Paradoxo da Corte

Subsídios para a interpretação da coisa julgada em mandado de segurança

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14 de abril de 2015, 10h45

No âmbito do direito, um elemento indispensável da segurança jurídica, como se sabe, é a força da coisa julgada dos pronunciamentos judiciais, significando que uma decisão que adquire tal status não mais pode ser impugnada pelos instrumentos jurídicos ordinários. “O processo se encontra terminado: Roma locuta, causa finita” (cf. Arthur Kaufmann, Filosofía del derecho, tr. cast. da 2ª ed. alemã de 1997, Bogotá, Univ. Ext. de Colombia, pág. 349).

Com efeito, há certos institutos jurídicos que são predominantemente informados pela exigência de segurança e de certeza do direito. É o que se verifica, e. g., no atinente à norma que fixa a maioridade (e a capacidade para o exercício de direitos); àquelas regras que estabelecem prazos de prescrição e de decadência; que exigem determinadas formalidades para a validade ou para a prova de certos atos jurídicos; que procuram proteger a confiança ou a fé pública. Igualmente, um instituto como o da coisa julgada (insuscetibilidade de ataque às decisões judiciais transitadas em julgado) visa essencialmente a pôr um ponto final nos litígios.

A imutabilidade que passa a exornar o conteúdo decisório da sentença de mérito transitada em julgado, como expressivo e peculiar fenômeno do processo de conhecimento, tem por escopo, de um lado, obstar à eternização dos litígios e, de outro, garantir a paz social, prestigiando a segurança jurídica, ainda que em detrimento da própria justiça!

No entanto, estabelecendo que o pronunciamento judicial não extravasa os limites da lide (artigo 468), cuja configuração vai encontrar-se na resposta ao pedido formulado pelo autor (regra da congruência: artigo 128), o vigente CPC acompanhou a orientação restritiva, pela qual a autoridade da coisa julgada cinge-se ao dispositivo da sentença, não abrangendo, portanto, as questões prejudiciais e tampouco os motivos que serviram de alicerce à decisão (artigo 469).

Deste modo, por exemplo, a improcedência do pedido formulado em ação anulatória de escritura pública de reconhecimento de filiação não impede o sucessivo ajuizamento de ação declaratória de inexistência da relação de paternidade, fundada na ausência do vínculo biológico, a ser demonstrada por prova pericial hematológica. E isso, porque, como explica Ada Pellegrini Grinover (Limites objetivos da coisa julgada, Informativo Incijur, 10, 2000, pág. 6), "o objeto do processo instaurado pela ação anulatória, de um lado, e o objeto do processo sucessivo, de outro lado, são diversos, de tal sorte que os limites objetivos da coisa julgada formada em torno daquele provimento não abarcam os limites do objeto do processo da ação declaratória subsequente". 

Essa mesma situação também se verifica, em várias hipóteses, na esfera da ação de mandado de segurança, na qual a coisa julgada que recai sobre sentença mandamental de improcedência do pedido, pode não interferir na ação de cognição exauriente que busca, por exemplo, a declaração de nulidade de um ato administrativo.

Na verdade, a teor do disposto no parágrafo 6º do artigo 6º da Lei 12.016/2009: “O pedido de mandado de segurança poderá ser renovado dentro do prazo decadencial, se a decisão denegatória não lhe houver apreciado o mérito”.

Ademais, preceitua o subsequente artigo 19 que: “A sentença ou o acórdão que denegar mandado de segurança sem decidir o mérito, não impedirá que o requerente, por ação própria, pleiteie os seus direitos e os respectivos efeitos patrimoniais”.

Assim, sempre que a respectiva sentença não transitar materialmente em julgado, o interessado poderá impetrar sucessivo mandado de segurança ou, ainda, ajuizar ação de cognição plenária, sobretudo se esta caracterizar-se por diferente ou mesmo por pedido mais amplo.

O reconhecimento de que o impetrante não possui “direito líquido e certo” não o impede de buscar tutela jurisdicional sobre a mesma relação jurídica por meio de outra ação na qual se possa produzir a prova que é vedada no âmbito do procedimento do mandado de segurança (v., nesse sentido, Alfredo Buzaid, Do mandado de segurança, vol. 1, cit., pág. 251 e segs.; Hely Lopes Meirelles, Mandado de segurança, 26ª ed., São Paulo, Malheiros, 2003, pág. 107 e segs.).

É, aliás, o que enuncia a Súmula 304 da jurisprudência dominante no STF, no sentido de que: “Decisão denegatória de mandado de segurança, não fazendo coisa julgada contra o impetrante, não impede o uso de ação própria”.

Ao ser declarada a inexistência de direito líquido e certo do impetrante, em particular, pela impossibilidade de produzir prova idônea, além da documental, o respectivo pronunciamento judicial, em determinadas situações, deixa entrever que paira controvérsia jurídica sobre os argumentos expendidos pelo impetrante, circunstância esta que demandaria dilação probatória, não autorizada em sede de cognição estrita do procedimento do mandado de segurança.

Seja como for, como bem aduz Marcus Claudius Saboia Rattacaso, a decisão que declara a inexistência de direito líquido e certo do requerente não passa de sentença terminativa, qualquer que seja o seu rótulo, afirmando, apenas, que o mandado de segurança não se presta para tutelar o pedido do impetrante, tal como deduzido na petição inicial e nos documentos que a acompanharam (Comentários à nova lei do mandado de segurança, obra coletiva, São Paulo, Ed. RT, 2010, pág. 259. V., ainda, Cássio Scarpinella Bueno, Mandado de segurança, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 2009, pág. 191).

José Miguel Garcia Medina e Fábio Caldas de Araújo (Mandado de segurança coletivo e individual – Comentários à Lei n. 12.016, de 7 de agosto de 2009, São Paulo, Ed. RT, 2009, págs. 199-200), a seu turno, também asseveram que, no domínio do mandado de segurança, de um modo geral, a sentença denegatória, não atingirá o grau de decisão de mérito, mas, sim, de sentença terminativa; esclarecendo que: “Um dos requisitos para ingressar com o mandado de segurança é a demonstração de direito líquido e certo sobre o objeto do litígio. Se a prova documental é insuficiente, ou não é hábil para realizar esta demonstração, o mandado de segurança não é o instrumento adequado e útil para veicular o pedido de tutela jurisdicional”.

Examinando esta questão na seara do direito tributário, Hugo de Brito Machado entende que a sentença que denega a segurança não faz coisa julgada material, podendo o impetrante rediscutir a questão “pelas vias ordinárias” (Mandado de segurança em matéria tributária, São Paulo, Dialética, 2006, pág. 195).

Registre-se que este mesmo posicionamento tem prevalecido em nossos tribunais.

Realmente, a 2ª Turma do STJ, no julgamento do Recurso Especial n. 855.353-SP, de relatoria da Ministra Eliana Calmon deixou assentado que: “Denegada a segurança do primeiro mandado de segurança impetrado pelo ora recorrente com o intuito de realizar compensação tributária em razão de entender o Órgão Julgador não estar demonstrado o direito líquido e certo, não há falar-se em formação de coisa julgada material, porquanto não apreciado o mérito propriamente dito do mandamus”.

 A mesma 2ª Turma, ao apreciar os Embargos de Declaração no Recurso Especial n. 1.022.257-RS, relatado pelo Ministro Castro Meira, decidiu que: “A denegação da segurança por ausência de direito líquido e certo não impede a repropositura da ação, por não ter sido enfrentado o mérito da impetração, não fazendo, portanto, coisa julgada material, mas apenas formal…”.

Secundando tal orientação, a 22ª Câmara Cível do TJ-RS, no julgamento da Apelação n. 70055937817, patenteou, textual: “A denegação do mandado de segurança anterior, por ausência de prova pré-constituída não implica a impossibilidade da renovação do pedido através de nova demanda, porque ausente a coisa julgada…”.

Importa salientar que, para o correto diagnóstico da natureza da sentença, sempre será necessário examinar a respectiva fundamentação do julgado para verificar-se se foi ou não atingido o mérito do mandado de segurança.

É de Kelsen a exortação no sentido de que a interpretação é necessária à aplicação de toda e qualquer norma jurídica, incluindo-se “as normas individuais, de sentenças judiciais, de ordens administrativas, de negócios jurídicos…” (Teoria pura do direito, vol. 2, Coimbra, Armênio Amado, 1962, pág. 284).

A interpretação de um ato decisório constitui uma operação mental que visa a entender o sentido intrínseco da decisão. Esse processo intelectual deve, pois, responder qual a vontade da norma individualizada e a sua respectiva extensão no mundo fático.

Como todo texto escrito — segundo precisa colocação de Dinamarco —, “a sentença ou acórdão é composto de palavras, que são símbolos convencionais pelos quais o redator procura expressar ideias. Para captar-lhe o significado e intenção, é indispensável buscar o significado desses símbolos e a ideia que eles expressam, seja isoladamente, seja no contexto da redação. Tanto quanto a lei, a sentença precisa sempre ser interpretada. Intérpretes das sentenças são o próprio vencedor e o vencido, os tribunais que julgam recursos interpostos contra elas, ações rescisórias etc., bem como o juiz que dirige sua liquidação em busca do alcance quantitativo das decisões e aquele que comanda a execução…” (Instituições de direito processual civil, vol. 3, 6ª ed., São Paulo, Malheiros, 2009, pág. 707-708).

Este raciocínio implica que, do ponto de vista de sua estrutura interna, a motivação da decisão, concebida como uma operação lógica do juiz, apresenta-se como verdadeira justificação das circunstâncias fáticas e jurídicas que determinam a individuação das razões de decidir (cf., a propósito, Michele Taruffo, La motivazione della sentenza civile, Padova, Cedam, 1975, pág. 213 ss.).

Os motivos da sentença ou do acórdão têm por escopo imediato, de um lado, iluminar e tornar compreensível a parte dispositiva da decisão, e, de outro, permitir o controle crítico do ato decisório, para a exata determinação do conteúdo da vontade do juiz e, consequentemente, para a verificação dos limites do julgado.

Assim, em tema de exegese da sentença, não se interpreta o dispositivo de forma isolada, dissociada dos fundamentos de decidir. O julgado, antes de tudo, é um texto que deve ser interpretado de forma que suas ideias se mostrem, o mais possível, um conjunto coerente e harmonioso, inclusive com eventuais decisões precedentes proferidas ao longo do processo.

Enfrentando esta mesma questão de hermenêutica, importante julgado do Supremo Tribunal de Justiça português, no julgamento do Recurso de Revista n. 356/02, decidiu que: “a interpretação das sentenças obedece às regras da interpretação dos negócios jurídicos”, firme na seguinte argumentação: “para interpretarmos corretamente a parte decisória de uma sentença temos de analisar os seus antecedentes lógicos que a tornam possível e a pressupõem, dada a sua íntima interdependência. A interpretação da sentença exige, assim, que se tome em consideração a fundamentação e a parte dispositiva, fatores básicos da sua estrutura. De realçar, ainda, que, embora o objeto da interpretação seja a própria sentença, a verdade é que nessa tarefa interpretativa há que ter em conta outras ‘circunstâncias’, que funcionam como ‘meios auxiliares de interpretação’, na medida em que daí se possa retirar ‘uma conclusão sobre o sentido’ que se lhe quis emprestar…”.

Sobre esta temática, como se observa, há entendimento uníssono, no sentido de que, para a interpretação das decisões, o método sistemático é o mais indicado, segundo o qual as palavras utilizadas em uma passagem do pronunciamento com um claro significado sejam lidas, em outra passagem ou mesmo em outra decisão subseqüente, com a mesma compreensão (cf. Vittorio Denti, L’interpretazione della sentenza civile, Studi delle scienze giuridiche e sociali, t. 28, Pavia, A. Garzanti, 1946, pág. 47-48; A. Chizzini, Sentenza nel diritto processuale civile, Digesto delle discipline privatistiche – sezione civile, 4ª ed., Torino, Utet, 2008, pág. 274).

Daí, porque, em conclusão, se o acórdão confirma a sentença monocrática, é necessário verificar qual o âmbito de abrangência daquele em relação a esta, para o fim de, a um só tempo, compreender o sentido do ato decisório colegiado e, ainda, no âmbito do sistema desenhado no CPC, verificar qual a extensão subjetiva e objetiva da coisa julgada.

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