificar o risco proibido e ajustar a conduta ao cuidado devido (cognoscibilidade ou conhecimento do risco proibido e previsibilidade da produção do resultado típico)”. Nesse passo, a prova a ser produzida pela defesa, no decorrer da instrução criminal, para comprovar a ausência do elemento subjetivo do injusto culposo ou doloso, é diversa. Assim, não descrevendo a denúncia sequer implicitamente o tipo culposo, a desclassificação da conduta dolosa para a culposa, ainda que represente aparente benefício à defesa, em razão de imposição de pena mais branda, deve observar a regra inserta no artigo 384, caput, do CPP. Isso porque, após o advento da Lei 11.719/2008, qualquer alteração do conteúdo da acusação depende da participação ativa do Ministério Público, não mais se limitando a situações de imposição de pena mais grave, como previa a redação original do dispositivo. Portanto, o fato imputado ao réu na inicial acusatória, em especial a forma de cometimento do delito, da qual se infere o elemento subjetivo, deve guardar correspondência com aquele reconhecido na sentença, a teor do princípio da correlação entre acusação e sentença, corolário dos princípios do contraditório, da ampla defesa e acusatório. REsp 1.388.440-ES, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 5/3/2015, DJe 17/3/2015.

Acertada a decisão, mas por que ainda existe resistência e reducionismo? O problema inicia pela adoção, por parte de muitos, do superado brocado (e sem qualquer base constitucional, todo o oposto) “narra mihi factum, dabo tibi ius”, segundo o qual, o réu se defende dos fatos aduzidos na acusação e não da capitulação jurídica. Essa posição é criticável, pois desconsidera que o acusado também se defende da imputação jurídica, tanto que obrigatoriamente deve constar da denúncia ou queixa (artigo 41 do CPP). É um reducionismo grosseiro do qual sobre o qual se debruça a ampla defesa. Mas, antes de entrar no tema, é crucial compreender:

— Fato natural = acontecimento da vida
— Fato penal = tipo penal
— Fato processual= fato natural + fato penal

Na emendatio libelli  não existem fatos novos, mas uma mera correção da tipificação legal. Não há aditamento, agindo o juiz de ofício quando da sentença. Para os que defendem a tese de que o réu ‘se defende dos fatos’, o juiz poderia atribuir uma definição jurídica diversa, ainda que, em consequência, tenha de aplicar uma pena mais grave.

O conceito de ‘fato processual’ é imprescindível neste tema, evidenciando que sua amplitude conceitual faz com que eventuais mudanças fáticas, irrelevantes para o direito penal, sejam totalmente relevantes para a definição do fato processual, exigindo cuidados para que se produza a mutação sem gerar uma sentença incongruente. A costumeiramente tratada como ‘mera correção da tipificação legal’ não é tão inofensiva assim, pois modifica o fato penal e, por conseguinte, o fato processual. A crítica é feita em três dimensões:

a) É reducionista e equivocada a visão de que o acusado se defende somente dos fatos, pois a ampla defesa também se ocupa da tipificação legal, havendo flagrante cerceamento a posterior modificação feita somente na sentença;

b) A maioria das situações em que se usa a emendatio libelli, não se trata de mera correção da tipificação, mas sim de desvelamento de nova situação fática a exigir aditamento e mutatio libelli (como sói ocorrer na mudança de crime doloso para culposo, etc.);

c) Trata-se de instituto que não resiste a uma filtragem constitucional, pois viola as regras do devido processo penal, especialmente no que tange ao princípio acusatório, ampla defesa, contraditório e princípio da correlação.

Mas, diante disso, é possível compatibilizar a emendatio libelli com a Constituição? Para isso, dois caminhos podem ser seguidos pelo juiz:

a) Consultar previamente as partes, em nome do princípio constitucional do contraditório, acerca da possível reclassificação do fato (a exemplo “del planteamiento de la tesis” do sistema espanhol); “

b) Intimar as partes, após a emendatio para que, em nome do contraditório, conheçam e se manifestem sobre a nova classificação jurídica do fato (havendo, inclusive, reabertura da instrução e novo interrogatório).

É claro que tais cautelas o aproximariam da mutatio libelli do artigo 384, mas esse é um caminho inafastável diante das exigências do devido processo penal. Por isso, estamos alinhados com aqueles que pregam a extinção de tal instituto.

Nessa linha, ao contrário do acórdão citado no início, é bastante comum vermos a mutação de doloso para culposo com o uso (errôneo) do artigo 383, quando o correto seria a mutatio libelli do artigo 384 com todas as suas exigências. É importante pontuar: a alteração da imputação que tenha como objeto o elemento subjetivo (dolo) ou normativo (culpa) exige a aplicação do artigo 384 com aditamento e contraditório.

Isso porque, tal mudança influi no campo processual­probatório, ou seja, ambos (dolo e culpa) são objetos de descrição na acusação e exigem a produção de prova para sua confirmação/negação. A mutação da acusação de doloso para culposo, ou vice­versa, decorre de fatos apurados na instrução, ou seja, de circunstâncias fáticas das quais está o juiz autorizado a extrair uma decisão neste ou naquele sentido. A recusa ao decisionismo faz com que o juiz tenha de fundamentar sua decisão (pelo crime culposo ou doloso) em cima de prova produzida no processo e, ainda, refutável pelas partes (exigência do contraditório e do sistema acusatório).

A rigor, não cabe a modificação de tipo doloso para tipo culposo sem mutatio libelli, com como rotineiramente se vê, por exemplo, no crime de receptação, ou, ao menos, a possibilidade de as partes previamente serem informadas dessa hipótese, para que se manifestem sobre a possível desclassificação. Mas essa modificação não ‘beneficia’ a defesa? Não.

Primeiro, o aparente “benefício” para o réu pode esvair‑se se considerarmos que ele foi condenado por uma imputação diversa, da qual não se defendeu e, principalmente, deveria ter­se permitido defesa em relação ao próprio crime culposo. Não há porque conformar­se com essa (pseudo) vantagem se considerarmos que o réu tem o direito de se defender da imputação de crime culposo e dela ser absolvido. Talvez, se lhe tivesse sido oportunizada essa defesa, sequer por crime culposo teria sido condenado.

Como explica Oliva Santos,[1] ainda que o resultado seja, em aparência, favorável ao acusado, o certo é que se lhe estaria condenando (com a mudança da tipificação) sem que tenha tido a oportunidade de opor­se. Ou seja, na essência, há violação do contraditório e cerceamento de defesa. Logo, há que se ter muita cautela nesse terreno e evitar reducionismos excessivos da problemática.

Em segundo lugar, porque o critério fundante da correlação não é o direito de defesa (ainda que seja muito importante), mas o contraditório, como bem se preocupou em explicar Badaró.[2] A regra da correlação é, antes de tudo, uma imposição do contraditório, para assegurar o direito de informação e participação das partes como fator legitimante da própria função jurisdicional. Basta recordar a síntese de Fazzalari: processo como procedimento em contraditório, sendo a decisão construída neste espaço do contraditório pleno.

A tese defensiva é uma resistência à pretensão acusatória, não alterando, portanto, o objeto, mas com ele mantendo uma relação de oposição. Sem embargo, a tese defensiva determina a relevância ou irrelevância processual de um dado fático que integra o objeto do processo.

Em suma: pensamos que o juiz não pode condenar o imputado, alterando as circunstâncias instrumentais, modais, temporais ou espaciais do delito, sem dar­lhe ampla possibilidade de defesa em relação a esse fato diverso daquele imputado inicialmente.[3] Mesmo que, aparentemente, a desclassificação de crime doloso para culposo, por exemplo, não gere prejuízo para o direito de defesa, essa leitura é superficial e desconsidera que o réu também tem o direito de se defender e (inclusive) ser absolvido da prática do crime culposo. Daí por que fundamental a mutatio libelli. Se não for feita a mutatio deve o acusado ser absolvido, pois a acusação não foi provada (ou o que foi provado não é aquilo que está na acusação…), sob pena de inevitável violação dos princípios da correlação, contraditório e ampla defesa.

De todas as formas, deve‑se dar ouvido à advertência de Malan[4]: caso esteja em dúvida se o fato naturalístico sofreu ou não alteração, deve resolvê‑la a favor da modificação, propiciando ao réu a maior amplitude defensiva possível, por injunção do princípio universal do favor rei. Se não modificar, a absolvição é medida que se impõe.


[1] OLIVA SANTOS, Andres et al. Derecho Procesal Penal, cit., p. 562.
[2] BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre Acusação e Sentença, cit., p. 125­‑127.
[3] BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre Acusação e Sentença, cit., p. 133.
[4] MALAN, Diogo Rudge. A Sentença Incongruente no Processo Penal, cit., p. 110.