Delação premiada

Felizmente, em respeito à Constituição, o problema é o processo

Autores

  • Gamil Föppel

    é advogado professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) pós doutor em Direito Penal pela USP doutor em Direito pela UFPE e membro das comissões de Reforma da Lei de Lavagem de Dinheiro do Código Penal e da Lei de Execução Penal nomeado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado.

  • Rudá Santos Figueiredo

    é advogado e professor. Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Ciências Criminais pelo Juspodivm-IELF.

14 de abril de 2015, 6h01

“O estado está se valendo da cooperação de um delinqüente, comprada ao preço de sua impunidade, para ‘fazer justiça’, algo que o direito penal liberal repugna desde os tempos de Beccaria”[1].

A expressão “delação premiada”, no Brasil, tem adentrado o imaginário popular, sendo entendida como ato de investigado de declinar, à investigação, supostos co-autores ou participantes de delitos, a fim de que obtenha diminuição de pena ou extinção de punibilidade.

Na legislação, a “delação premiada” é também denominada, em conveniente eufemismo, de “colaboração premiada” e, efetivamente, expressa causa de diminuição de pena ou de perdão judicial, que deve ser aplicada como decorrência de colaboração do acusado ou investigado, que tenha por consequência a elucidação da autoria do fato, ou outras consequências desejadas pelo Estado.

O prêmio ao delator é previsto — e tem se vulgarizado — em diversos diplomas normativos, a demonstrar a absoluta incapacidade que as instituições formais têm de investigar fatos puníveis. Não bastassem todos os meios de prova invasivos (e de constitucionalidade questionável, registre-se) como prisão temporária, um sem número de quebra de sigilos, agentes infiltrados, etc, o Estado ainda precisa se valer deste discutível meio para buscar a prova de crimes: a premiação a um réu (ou investigado) colaborador.

Os defensores da medida investigativa evitam chamá-la pelo nome que lhe cabe “delação” para se valer do vocábulo “colaboração”, como se uma rosa com outro nome pudesse ter o mesmo perfume. Efetivamente, isso não basta para resguardar a delação de todos os problemas a ela subjacentes. Seria uma mera fraude de etiquetamento.

Efetivamente, no mais das vezes, os defensores da medida sempre aludem a utilitaristas e “eficientistas” fundamentos, concernentes à pretensa contribuição da delação para elucidação dos fatos ou ataca os pensamentos distintos, atribuindo-lhes, acriticamente, a pecha de insertos em leitura enviesada das garantias dos indivíduos.

É dizer, vale-se da distinção que existiria, em maniqueísmo, consoante enxergam, entre o garantismo penal integral e o garantismo hiperbólico monocular, distinção esta engendrada por Douglas Fischer et alli, que menciona, literalmente:

Precisamos ser sinceros e incisivos (sem qualquer demérito a quem pensa em contrário): têm-se encontrado muitas e reiteradas manifestações doutrinárias e jurisprudenciais com simples referência aos ditames do “garantismo penal”, sem que se compreenda, na essência, qual a extensão e os critérios de sua aplicação. Em muitas situações, ainda, há distorção dos reais pilares fundantes da doutrina de Luigi Ferrajoli (quiçá pela compreensão não integral dos seus postulados). Daí que falamos que se tem difundido um garantismo penal unicamente monocular e hiperbólico, evidenciando-se de forma isolada a necessidade de proteção apenas dos direitos dos cidadãos que se veem processados ou condenados. Relembremos: da leitura que fizemos, a grande razão histórica para o surgimento do pensamento garantista (que aplaudimos e concordamos, insista-se) decorreu de se estar diante de um Estado em que os direitos fundamentais não eram minimamente respeitados, especialmente diante do fato do sistema totalitário vigente na época. Como muito bem sintetizado por Paulo Rangel,(4) a teoria do garantismo penal defendida por Luigi Ferrajoli é originária de um movimento do uso alternativo do direito nascido na Itália nos anos setenta por intermédio de juízes do grupo Magistratura Democrática (dentre eles Ferrajoli), sendo uma consequência da evolução histórica dos direitos da humanidade que, hodiernamente, considera o acusado não como objeto de investigação estatal, mas sim como sujeito de direitos, tutelado pelo Estado, que passa a ter o poder-dever de protegê-lo, em qualquer fase do processo (investigatório ou propriamente punitivo).[2]

Esta construção, efetivamente, com as devidas licenças, criou o ato de acusar hiperbólico monocular, pois onde há uma tese inconstitucional e violadora de direitos individuais, há pretensas justificativas legitimadoras, calcadas no interesse de uma desconhecida coletividade, que, ao fim e ao cabo, tem também solapados direitos, como o de, por exemplo, não ser preso para confessar ou não ser condenado com base em provas ilegais, direitos estes que vêm sendo constante e sistematicamente atacados. A prisão cautelar atende a finalidades específicas, dentre as quais não se pode, definitivamente, imaginar a necessidade de obter confissão. Prisão cautelar para obter ou extrair confissão ou delação premiada é um verdadeiro desvirtuamento da cautelaridade no processo penal.

Efetivamente, é preocupante que o Ministério Público apresente, neste momento, como sugestões ao legislador, um pacote de “dez medidas anticorrupção”, dentre os quais está proposta para que provas ilegais sejam utilizadas em processo, desde que os benefícios decorrentes de seu aproveitamento sejam maiores que os custos[3]. Parece impossível que o órgão fiscal da lei proponha um “ajuste nas nulidades penais”, em que se deve “restringir as nulidades processuais a casos em que são necessários” e “introduzir o balanço de custos e benefícios”. Acaso seria uma “modulação de nulidades”? Intolerável, francamente intolerável…

Reitere-se, obviamente, que todas as ponderações produzidas neste texto são relacionadas a ideias. Nada há de pessoal em relação aos autores dos artigos aqui considerados para que se promova o debate acadêmico.

Impressiona que se tenha a intenção de realizar o atropelamento do processo para obter condenações ou de sopesar os custos e benefícios de ilegalidades, para que se combatam outras pretensas ilegalidades. Em um sistema tal, mesmo a tortura para obtenção de provas seria permitido, acaso o benefício fosse suficiente, ao menos nas penas e tintas de alguém que se auto-intitulasse portador da palavra do “garantismo integral”.

Registre-se, sem que disso se extraia qualquer juízo de valor, a coincidência histórica de o Ministério Público lançar tais medidas em quadros coloridos em verde amarelo, em período próximo em que o professor Sergio Moro, adjunto de processo penal na prestigiada UFPR, juntamente com Antônio Cesar Bochenek publicou artigo em que defendem que “O problema é o processo”.

O problema é o processo, diria um processualista?

Claro. O problema é o processo. O problema é presunção de inocência. O problema é que juízes, investigadores e acusadores precisam ver as condenações perecerem em razão de nulidades pelo Estado causadas. O problema não é que o Estado atue de maneira ilegal, mas que a ilegalidade seja declarada. As nulidades não são criadas pelas defesas: as nulidades, quando existentes, precisam ser declaradas e reconhecidas, sem que se pense em uma míope visão utilitarista. O eficientismo a todo custo faz com que se enxergue no processo não um meio para a obtenção da verdade; mas um óbice ao desejo de que o direito penal seja imediatamente funcional. Preocupa, pois, que, no âmbito doutrinário, se sustente uma mitigação das regras processuais, como do devido processo legal e da presunção de inocência:

Sem embargo de propostas de alterações do Direito Penal, o problema principal é óbvio e reside no processo. Não adianta ter boas leis penais se a sua aplicação é deficiente, morosa e errática. No Brasil, contam-se como exceções processos contra crimes de corrupção e lavagem que alcançaram bons resultados. Em regra, os processos duram décadas para ao final ser reconhecida alguma nulidade arcana ou a prescrição pelo excesso de tempo transcorrido. Nesse contexto, qualquer proposta de mudança deve incluir medida para reparar a demora excessiva do processo penal[4].

A proposta de solução defendida no artigo pelos autores do texto, subvertendo a presunção de inocência, é a prisão com a sentença condenatória, proposta que é, efetivamente, carente de qualquer fundamento constitucional. Na verdade, pretendem fazer uma releitura da presunção de inocência, para esvaziar, definitivamente, a sua importância:


 

 

 

A melhor solução é a de atribuir à sentença condenatória, para crimes graves em concreto, como grandes desvios de dinheiro público, uma eficácia imediata, independente do cabimento de recursos. A proposição não viola a presunção de inocência. Esta, um escudo contra punições prematuras, impede a imposição da prisão, salvo excepcionalmente, antes do julgamento. Mas não é esse o caso da proposta que ora se defende, de que, para crimes graves em concreto, seja imposta a prisão como regra a partir do primeiro julgamento, ainda que cabíveis recursos. Nos Estados Unidos e na República francesa, dois dos berços históricos da presunção de inocência, a regra, após o primeiro julgamento, é a prisão, sendo a liberdade na fase de recurso excepcional[5].

 

Olvida-se, com isso, do direito ao duplo grau de jurisdição veiculado na Convenção Americana de Direito Humanos, de que é signatário o Brasil e ignora a constatação que é exposta em seu próprio artigo. No entanto, a liberdade para recorrer, no sentir dos autores do ensaio, deve ser exceção:

Não se ignora, por evidente, a possibilidade do erro judiciário e de eventual reforma do julgado, motivo pelo qual se propõe igualmente que as Cortes recursais possam, como exceção, suspender a eficácia da condenação criminal quando presente, por exemplo, plausibilidade do recurso. Mas a exceção não invalida a proposição[6].

Diz o magistrado Sergio Moro, no texto feito em conjunto com também magistrado Antônio César Bochenek, que a Lei atual pressupõe o erro na 1ª instância, que seria exceção, para veicular a regra de que se deve recorrer em liberdade. Inobstante, o que se tem, em verdade, é a tutela à liberdade e o cuidado para que não seja ela ceifada em hipóteses ainda que excepcionais. A lógica que parece exposta pelo magistrado é, em outras palavras, de que: vale restringir a liberdade de alguns inocentes condenados, em nome do bem geral. Tal posicionamento, contudo, é manifestamente inconstitucional e ilegal. Aliás, professor de processo penal que é, sua excelência deseja, em verdade, repristinar os efeitos da redação originária do vetusto Código de Processo Penal de inspiração em Rocco, que previa a prisãocomo efeito automático da condenação, sem que se analisasse qualquer requisito de cautelaridade.

Não sem razão, diante de tais pontos, Luiz Flávio Gomes teceu o seguinte comentário acerca do artigo lavrado por Sérgio Moro e Antônio Cesar Bochenek:

Devagar com o andor porque o santo é de barro. O juiz de primeiro grau da operação "lava jato" Sergio Moro e Antônio César Bochenek (presidente da Associação dos Juízes Federais – Ajufe) acabam de rasgar publicamente a Constituição brasileira, queimando, ao mesmo tempo, tal como fazia a Inquisição católica contra as “bruxas” nos séculos XV-XVIII, a Convenção Americana de Direitos Humanos. A proposta surreal deles é a seguinte: “atribuir à sentença condenatória de primeiro grau, para crimes graves em concreto (sic), como grandes desvios de dinheiro público (sic), uma eficácia imediata, independentemente do cabimento de recursos” (Estadão 29/3/15). Fiquei arrepiado e de cabelo em pé com a descabelada e inoportuna ideia, gritantemente inconstitucional e inconvencional.[7]

Curiosamente, “o processo” de que tanto se fala e, especificamente, a “operação” da vez, denominada “lava jato”, foi objeto, ao menos indiretamente, de mais um recente artigo — datado de 02 de abril de 2015, em Folha de S.Paulo, desta feita produzido por orocuradores da República integrantes da “força-tarefa da operação 'lava jato'”[8]. Mais um artigo que pode, mesmo que não intencionalmente, insuflar e alimentar a denominada opinião pública. Efetivamente, o processo, que “é o problema”, é também o espetáculo, em que se joga para a “torcida” e em que se espera que prevaleça a máxima Vox populi, Vox dei (a voz do povo é a voz de deus), que tanto prevalecera no antigo Coliseu.

Efetivamente, àqueles que porventura tenham transgredido o ordenamento deve ser imposta a justa pena, mas o que se está a discutir é o atropelamento de garantias e do processo. Obviamente não se faz e nem se defende uma ode à impunidade. Mas este, o processo, é, exatamente, “o problema”. E problemas devem ser solucionados, driblados ou obliterados.

Assim, etiqueta-se de preventiva a prisão com caráter de necessidade de acautelar o processo, mas, sem que se faça juízo de valor acerca das prisões efetivadas, mesmo porque não se tem acesso à integralidade dos procedimentos correlatos, se percebe a partir de tal artigo que as prisões podem derivar de um conjunto de presunções, tais como, presunção de que os investigados continuariam a delinquir, acaso soltos, ou exerceriam influência para turbar a investigação.

Historicamente, já houve casos em que se faz do problema, ou melhor, do processo, espetáculo, e, por isso, é necessário esclarecer previamente as regras do jogo à plateia, porque, (des)afortunadamente, ainda existem regras, ainda existe jogo e, neste jogo, não se pode fazer do acusado mero espectador ou delator. Sem que se comente qualquer caso concreto, força é convir em que a prisão preventiva não pode restar calcada em presunções e também não pode se justificar nos crimes já cometidos, daí porque o fato de existir, pretensamente, crime de lavagem, não pode ser suficiente para ensejar a prisão preventiva: devem existir elementos novos e concretos que denotem que, a partir daquele momento, acaso permaneçam soltos, os investigados continuarão a delinquir, máxime quando já foram ouvidos e já foram realizadas medidas de busca e apreensão nas empresas em que atuam.

Em tal cenário, haverá um tempo em que não sobrará um investigado nesse procedimento que não terá feito delação. Aliás, qual o limite da delação? Quem se responsabilizará por selecionar quem pode ou não delatar? Apenas terá a oportunidade de dedurar aquele que for investigado mais cedo ou se admitirá, enfim, que a delação é um instituto de seletividade, através do qual os órgãos de investigação e acusação selecionam quem deve ser processado e escolhem os delatores para, beneficiando-os, para colher duvidosos elementos de informação em desfavor de certas pessoas.

Com efeito, antes de analisar sob o prisma dogmático, sobreleve-se que a delação premiada é o reconhecimento da absoluta e manifesta falência do sistema investigativo estatal. Em uma época em que os recursos tecnológicos avançaram tanto, permitindo a lei acesso a dados bancários, telefônicos, fiscais; permitindo a realização de grampos e monitoramento ambiental (captação de qualquer tipo de sinal de imagem e de som em qualquer tipo de ambiente); autorizando a lei até mesmo a infiltração de agentes policiais, bem como medidas ainda mais incisivas, como a busca e apreensão e a prisão temporária (excrescência inconstitucional vigente no ordenamento interno[9]; determinando a lei que empresas e pessoas físicas estejam compelidas a notificar movimentações suspeitas (instituto chamado de whistleblowing, que se insere nas estruturas de compliance); facultando a lei à autoridade policial o retardamento da prisão em flagrante (o que se chama, tecnicamente, de ação controlada), é inexplicável, que, diante de uma miríade de meios investigatórios, as agências de controle ainda precisem da cooperação premiada de um sujeito com comportamento desviante. É dizer, utilizar-se de um criminoso para combater o próprio crime é, a um só tempo, valer-se de um meio de questionável padrão ético, confessando, ao mesmo tempo, que o Estado não teve capacidade para identificar e comprovar a autoria e a materialidade de fatos puníveis.

Não se deslembre, aliás, que a coqueluche da delação premiada pode, ao fim, representar uma cômoda e cândida forma de buscar meios de prova sem que se empreenda a necessária prudência de buscar a prova por outros meios. Não se quer imaginar, com efeito, que as pessoas comecem a desvirtuar o instituto, transformando-o em um ordinário meio probatório como sucedâneo à custódia cautelar.


 

 

 

Além de tudo isso, a delação é medida de duvidosa moralidade (moralidade que é um dos princípios basilares do ordenamento constitucional), tendo em vista que o Estado se vale da palavra de um investigado para condenar os demais e, em uma troca de concessões, propor-lhe penas mais brandas ou, até mesmo, a extinção da punibilidade pelo perdão judicial.

 

A preocupação em tais dispositivos se centra em obter a colaboração de um agente em concurso, para que haja libertação do sequestrado em hipótese de extorsão mediante sequestro. Nessa linha, o fundamento de tais normas não é precipuamente a elucidação do delito, a pretensa “verdade real”, mas estimular a colaboração com a finalidade de tutelar o bem jurídico-penal. Não se faz necessário, da leitura do delito, inclusive, que haja colaboração para identificação da autoria, mas apenas facilitação da libertação da vítima.

Já a Lei 12.850/13 alterou tal diploma normativo e, agora, a temática vem a assim regrada:

Art. 4º. O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:

I – a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas;

II – a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;

III – a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;

IV – a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa;

V – a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.

Nessa linha, ao revés de apenas consubstanciar causa de diminuição de pena, a delação pode figurar como pressuposto para o perdão judicial e de substituição da pena privativa de liberdade, por pena restritiva de direito. Nota-se, assim, que esse perdão poderá ser concedido “a pedido das partes”. Nessa trilha, a legislação informa ainda o seguinte no parágrafo 2º:

§ 2º. Considerando a relevância da colaboração prestada, o Ministério Público, a qualquer tempo, e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial, aplicando-se, no que couber, o art. 28 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal).

Muito embora o dispositivo não verse acerca de tal ponto, é certo que o acusado também pode requerer o perdão judicial, como um predicado da paridade de armas e do direito de petição, máxime porque a lei também não proíbe que o faça.

A concessão do direito, contudo, depende da análise das circunstâncias suscitadas no parágrafo 1º, do artigo 4º, Lei 12.850/2013: “§ 1º Em qualquer caso, a concessão do benefício levará em conta a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração”.

De se consignar, ainda, a manifesta estranheza em pautar um instituto de processo penal pela “repercussão social do fato”, além do ranço de direito penal do autor, ao determinar a lei que o juiz considere a “personalidade do colaborador”. Mesmo para alguém que resolva colaborar, tais elementos normativos geram absoluta incerteza e, decisivamente, pode representar a possibilidade de o Estado “dar com uma mão e retirar com a outra”.

Nota-se, ainda, que a colaboração poderá, consoante a Lei 12.850/2013, excepcionar ou mitigar o princípio da obrigatoriedade, facultando ao Ministério Público Federal que não ofereça denúncia em desfavor do acusado, desde que não seja o líder do grupo criminoso e que seja o primeiro a prestar efetiva colaboração:

§ 4º. Nas mesmas hipóteses do caput, o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia se o colaborador:

I – não for o líder da organização criminosa;

II – for o primeiro a prestar efetiva colaboração nos termos deste artigo.

Premente observar que este diploma, em análise meramente dogmática, não tem obstada sua vigência com o advento da Lei 12.850/2013, que versa acerca da delação premiada apenas no âmbito do denominado “crime organizado”. Nessa linha, premente observar que os dispositivos atinentes à delação na Lei 12.850 contêm referências expressas à necessidade de que a delação esteja referida a uma “organização criminosa”.

Mas, em 2013, o legislador foi além, a permitir que a delação premiada seja feita até mesmo depois de proferida a sentença, ao dispor que “Se a colaboração for posterior à sentença, a pena poderá ser reduzida até a metade ou será admitida a progressão de regime ainda que ausentes os requisitos objetivos”. Ou seja, um réu, condenado, pode, simplesmente, progredir de regime, se depois da sentença, aceitar fazer a delação. Lamentável. Convém registrar que a lei permite a progressão mesmo que desatendidos os requisitos objetivos, é dizer, mesmo que o sentenciado não tenha comportamento satisfatório e à mingua do cumprimento do lapso temporal que autorizaria a progressão.

Curiosa é a regra, que ainda passa despercebida por parte dos comentaristas, prevista na lei de que a delação é retratável, a saber: parágrafo 10. As partes podem retratar-se da proposta, caso em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor. Neste passo, mais um reparo deve ser feito: para que a prova não seja colhida com astúcia — o que fulminaria a sua legalidade — se houvesse retratação, a rigor, todos os elementos colhidos no curso da delação haveriam de ser desprezados, solenemente desprezados.

Feita essa breve análise de natureza técnico-dogmática[10][11], premente pontuar aspectos de fulcral relevo e preocupação atinentes à denominada “delação premiada”.

Com efeito, como anota Rômulo de Andrade Moreira[12], a delação padece de problemas éticos evidentes, consistentes na adoção pelo ordenamento da prática de premiar a traição.

Semelhantemente, Zaffaroni, Ministro da Suprema Corte Argentina:

…A impunidade dos agentes encobertos e dos chamados arrependidos constitui uma séria lesão à eticidade do Estado, ou seja, ao princípio que forma parte essencial do Estado Democrático de Direito: o Estado não pode se valer de meios imorais para evitar a impunidade…[13]

Demais disso, na prática, a delação premiada nada mais é do que a reinvenção (um upgrade, para dar nova roupagem a velho instituto) do chamamento de corréu, figura essa que já era rechaçado do processo penal há tempo. Isso porque, evidentemente, corréu não é testemunha, não pode prestar compromisso de falar a verdade (não podendo a seu depoimento ser conferido o caráter de prova, pois), máxime porque na delação premiada o depoimento é feito mediante oferecimento de recompensa.

Assim, estar-se-á estimulando a traição e obtendo provas através do oferecimento de vantagens ao depoente, que, muito bem pode mentir ou fazer com que corréu seja apenado (eu tenha pena maior do que a merecida) apenas para obter as benesses que o Estado tão de bom grado lhe oferece para que desmantele crimes. Mais grave é que se cria uma aura de santo sobre o delator, porque as pessoas imaginam que ele jamais trairia no curso da delação. E o diabo é que se cria uma aura de santo sobre o delator, porque as pessoas imaginam que ele jamais trairia no curso da delação.


 

 

 

Será? …

 

Neste passo, deve-se ter em mente que, em que pese se venda a delação como um meio de prova novo, de novidade ela nada tem. Com efeito, como assevera Mingardi, “Lembre-se, por oportuno, que a colaboração entre Estado e criminosos é antiga, remonta à época em que os piratas repartiam o butim com as coroas que os custeavam. Não há grande diferença entre isto e a delação premiada, pois ambas são francamente inadmissíveis”.[14]

Nessa linha, a delação não pode figurar legitimamente como meio de prova e não pode, evidentemente, lastrear por si só o recebimento de uma denúncia ou, muito menos, uma condenação.

Outro aspecto fantasmagórico — e que deve, em homenagem à Constituição, ser rechaçado de forma veemente, referente à delação premiada se refere à utilização de prisões para “estimular”, verdadeiramente forçar a obtenção da colaboração do acusado, em clara transgressão ao princípio nemo tenetur se detegere ou princípio da não auto-incriminação.

Trata-se o referido princípio de direito fundamental dos acusados, que permeia diversos dispositivos da legislação, tais como o artigo 186 do Código de Processo Penal, que impõe o dever de que seja, ao início do interrogatório, advertido o acusado do direito de permanecer em silêncio; do parágrafo único do mesmo dispositivo, segundo o qual o silêncio não importará confissão e não pode ser interpretado em prejuízo da defesa.

No texto constitucional, é possível extrair o direito a não auto-incriminação do artigo 5º, inciso LXIII: “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;”.

A Convenção Americana de Direitos Humanos, de que o Brasil é signatário, com promulgação efetivada pelo Decreto 678/1992, no artigo 8º, 2, g, positiva ainda o seguinte: “g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada; e”.

Nota-se, contudo, que, na prática, lamentável e desgraçadamente, prisões temporárias e preventivas vêm sendo realizadas, em diversas investigações, como medida para forçar a colaboração. Efetivamente, muitas prisões cautelares são realizadas com o objetivo de fragilizar o acusado e obter a colaboração, com o fim de que seja cessada a cautela provisória ou até mesmo proporcionar ao preso melhor tratamento no cárcere.

Trata-se, efetiva e verdadeiramente, da institucionalização da tortura, sobretudo quando se observa que as prisões cautelares são muitas vezes determinadas sem qualquer fundamento, através de suposições de periculosidade, de que o preso continuará a delinquir se solto, de que haverá fuga ou turbação processual. Imprescindível notar que a prisão provisória pode sim, ser adotada, desde que haja elementos concretos sólidos que a fundamentem, sempre filtrados pela excepcionalidade manifesta da medida.

Inobstante, a colaboração obtida com o investigado no cárcere se vale da prisão, se vale do tempo como pena para exercer uma pressão sobre o indivíduo, exercer uma microfísica do poder. Isso porque o indivíduo se vê preso, cautelarmente, sem que possa exercitar sua defesa e obter um provimento jurisdicional acerca dos fatos em apuração até que finda a investigação e apresentada, eventualmente, a pretensão acusatória.

A ilegal pretensão de obter a confissão através da prisão preventiva foi noticiada pela Revista Eletrônica Consultor Jurídico, que em 27 de novembro de 2014, denunciou a existência de diversos pareceres da Procuradoria Regional da República da 4ª Região, nos quais se defende que a prisão preventiva pode ser adotada para obter a confissão em razão de ser ela possível “por conveniência da instrução criminal”. Um deles se refere ao Habeas Corpus 50299050-46.2014.404.0000, no qual se impugna decisão do Juízo da 13ª Vara Criminal Federal da Curitiba e tem a seguinte ementa:

CONVERSÃO DE PRISÃO TEMPORÁRIA EM PREVENTIVA. OPERAÇÃO LAVA JATO. PACIENTES EXECUTIVOS DO GRUPO OAS. EXISTÊNCIA DE PRESSUPOSTOS AUTORIZATIVOS DA PRISÃO PREVENTIVA. ARTIGO 312, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.

1. O país foi acometido por sucessão de atentados à administração pública e às finanças públicas, de modo que se mostra absolutamente necessário preservar a ordem pública, sendo que as medidas cautelares alternativas são imprestáveis ao propósito.

2. Além de se prestar a preservar provas, o elemento autorizativo da prisão preventiva, consistente na conveniência da instrução criminal, diante da série de atentados contra o país, tem importante função de convencer os infratores a colaborar com o desvendamento dos ilícitos penais, o que poderá acontecer neste caso, a exemplo de outros tantos.

3. Parecer pela denegação da ordem, porquanto o decreto de segregação encontra agasalho em dois elementos autorizativos do artigo 312, do CPP, quais sejam, a garantia da ordem e a conveniência da instrução criminal.

Efetivamente, como se pode observar, tal posicionamento viola frontal e cabalmente o direito a não auto-incriminação. Sabe-se que a prisão cautelar deve servir a tutelar o futuro processo e não a pretensão acusatória. Demais disso, as mazelas dos cárceres são de todos conhecidas, de sorte que, tanto por isso, o direito penal é considerado a ultima ratio, uma vez que a medida de que se vale, no mais das vezes, é a prisão. Nesse sentido, Roxin bem observa que o direito penal é um mal, talvez necessário, mas que continua sendo um mal[15]. Deveras, o exercício do instrumento central desse mal, qual seja, a prisão, ainda que na sua versão provisória, para obter a delação importa considerá-la inválida, por ausência de liberdade de consciência e de consentimento para formular o acordo.

Ainda sobre a temática das prisões que têm objetivo, única e exclusivamente, ainda que não seja declarado, como no caso do parecer acima referido, de obter confissão ou delação, premente observar que no dia 24 de março de 2015, segundo notícia a imprensa[16], um dos investigados da operação "lava jato" teria tido prisão domiciliar concedida, após firmar acordo de delação premiada.

Destarte, a percepção errônea de uma prisão preventiva poderia ser imposta com o fim de obter confissão ou colaboração do acusado, tem as seguintes consequências: 1) a invalidade da colaboração e do elemento de informação produzido, invalidade esta de que derivará a ilegalidade de quaisquer outros elementos obtidos em razão da colaboração (de qualquer tipo, documentais, testemunhais, etc.), uma vez que a confissão ou colaboração não poderá ser considerada livre, resultando do constrangimento do cárcere; 2) a invalidade da prisão, pois calcada em fundamento inconstitucional, por violar o direito a não auto-incriminação, para além de não estar revestida de cautelaridade processual, que serve não para tutelar a pretensão acusatória ou o poder-dever de acusar do Ministério Público, mas a atividade jurisdicional; 3) a demonstração de que a prisão cautelar é manifestamente desnecessária, figurando um verdadeiro embuste de etiquetas, a coagir o sujeito a cooperar com as investigações.

Os benefícios outorgados ao delator são o preço que o legislador aceitou pagar pela busca da verdade. Assim, haverá pessoas simplesmente perdoadas, ou com penas sensivelmente reduzidas, ou, ainda, com penas alternativas, ou com progressão de regime – ainda que desatendidos os requisitos objetivos – como moeda de troca pela prova de crimes que caberiam ao Estado investigar.

E se arremate que, ao defender as garantias processuais, não se fala, obviamente, em cabotinas condutas de deslealdade processual: adiamentos desnecessários, protelação indevida de atos, inércia e incúria processuais, por vezes utilizadas à larga não por defensores, mas por vero ignorantes. A ampla defesa e plena defesa não se confunde com desfaçatez processual, nem com procedimento perpassado por mau-caratismo.


 

 

 

É evidentemente imoral aceitar-se que o processo penal se transforme em um balcão de negócios, onde, em nome de uma suposta verdade, se lança mão de uma conta corrente com créditos e débitos de liberdades fundamentais para os investigados. Por exceção, o único crime que deveria aceitar a delação premiada seria o violento contra a pessoa (no exemplo clássico da extorsão mediante sequestro), desde que a vítima fosse localizada com a integridade preservada. Somente neste caso, pela relevância do bem jurídico e pela necessidade de proteger a vítima, seria legitimado aceitar este meio probatório, apenas para resgatar alguém inocente. Do contrário, com a vulgarização do imoral (e, decorrentemente, inconstitucional) instituto da delação, em algum tempo, haverá, em alguns casos, uma verdadeira balbúrdia de delações, conflitantes, todas à espera de uma redução de pena.

 

Felizmente, o problema, de fato, é o processo. E que continue sendo, em respeito à Constituição…


[1] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. "Crime organizado": Uma categorização frustrada. Trad. de Rogério Marcolini. Discursos Sediciosos, n. 1, p. 45-67, Rio de Janeiro, 1.º semestre de 1996.

[2] FISCHER, Douglas. Garantismo penal integral (e não o garantismo hiperbólico monocular) e o princípio da proporcionalidade: breves anotações de compreensão e aproximação dos seus ideais. Revista de Doutrina Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 28, mar. 2009. Disponível em: <http://www.revistadoutrina. trf4.jus.br/artigos/edicao028/douglas_fischer.html>.  Acesso em: 30.03.2015, às 19:50.

[4]MORO, Sérgio Fernando; BOCHENEK, Antônio Cesar. O problema é o processo. Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/o-problema-e-o-processo/>.

[5] Idem, ibidem.

[6] Idem, ibidem.

[7] GOMES, Luiz Flávio. Sérgio Moro rasga a Constituição e queima a Convenção Americana. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-abr-02/luiz-flavio-gomes-sergio-moro-rasga-publicamente-constituicao. Acesso em 02.04.2015, às 19:07.

[8]COSTA, Athayde Ribeiro; DALLAGNOL, Deltan; POZZOBON, Roberson. A prisão dos réus da Lava Jato. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2015/04/1611461-athayde-ribeiro-costa-deltan-dallagnol-e-roberson-pozzobon-a-prisao-dos-reus-da-lava-jato.shtml

[9] A prisão temporária é, ao fim e ao cabo, uma prisão para investigação, que não se sustenta, seja pela absurda inconstitucionalidade formal, porque resultou da conversão de medida proviória em lei, seja principalmente, porque ao investigado é assegurado o direito ao silêncio. A prisão temporária não se confunde com a preventiva, que, tendo natureza cautelar, tem finalidades e fundamentos diversos.

[10] Premente pontuar que também a Lei 12.529/2011, versa acerca da premiação da delação, no tocante, contudo, a infrações à ordem econômica (que não consubstanciam necessariamente crime), ao tratar do denominado “acordo de leniência”, vide art. 86 e ss. do diploma. A referida Lei substituiu e revogou a Lei 8.884/1994, que já versava acerca da matéria a teor do art. 35-B e ss.

[11] Também o Projeto de Novo Código Penal, pretende versar acerca da matéria, ao emanar a pretensão de positivar: Art. 106. O juiz, a requerimento das partes, concederá o perdão judicial e a consequente extinção da punibilidade, se o imputado for primário, ou reduzirá a pena de um terço a dois terços ou aplicará somente pena restritiva de direitos, ao acusado que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado I – a total ou parcial identificação dos demais coautores ou partícipes da ação criminosa; II – a localização da vítima com a sua integridade física preservada; III – a recuperação total ou parcial do produto do crime. Parágrafo único.  A aplicação do disposto neste artigo exige acordo que será celebrado entre o órgão acusador e o indiciado ou acusado, com a participação obrigatória do seu advogado ou defensor, respeitadas as seguintes regras: I – o acordo entre as partes, desde que tenha efetivamente produzido o resultado ou os resultados mencionados no caput deste artigo, vinculará o juiz ou tribunal da causa; II – a delação de coautor ou partícipe somente será admitida como prova da culpabilidade dos demais coautores ou partícipes quando acompanhada de outros elementos probatórios convincentes; III – ao colaborador da Justiça será aplicada a Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas; IV- Oferecida a denúncia, os termos da delação serão dados a conhecimento dos advogados das partes, que deverão preservar o segredo, sob as penas da lei.

[12] MOREIRA, Rômulo de Andrade. A institucionalização da delação no direito positivo brasileiro. Disponível em: http://www.ibccrim.org.br/boletim_editorial/69-49-Dezembro-1996. Acesso em 20.03.2015, às 08:44.

[13]ZAFFARONI, Eugênio. "Crime organizado": Uma categorização frustrada. Trad. de Rogério Marcolini. Discursos Sediciosos, n. 1, p. 45-67, Rio de Janeiro, 1.º semestre de 1996,p. 59

[14]Sobre a referência histórica, ver MINGARDI, Guaracy. O que é crime organizado: uma definição das ciências sociais. In Revista do ILANUD  n.º 8.

 

[15] ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. 2 ed. Rio de Janeiro, Renovar, 2008, p. 1-2

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