Senso Incomum

O que querem estudantes e advogados de Pindorama? Ao menos sabem?

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16 de abril de 2015, 8h00

Spacca
caricatura lenio luis streck 02 [Spacca]A coluna da semana passada me chamou a atenção para uma questão relevante: o que pensam os alunos, os advogados, os juízes sobre o (futuro do) Direito? Tenho feito nesta revista eletrônica uma verdadeira cruzada em favor da democracia judicial. Como se faz democracia? Por exemplo: a) Estimulando a capacidade de indignação de estudantes e advogados; b) trabalhando diuturnamente contra o subjetivismo judicial; c) enfrentando o livre convencimento e a livre apreciação da prova; d) pugnando e propondo um ensino jurídico transformador e não reprodutor de uma cultura prêt-à-porter; e) estabelecer as condições de possibilidade de fazermos cumprir inovações do Código de Processo Civil (CPC) como a obrigação de as decisões terem coerência e integridade. Um dos pontos de estofo para todo esse empreendimento é ter consciência de que o novo CPC tem um papel simbólico (pensemos em Castoriadis e em Lacan) que transcende um mero texto legal. Isto porque, além de afastar o livre convencimento e estabelecer a coerência e a integridade como norma jurídica, institui mecanismos de fundamentação detalhada no artigo 489 (além da não surpresa no artigo 10).  Minha luta é cotidiana. Contra o solipsismo e a favor das garantias constitucionais. Sem tréguas. E a favor da advocacia. Como já fazia como Procurador de Justiça. Ser advogado nesse país é um exercício de cotidiana humilhação. É uma violência simbólica, como diriam Bourdieu e Passeron. Até o meirinho oprime. O prédio do Fórum oprime. Os tribunais engolem.  E o causídico vira suco.

Ajudei a tirar o livre convencimento do novo CPC, além de colaborar com outras conquistas como coerência e integridade e a não surpresa. Mas o mais importante é o rombo epistêmico que estamos provocando nas hostes do solipsismo pindoramense. Água mole em pedra dura… Estamos desmi(s)tificando as simplificações como “o juiz boca da lei morreu e agora vive o juiz dos princípios” ou “Kelsen e seu positivismo que separa direito e moral ou Kelsen e seu apego à letra da lei”. Estamos demolindo com teses do tipo “o positivismo expulsou a moral; agora o neoconstitucionalismo recupera isso por intermédio dos valores…”. Enfim, venho mostrando que, de viciados na lei (século XIX e, por aqui, no mínimo até a década de 80 por intermédio de uma dogmática carcomida e formalista), tornamo-nos viciados-em-nós-mesmos (por intermédio de voluntarismos dos mais variados naipes). E faço isso a partir da adaptação da tradução literal da palavra “solipsista”, que quer dizer, a partir da palavra alemã Selbstsüchtiger, “viciado-em-si-mesmo”. Tenho feito uma cruzada para mostrar que a maior praga do que resta da modernidade é o solipsismo. São os Humpty Dumpty’s da contemporaneidade, que, sem pudor, negam até mesmo o minimum semantic de um texto legal. No direito, o solipsismo foi inaugurado por Büllow. Ali esteve o ovo da serpente. Quem tem dúvida, leia os manuais que andam por ai. Leiam o que dizem sobre prova, sobre verdade, etc. É de chorar.

Também tenho feito uma cruzada contra as vulgatas, mormente as que se baseiam em Alexy. A ponderação à brasileira não passa de uma Katchanga Real (ler aqui). Dia a dia, tento mostrar a complexidade do fenômeno jurídico, travando uma luta sem fronteiras contra os “direitos mastigados”, “twitado”, “resumidinhos”, “simplificados”, “plastificados” e congêneres.

O que querem os juristas?
Mas, volto. E para dizer que a coluna da semana passada me deixou intrigado. O que querem os juristas? Escrevi contra o uso de regras de experiência (ler aqui). E fui bastante criticado. Incrível. Parece que parcela considerável da comunidade jurídica quer a volta das velhas ontologias (sem nem saber o que quer dizer essa palavra). E muitos se entregam ao fatalismo, dizendo algo como “isso é assim mesmo”. Tem comentaristas na ConJur que, sem entender um ovo do assunto, metem-se a falar. Isso quando não buscan cinco pies al gato. Nessa ânsia, chegam a ofender o articulista. Nem estou falando do nosso Saulo-do-Conjur, o já-folclórico-Praetor, que se esconde atrás de pseudônimo e tem um gozo a cada quinta-feira pela manhã. De minha parte, a ConJur devia vedar esse cripto-anonimato. Quem tem opinião faz como o Sergio Niemeyer e o Marcos Alves Pintar, que colocam até a OAB. Aliás, o anonimato é incentivado nas Faculdades de Pindorama, quando alunos preenchem formulários “avaliando” o professor sem precisarem declinar seus ricos e lindos nomes. Que feio isso. As faculdades incentivam pequenos delatores. Como um futuro jurista pode não assumir seus atos e suas criticas?

Assim é aqui na ConJur. Amontoam-se comentários frutos de mal-entendimentos e “aprofundamentos” da profundidade dos calcalhares-de-uma-formiga-anã-desnutrida. Lê-se parte da coluna (em fatias) ou de má-fé. Pinça-se uma frase. Ou se diz o clássico “o articulista desfila erudição, mas não apresenta soluções”, como que a repetir uma vulgata do que consta na 11ª primeira tese sobre Feuerbach (Marx): os filósofos até hoje interpretaram o mundo; está na hora de transformá-lo. Não preciso comentar que a frase tem contexto histórico. E nem de seu equivoco. Há também comentários e comentaristas que ignoram os 28 anos de Ministério Público do colunista, dizendo: ele não tem experiência prática. Ups. Só 28 anos de MP mais 5 de advocacia? Que inexperiente…

Para quem acha que “as-coisas-são-assim-mesmo” e que não devemos questionar o solipsismo, quero dizer que a luta contra os subjetivismos nos julgamentos não é implicância minha. Trato de questões científicas. Não é uma mera opinião. Por exemplo, posso provar que a LINDB é uma fraude. Posso demonstrar que a menção a princípios gerais do direito é um equívoco crasso. Posso demonstrar, como já fiz, que o uso da ponderação incrementou o decisionismo. Posso demonstrar isso tudo, como já o fiz em mais de uma dezena de livros que escrevi sobre esse assunto. E ao enfrentar o subjetivismo, trato da raiz do problema do livre convencimento, da exigência de coerência e integridade e da crítica à excrescência que é a ponderação e a regra de experiência. Faço essa crítica (e as demais) a partir de uma discussão filosófica-paradigmatica e demonstro o atraso da dogmática jurídica e do senso comum teórico que ainda é dominante no imaginário dos juristas. Basta ver a produção pequeno-gnosiologica que assola as salas de aula dos cursos de direito e dos cursinhos de preparação (e que pode ser vista nas bancas de fóruns e tribunais). A propósito, levemos o direito a sério: por vezes, alguns comentaristas se colocam como pândegos ou galhofeiros, na ânsia de seguirem a carreira de nosso preclaro “Saulo, Saulo”. Dia desses, fiz uma critica em que mais ou menos eu disse: fôssemos médicos, estaríamos confundindo a veia aorta com a mão torta. Ou “fôssemos médicos e não teríamos inventado a penicilina”. Disse isso para mostrar que não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa no direito. E um comentarista fulminou: esse articulista é ignorante, porque comparou a medicina ao direito. “São campos científicos diferentes”. Ah, bom. Não sabia. Sempre achei que um advogado poderia também exercer a medicina (afinal, todos são doutores! — o estagiário levanta a placa: sarcasmos do colunista!). Patético.

Na semana passada, além dos vários ataques pessoais, teve um comentarista que disse que eu acreditava em verdades ontológicas. Argh (onomatopeia). Leituras e leitores. Ora. Ora. E ora. Quem será que leu a coluna para o comentarista? E a nave vai.

Numa palavra final. Pergunto de novo — o que querem os juristas?
O que querem, efetivamente, nossos juristas (ou uma parcela considerável deles)? Querem seguir “quebrando o galho”, fazendo puxadinhos pequeno-gnosiológicos ou “lajes hermenêuticas”, lendo um manualzinho aqui, outro resumidinho ali, ou, de fato, pretendem algo para o futuro (seu, próprio e) do direito? Se sim, bem vindos. Vamos à luta. Democracia exige controle de decisões. Exige accountability. Constrangimentos epistemológicos. Mostrar que há interpretações corretas e/ou feitas na melhor luz do que outras. E ter em conta que o paradigma da intersubjetividade, conquista do século XX, é condição para desenvolvermos um direito democrático. Acreditar em fatalidades do tipo “juiz decide assim mesmo, não adianta” é entregar-se ao direito como um mero jogo de poder, em que o jurista-que-não-decide (porque não é magistrado) não tem qualquer importância. Afinal, se tudo isso é “assim mesmo”, os estudantes, advogados e doutrinadores são inúteis, de forma auto-declarada (“o direito é o que os tribunais dizem que é”, etc). Façam-me o favor… Se a maioria dos juristas pensa assim, que fique como está. É como o professor espertalhão que, em sala de aula, dispara: “— Não há verdades”. Se um aluno lhe diz: “— Então o senhor é um mentiroso”, estará  o aluno falando uma verdade. Sim, porque se não há verdades, isso que acabou de dizer não é verdade também…logo… Bingo!

Vamos, pois, à luta. Como diz meu amigo José Calvo Gonzalez, jusfilósofo da cepa e magistrado em Málaga, entre um gole e outro de cerveja 1825-Alhambra, num aprazível bar da costa espanhola: “— Não me preocupa que os juízes criem regras jurídicas; o que me preocupa é a total ausência de regras acerca de como eles criam regras”. Pensemos sobre tudo isso.

Bobbio e o labirinto
Norberto Bobbio descreve nossas possibilidades de ação a partir de três situações, que aqui adapto (usava isso já nos anos 90): a mosca na garrafa, o peixe na rede e o labirinto.  Uso-as para demonstrar a situação de um jurista em um país sem rumo, em um mundo jurídico pindoramense sem rumo. O jurista é como uma mosca na garrafa;  pensa que a garrafa é o seu mundo. A garrafa está fechada. A saída não depende de você. Depende de um fator exógeno. Esta é a saída autoritária. Depende de quem (des)tampa.

Tem também aquele que vê a humanidade como um peixe na rede. Ele está tão perdido como o peixe que cai na rede. Quanto mais protesta, sem rumo, mas se enreda na teia-sem-saída. Por isso, a saída é ficar bem quieto, para não se enredar mais. Bingo. Essa é a saída da alienação. É do jurista que diz “isso é assim mesmo”. “Regras de experiência são necessárias”. “Não adianta fazer elaborações doutrinárias mais sofisticadas — o que interessa mesmo é a prática…”.  E o peixe cai na rede e morre… pela boca.

Finalmente há quem considere estar a humanidade num labirinto. Ele sabe que há uma saída, embora ela não esteja clara e/ou bem definida. Este não tem a tampa; sequer sabe se, destampada a garrafa, terá forças para sair, até porque desaprendeu a voar. Tampouco tem o conformismo e o desalento do segundo (preso na rede). Esse terceiro tem a esperança de, com ela, poder encontrar a liberdade. Há uma saída, que está no final do labirinto. A tarefa é encontrá-la. A vantagem? Simples. A vantagem é que encontrar essa saída depende de nós.

E aqui, permito-me complementar a Bobbio com Antonio Machado, pedindo licença para ser simples e poético, sem qualquer vergonha de pieguice:

Caminhante, não há caminho; faz-se caminho ao andar; e ao olhar-se para trás, vê-se a senda por onde jamais se há de voltar a pisar; caminhante, não há caminho, “sino estellas en la mar”. “Estellas” são os rastros n’água que o barco deixa. Que se abrem, marcam o caminho, mas que logo de fecham. Há desvelamento e, logo, um velamento. Você tem de estar atento. Como diz Heidegger em Ser e Tempo: a interpretação é um roubo (Das Raub); uma apropriação de sentido. Você tem de ficar com essa res furtivae. Porque ela pode lhe escapar.

Tinha de dizer isso. É insuportável ver parte considerável do mundo jurídico pindoramense se afundando em um mar de mediocridade. E, pior: como o corsário alemão, afundando… e atirando. E, pior ainda, escolhem mal o alvo.

Numa palavra
Wittgenstein fez um prólogo para as suas Investigações que não foram editadas, que aqui parafraseio: este texto foi escrito para quem se aproxima amistosamente ao espírito com que foi escrito. Creio que este espírito é diferente ao da grande corrente dogmática-jurídica que domina o imaginário dos juristas. O espírito dessa corrente, cuja expressão é a análise a-paradigmática do direito e que rejeita sofisticações, é completamente alheio e distante do autor.

Post Scriptum 1: Fiz esta coluna entre Málaga onde fiz conferência   e Madrid, no trem. Nesta sexta-feira (17/4) faço a ponência de encerramento das Jornadas de Filosofia do Direito de Madrid (ver aqui), abertas por Peres Luño nesta quinta-feira (16/4). Segunda (20/4) estarei em Lisboa, para aula que ministrarei com meu amigo professor Jorge Miranda; e terça-feira (21/4) faço conferência sobre Hermenêutica e sua não regionalização no Congresso de Direito Ambiental. Agradeço Pepe Calvo Gonzalez, que recebeu a mim e a Rosane como reis em Málaga; aproveito para elogiar a organização da Aula Magna que proferi na Univali, onde homenageamos o grande Cesar Pasold; também agradeço a recepção do Zulmar Fachin, no Congresso em Londrina, onde, junto com Francisco Rezek, fiz a abertura; agradeço sobremodo à rapaziada do Diretório da UFSC que me recepcionaram para a Aula Magna que proferi (me emocionei voltando à UFSC); os meninos do Diretório se atrapalharam um pouco com o hotel e se atrasaram para me buscar no aeroporto, mas tudo bem; entendo os jovens; gracias também aos meninos e meninas do Diretório de Direito da UFPR, onde fiz Aula Inaugural lotada; obrigado também ao Ariel Koch, que capitaneou minha ida à Ritter dos Reis para a Aula Magna um dia antes de eu viajar para a Europa. Vamos peleando, meus amigos. Vamos peleando!

Post scriptum 2: Meto minha colher no debate sobre a menoridade aos 16 anos. O pior argumento me parece o que sustenta que “não dá para aprisionar jovens de 16 ou 17 anos porque as prisões são medievais”. Genial, não? Os presos com 18 anos ou mais podem apodrecer nas prisões, certo? Pior: gente do governo diz isso, à boca cheia. O Brasil é vanguarda mesmo. Com o estado das prisões e ninguém do governo preocupado com elas (o Ministro da Justiça chegou a dizer que, fosse preso, matar-se-ia — a mesóclise é minha), essa discussão soa ridícula no resto do mundo. O governo é contra? Que bom. Então comece amanhã a levar a sério o sistema prisional de Pindorama. Caso contrário, teremos que, paradoxalmente, aumentar a idade penal para 21 ou 25 ou 30… Ou terminar de vez com o encarceramento. Aliás, essa pode ser a linha argumentativa governamental… A tese do governo é como o paradoxo do queijo suíço: o melhor queijo é o suíço; ele é melhor porque tem furos; quanto mais furos, melhor o queijo; logo, quanto mais furos, melhor queijo, menos queijo. Consequentemente, quanto mais furos o queijo tiver, alcarcar-se-á o queijo ideal-fundamental : o não-queijo! O queijo ideal é "só furos". Bingo! O sistema prisional ideal é o não-sistema! É o sistema sem prisão! Perfeito: façamos uma emenda aumentando a idade penal para 75 anos. É a PEC da maioridade penal do grau zero prisional! Para fechar: Gosto dos paradoxos governamentais: tem um Ministério que cuida dos Direitos Humanos…e Pedrinhas é um modelo para o mundo. Como diz o vendedor de bugigangas da orla marítima, “fala sério, chefia”. Ah: adoro também os argumentos contidos na tal PEC: invocação da Bíblia. Ótimo, meu irmão. Aleluia. Mas, digam-me: Qual parte da Bíblia? Do Deuteronômio? E qual o Deus? O irado e ciumento do Velho Testamento? Chamem o vendedor de bugigangas. Ou, como dizia o título de um livro do Fausto Wolf: matem o cantor e chamem o garçom.  

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