Igualdade na democracia

Significado político e jurídico das ações afirmativas

Autor

  • Cleucio Santos Nunes

    é advogado e vice-presidente Jurídico dos Correios. Mestre em Direito pela Universidade Católica de Santos (UniSantos) doutorando em Direito pela UnB e professor nas áreas de Direito Financeiro e Tributário.

17 de abril de 2015, 6h19

­­No texto de minha autoria, intitulado Ações afirmativas deveriam ter iniciado desde a abolição da escravatura, publicado na ConJur no dia 5 de abril, anunciei que prepararia uma série de artigos objetivando abordar o tema da reserva de vagas no serviço público para negros. Este, portanto, é o segundo da mencionada série.

No artigo de abertura, basicamente argumentei que a necessidade de políticas de ações afirmativas no tempo presente, voltadas para aquela parte da população, guarda motivações históricas, especialmente em razão do longo período de escravidão no Brasil e o abandono dos escravos alforriados à sua própria sorte, desde a Lei Áurea, em 1888. A falta de políticas de apoio e integração do ex-escravo — tanto no campo quanto nos grandes centros urbanos que iniciavam sua formação — impôs ao liberto e a uma ampla gama de descendentes de escravos a necessária ocupação das periferias e favelas.

As causas mais evidentes das dificuldades de adequada inserção socioeconômicas do negro brasileiro desde o fim da escravidão residem, obviamente, no analfabetismo e na ausência de renda para sua sobrevivência. Não custa lembrar que a população negra trazida da África para o trabalho desumano e forçado no Brasil era proibida de se alfabetizar e o trabalho escravo tem por pressuposto a não retribuição financeira. Daí as carências de educação, renda e consequentemente de trabalho digno dos ex-escravos naquele período.

Longe de qualquer discurso sentimentalista, pretendi — e pretendo sempre — abordar o assunto de forma racional, buscando nos acontecimentos históricos explicação razoável à promoção de políticas corretoras dos erros passados a partir do pressuposto moral de que as condições precedentes à ocupação de cargos públicos por qualquer pessoa, independentemente de suas origens étnicas, devem ser, senão as mesmas, ao menos equivalentes do ponto de vista histórico. Se essa constatação não se confirma é papel do arranjo institucional estabelecido promover medidas reparatórias, que permitam atenuar as desvantagens vividas historicamente por parte de certo segmento populacional.

A relevância do direito para afirmação de políticas públicas
A previsão de cotas para acesso ao serviço público, sem dúvida, insere-se no que atualmente se conceitua como “ações afirmativas”. As ações afirmativas, de acordo com Guarnieri e Silva, “podem ser compreendidas como medidas de caráter social que visam à democratização do acesso a meios fundamentais – como emprego e educação — por parte da população em geral” (2007; 70).

As políticas públicas, por sua vez, desde o advento histórico da Constituição de 1988 vêm surgindo paulatinamente como reflexos de demandas sociais represadas. Seu suporte está cada vez mais dependente de estruturas jurídicas que se alojam no interior do Estado, só se libertando quando igualmente escoradas pelo direito (Bucci, 2013: 34). Por conseguinte, uma lei que reserve cotas para negros no serviço público concede à política pública a segurança jurídica necessária para sua efetivação como produto do debate profundo e democrático.

A importância do direito para a estabilidade de políticas protetivas de camadas da sociedade em situação de maior vulnerabilidade permite que a política se espraie por períodos mais duradouros, de modo que persistam até alcançarem suas respectivas finalidades, não se reduzindo a um simples programa governamental. O combate a toda forma de racismo é uma das metas do milênio, reconhecido em documentos jurídicos internacionais, conforme relata Ribeiro et al. (2008: 918). Lembro que a exclusão da população negra de certos benefícios econômicos e sociais, como as estatísticas estão a demonstrar, é forma sub-reptícia de racismo. E a discriminação de pessoas em razão da raça, como lamenta Arendt, nega “o princípio de igualdade e solidariedade de todos os povos, garantido pela ideia de humanidade” (2012: 236).

Os Estados Unidos possuem experiência nesse tipo de política pública exportada para diversos países que, assim como lá, amargam as consequências históricas e sociais do flagelo da escravidão. Dworkin, discorrendo sobre os direitos civis, sustenta que: “a principal contribuição dos Estados Unidos para a ciência política é uma concepção de democracia segundo a qual a proteção dos direitos individuais é uma pré-condição para essa forma de governo, e não uma solução de meio-termo” (2006: 239).

A noção de ações afirmativas para os estadunidenses está associada aos direitos fundamentais, especialmente à igualdade (Dworkin, 2011: 349). No fundo, a ideia de igualdade, seja ela de gênero, de raça, de origem ou de orientação sexual, pertence às pré-condições do conceito de democracia. Na medida em que as relações materiais e históricas não permitem que a igualdade como pré-condição constitucional se efetive, cabe ao regime democrático estabelecer as medidas para que a igualdade seja perceptível como experiência vivida. É possível que a igualdade resulte de instrumentos normativos ou de ações governamentais, mas isso não a desnatura como pré-condição de qualquer democracia e, ao contrário, passa a ser uma ratificação das condições essenciais do regime democrático.

A relevância da igualdade na democracia
A noção básica de democracia teria sido descoberta pelo povo grego, mais exatamente pelos atenienses, ainda no século V a.C e, segundo Dahl, “imaginaram [os gregos] um sistema político no qual os participantes consideram uns aos outros como politicamente iguais”. Além disso, governariam a si próprios em uma coletividade composta de indivíduos soberanos e com capacidades, recursos e instituições suficientes para tal governo (Dahl, 2012:1).

A hegemonia do discurso político-histórico do Ocidente apropriou-se do vocábulo democracia, reafirmando ao longo de mais de dois milênios que a experiência de governar por meio de representantes eleitos e mediante a participação direta ou indireta dos representados é uma criação ocidental e, descontando-se o longo período de regimes imperiais ou absolutistas, teria se firmado apenas na Europa e posteriormente nos Estados Unidos. Existem contestações à afirmação de que a democracia tenha inicialmente se consolidado somente no Ocidente. Amartya Sen explica que em várias civilizações do Oriente (para evitar o termo país em seu sentido atual) elegiam-se representantes e o debate dos interesses coletivos e religiosos era efetuado com os destinatários das ações públicas. Isso teria se dado nos primeiros séculos posteriores ao surgimento da democracia ateniense em lugares como Índia, Irã e antiga Báctria (2009: 364). Diferentemente do que ocorreu na Europa, onde a democracia somente se consolidou a partir de 1780 (Denn, 2005: 180).

Seja como for, tanto no Ocidente quanto no Oriente antigos, o ponto central do debate é a explicação de que o ideal de democracia não se resume ao direito de votar e ser votado em eleições secretas. Democracia envolve, substancialmente, o debate público de diversas questões controvertidas que revolvem interesses individuais, coletivos (da maioria ou de minorias) e de todos. Não ficam de fora dessa evidência dilemas morais emergentes, como a aplicação da igualdade em seus diversos espaços sociais e a discussão sobre o significado da justiça social. Neste caso, a justiça social decorre simplesmente do mérito individual, ou será que outros fatores arbitrários podem influenciar nos resultados da noção de justiça fundada na ideia de mérito?

Esse ponto é importante, pois, embora estejam consagradas no texto da Constituição Federal passagens que rumam ao centro da ideia de igualdade como negação de formas diretas ou indiretas de discriminação, ou ainda, com o sentido de distribuir bens e oportunidades a todos, a ideia de igualdade subjaz à noção radical de democracia como regime político, o qual pressupõe a participação do povo na tomada de decisões políticas. Isso abre margem a se compreender a igualdade em um sentido mais material e menos normativo, capaz de instruir e inspirar a construção de Constituições democráticas quer sejam escritas ou não.

No caso do Brasil, que adota a modalidade de constituição escrita, o fundamento para a igualdade entre as pessoas e que dá estrutura para as diversas políticas de ações afirmativas está presente nos objetivos da república, que são: (i) construir uma sociedade livre, justa e solidária; (ii) garantir o desenvolvimento nacional; (iii) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; (iv) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Esses objetivos se interligam em uma teia trançada com os fios dos ideais libertários defendidos desde a Revolução Francesa, de 1789. Assim, para garantir tais objetivos todos os esforços deverão ser empreendidos, eis que o Brasil é uma república federativa e se constitui como Estado Democrático de Direito, conforme declara o artigo 1º da Constituição Federal. Essa proclamação existe exatamente para que o país possa cumprir esses compromissos constitucionais lastreado no fundamento da igualdade.

Da (pré) condição democrática à efetivação da igualdade
Ao se (pré)comprometer a alcançar esses objetivos, a Constituição impõe às gerações futuras o dever de observá-los. Portanto, uma vez constatado que não foram alcançados meios para a efetivação da igualdade, compete ao Estado engendrar as condições para que isso ocorra. No mesmo sentido, nenhuma norma jurídica ou ação governamental poderá subsistir caso contrarie esses objetivos lavrados na forma de (pré)compromissos constitucionais. Elster explica que “as constituições políticas são dispositivos de pré-compromissos ou auto-restrições, criados pelos políticos para se proteger de suas próprias tendências previsíveis a tomar decisões pouco sábias” (2009: 119).

Os objetivos da república orientadores da criação de ações afirmativas de diminuição e erradicação dos efeitos deletérios do racismo possuem um sentido positivo e, à primeira vista, o conceito de (pré)-compromisso constitucional revela conteúdo restritivo (proibitivo). Mas, se bem entendido o conceito, dele podem ser extraídas outras compreensões. Explico: os deveres de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” convergem, a toda evidência, para “construir uma sociedade livre, justa e solidária e garantir o desenvolvimento nacional”. Isso significa que as gerações presentes e futuras não poderão deixar de observar esses objetivos e, igualmente, tais normas, em razão de seu indiscutível caráter de direito fundamental, não poderão ser objeto de emenda que tenda à sua abolição (Constituição Federal, artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV). Por outro lado, essa limitação de não abolir esse tipo de previsão constitucional revela um pré-compromisso que dá estabilidade para a consolidação de valores democráticos defendidos no momento em que a Constituição foi elaborada.

Em contraponto, uma das principais objeções apresentadas contra as políticas de cotas tem a ver com a imputação de responsabilidades da geração presente sobre os erros do passado. A resposta para essa argumentação poderia ser tão pueril quanto a sua proposição: a correção de qualquer erro é sempre uma ação futura, pois o erro pertence ao passado.

A questão adquire maior sedução intelectual quando o tempo percorrido para a consciência do erro se mostra prolongado e a tomada de decisão à sua correção, em se tratando de problemas de injustiça, depende da consciência moral a que a sociedade do momento se submete. Essa decisão é uma escolha política pautada em imperativos de consciência de que, em condições normais, não desejamos ao próximo o que repelimos a nós mesmos. Sandel, a propósito do tema, levanta a indagação se “temos obrigações apenas como indivíduos ou algumas obrigações nos são impostas como membros de comunidades com identidades históricas?” (2013: 212). Qualquer resposta a essa pergunta recairá em dilemas morais que dependerão de escolhas políticas, não importando resolver, a priori, se a escolha é certa ou errada, mas se é justa e consoante ao valor moral perseguido.

Isso remete ao papel da administração pública como agente — ainda que abstrato — da promoção de determinadas missões sociais. A administração pública estaria excluída da discussão moral de auxiliar na construção de uma sociedade mais justa e solidária?

Se a resposta a essa indagação for positiva, os argumentos contrários às cotas, como a impossibilidade de responsabilizar as gerações presentes pelos equívocos do passado, podem ser considerados procedentes. Por outro lado, se a resposta for negativa, reconhecendo o dever de todos à justiça social, a escolha moral a ser feita deverá endossar a implantação das cotas para negros no serviço público, isso como a contrapartida da administração a um problema que é de todos.

No próximo artigo abordarei o tema dos indicadores sociais relativos à população negra do Brasil. Os dados censitários que serão apresentados justificam uma atenção especial a esse segmento populacional que quantitativamente mais sofre com os menores níveis de indicadores sociais de desenvolvimento humano. Aliado aos fatores históricos mencionados anteriormente será visto que as ações afirmativas, tais como cotas universitárias e agora reserva de vagas no serviço público, são justificáveis em razão dos acentuados índices de subdesenvolvimento dessa parte da população.

Referências bibliográficas
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2013.

DAHL, Robert. A democracia e seus críticos. Tradução de Patrícia de Freitas Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

DUNN, John. Democracy: a history. Nova York: Atlantic Monthly Press, 2005.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

_____. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. Tradução de Marcelo Brandão Cipola. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

ELSTER, Jon. Ulisses liberto. Tradução de Cláudia Sant’Ana Martins. São Paulo: Unesp, 2009.

GUARNIERI, Fernanda Vieira; MELO-SILVA, Lucy Leal. Ações afirmativas no ensino superior: rumos da discussão nos últimos cinco anos. In: Psicologia & Sociedade. São Paulo, n. 19 (2). 2007, p. 70-78.

RIBEIRO, Matilde et al. Ações afirmativas: polêmicas e possibilidades sobre igualdade racial e o papel do estado. Estudos feministas. Florianópolis, n. 16(3), set/dez 2008, p. 913-929.

SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa. 12ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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    é advogado e vice-presidente Jurídico dos Correios. Mestre em Direito pela Universidade Católica de Santos (UniSantos), doutorando em Direito pela UnB e professor nas áreas de Direito Financeiro e Tributário.

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