Político e jurista

Liderança de Brossard foi fundamental para transição democrática, diz Mendes

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13 de abril de 2015, 15h01

A liderança do ministro do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral Paulo Brossard — que morreu neste domingo (12/4) — foi fundamental para a transição democrática do Brasil. A afirmação é do ministro do STF Gilmar Mendes, segundo quem Brossard "afiançou a necessária estabilidade na travessia em direção ao Estado de Direito".

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Paulo Brossard dedicou-se inteiramente à democracia, afirma Gilmar Mendes.
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Em discurso feito na abertura da 17ª edição do Congresso Brasiliense de Direito Constitucional, em novembro de 2014, Mendes descreve a carreira do jurista e político, definido como "homem público íntegro, nacionalmente conhecido e reconhecido, com trajetória inteiramente direcionada à causa da democracia".

O ministro cita ainda o jornalista Carlos Castello Branco, que, ao escrever um perfil de Brossard, afirma que "provavelmente ninguém o superou, então, como crítico de um regime, cujo cerne foi mortalmente atingido por suas lições de anatomia". "Suas armas são simples: a nitidez moral das atitudes, o apego à verdade e o profundo conhecimento das estruturas jurídicas que estavam sendo subvertidas", diz o texto citado por Mendes.

Leia o discurso de Gilmar Mendes:

Chegamos, com grande orgulho, à 17a edição do Congresso Brasiliense de Direito Constitucional, evento que, por sua tradicional qualidade, já se tornou referência nacional. Honra-nos – a todos nós que, ano após ano, fazemos o IDP e que, cotidianamente, com o máximo esmero, cuidamos de conformá-lo – que assim seja.

Porque esta é, sem sombra de dúvidas, a missão de toda academia que se propõe a, nada menos, que a excelência: difundir e atualizar o conhecimento. Nós, do IDP, almejamos, o tempo todo, o aprendizado com intensa relação entre a academia e a práxis político-jurídica, combinando considerações e soluções tanto abstratas quanto concretas.

Nesta jornada, preparamo-nos para debater o Constitucionalismo no Brasil sob perspectiva futura, de vez que, no ano passado, de forma também consagradora, celebramos os 25 anos de vigência da nossa Constituição Federal, diploma que, definitivamente, mudou a face institucional e política do país.

Conferencistas renomados, homens públicos que transitam com desenvoltura tanto na academia quanto no ambiente político, haverão de nos enriquecer com suas ideias luminosas, provindas dessa base de grande labor, ampla experiência e profunda cultura que distinguem os maiores nomes da humanidade.

Bem a propósito, destaco que este Congresso far-se-á realizar sob os auspícios de patrono cuja simples menção basta para evocar todos os atributos imprescindíveis aos homens públicos.

Paulo Brossard de Souza Pinto, orgulhoso gaúcho de Bagé, desponta no rol dos Guardiões da Pátria, tal a excepcionalidade da folha de serviços que prestou ao país, tanto em quantidade como em qualidade. Integrante dos três Poderes da República, revelou-se um ser político por excelência, como ele próprio testemunhou ao tomar posse como Presidente do Tribunal Superior Eleitoral: “desde estudante, até o dia em que me vi coberto pela toga, exerci atividade política”.

Mas estamos a tratar aqui daquela política, pontuo eu, pautada pela coerência que vem da lealdade incondicional a princípios, e toda ela – cumpre sempre destacar – dedicada à causa pública.

Eleito com menos de trinta anos deputado estadual pelo seu amado Rio Grande do Sul, e sucessivamente reconduzido àquela Assembleia Legislativa por duas vezes, foi ainda nessa condição que Paulo Brossard arrostou as intempéries do regime militar de 1964. Vêm dessa época as publicações e os discursos altissonantes que bem lhe marcaram toda a trajetória. Desse rol memorável, extraio trecho que reluz até hoje, quer pela gritante atualidade, quer por espelhar o pensamento lúcido e reto de Sua Excelência, então decidido a encerrar sua carreira parlamentar ante a dissolução dos partidos imposta pelo Ato Institucional 2, de 1965:

Dir-se-á que, não me filiando a nenhuma das duas entidades que fazem as vezes de partido, sou excomungado da vida pública. Disso tenho plena consciência. Como não me dobrei ao que me parece inaudita e brutal violência sou efetivamente excluído da vida pública. Posso fazer isso porque não sou político profissional, mas político por vocação e por dever cívico. Sirvo a política, não me sirvo da política. Não é sem pesar que interrompo a atividade parlamentar, cuja nobreza realço. Mas se esse é o preço que devo pagar por ser fiel aos que confiaram em mim, pagá-lo-ei de bom grado. Outros pagaram preço mais alto. Aqui no Rio Grande muitos pagaram com a própria vida.

Se este é o preço a ser pago, ele tem de ser pago. Além de político sou professor e como professor devo à mocidade a lição da palavra e do exemplo, mais do exemplo do que da palavra. E é preciso salvar a mocidade e mantê-la incontaminada em meio à universal degradação que atinge a Nação, traída e vilipendiada.

Felizmente, o profundo senso de responsabilidade, mormente em meio a uma aguda crise institucional, não permitiu que tão invulgar brasileiro se afastasse do combate patriótico. Cedeu, assim, à gravidade da conjuntura, como Sua Excelência deixou registrado ao se despedir da Casa do Povo gaúcho. Enorme era a pressão – a maior das quais a própria consciência – a indicar o caminho a ser tomado, “por solidariedade na desgraça”.

Ei-lo, então, eleito deputado federal pelo Movimento Democrático Brasileiro – MDB, mandato cujo exercício encarou como missão, como dever cívico, como revelou em magnífico discurso proferido em 25 de outubro de 1969, época de truculenta censura e amplo cerceio às liberdades democráticas:

A prudência, o comodismo, talvez aconselhassem a não falar nesta hora ( … ) Sou deputado da Nação, o que é honra insigne. Mas a deputação também impõe deveres. É no cumprimento do que entendo ser do meu dever que aqui estou. Se às vezes o dever está em calar, por vezes ocorre que calar é faltar ao dever, porque o dever está em falar. Calando agora não encerraria bem os vinte e cinco anos de atividade política que exerço, encetada quando estudante, nos tempos negros do «estado novo», pugnando pela redemocratização da minha pátria; as comodidades do silêncio não se conciliariam com os longos anos de intensa atuação parlamentar, alguns dos quais de quiçá exagerada laboriosidade, quanto tanto falara eu, numa hostilidade diuturna à situação deposta em 64. ( … ). Não seria digno da minha geração, que lutou pela democracia e nela acreditou; não seria digno dos companheiros denodados até o heroísmo, que, nos extremos da pátria, deram tudo pela verdade democrática.

Também quase à revelia da própria vontade, foi eleito Senador, na célebre eleição de 1974, “a eleição que abalou a Ditadura” e possibilitou a ascensão decisiva do MDB. É o ministro Brossard quem relata o golpe do destino, prenunciando o desígnio que o consagraria:

Eu não pretendia ser candidato a coisa nenhuma. Eu sempre digo que fui objeto da ‘traição’ do meu amigo Alcides Saldanha, que me forçou a ir a Caçapava. Era só para ir a uma inauguração não sei de quê, e, quando eu menos esperava, saiu uma enorme recepção, anunciando a minha candidatura.

No Senado, igualmente, a verve inflamada pelo profundo senso de justiça, intrinsecamente alimentada pelo ímpeto, pelo instinto democrático, foi a marca inconfundível da oratória arrebatadora com que reverberou pronunciamentos irretorquíveis, invariavelmente ouvidos em obsequioso silêncio, regiamente aplaudidos, tal a intensidade do verbo, a justeza dos propósitos, a estatura do orador.

De tanto dá conta um dos próceres do jornalismo político brasileiro, o inesquecível Carlos Castello Branco:

Senador por oito anos ele dominou a oratória política do período. Provavelmente ninguém o superou, então, como crítico de um regime, cujo cerne foi mortalmente atingido por suas lições de anatomia. Suas armas são simples: a nitidez moral das atitudes, o apego à verdade e o profundo conhecimento das estruturas jurídicas que estavam sendo subvertidas. Liberal de origem, soube apreender a dimensão social da injustiça. Com bravura denunciou os atentados aos direitos humanos, não só os decorrentes da mecânica ditatorial do regime, como os que a transcendiam como fruto da perversidade e dos desvios em que é rica a índole dos prepotentes. Ele deu sua contribuição a uma tomada de consciência da qual resultou a lenta mas irreversível marca de retorno aos valores éticos, humanos e jurídicos da democracia.

De minha parte, dou testemunho dessa bravura moral que tais palavras deixavam transparecer, porquanto não poucas vezes, imberbe estudante de Direito da Universidade de Brasília, saí do campus para presencialmente ouvi-las e, assim, aprender, in loco, as lições de cidadania, independência e galhardia ministradas, em pleno regime de exceção, por aquele que desponta entre os tribunos mais consagrados da história do Congresso Nacional.

Tal liderança inequívoca mostrou-se fundamental para a transição democrática. Timoneiro nesse processo, ao lado de admiráveis brasileiros como Ulisses Guimarães, Tancredo Neves, Teotônio Villela, Alencar Furtado, Mário Covas, Marcos Freire e Célio Borja­, para citar somente alguns dos mais exemplares heróis da pátria­, Paulo Brossard afiançou a necessária estabilidade na travessia em direção ao Estado de Direito. Foram esses homens os verdadeiros responsáveis pela construção do regime democrático brasileiro, ao lutarem incessantemente, durante longos e difíceis anos, dentro dos marcos da institucionalidade, sem nunca perder de vista que o verdadeiro combate político que se travou foi entre o autoritarismo, de direita ou de esquerda, e a democracia.

Brossard destacou-se como prócer da oposição — mas, sobretudo, na condição de homem público íntegro, nacionalmente conhecido e reconhecido, com trajetória inteiramente direcionada à causa da democracia —, construção que continuou a urdir ao depois, como Consultor-Geral da República, Ministro de Estado da Justiça e Ministro do Supremo Tribunal Federal.

Na Suprema Corte, distinguiu-lhe também o mesmo traço inconfundível da independência e da acurácia nos julgamentos, bem assim igual fidalguia no trato com os pares e com servidores da Casa. Nos cinco anos em que exerceu o árduo ofício de magistrado, atuou sempre privilegiando a perspectiva do papel institucional do Tribunal. Votos de sua autoria, permeados de erudição, embora norteados pela técnica jurídica, enriquecem sobremaneira os repositórios jurisprudenciais da alta corte do país e do Tribunal Superior Eleitoral, cuja presidência exerceu entre junho de 1992 e maio de 1993.

Ao se desvestir do múnus público, em razão da precoce aposentadoria compulsória pelo implemento de idade, o ministro Brossard nem assim despediu-se da vida pública, tal a enorme contribuição que continua prestando à República e ao Direito. Sua obra perpetua-se quer pela grandeza, quer pela extrema atualidade. Aliás, em honra dessa excelência, tenho agora a enorme alegria de anunciar a reedição, pela Série IDP/Saraiva, de autêntica obra-prima do nosso repertório doutrinário jurídico: o livro “O Impeachment — Aspectos da Responsabilidade Política do Presidente da República”.

Escrito, em 1965, pelo então professor Paulo Brossard, a clássica obra será novamente colocada à disposição da comunidade jurídico-política de língua portuguesa.

Ministro Brossard, sua trajetória e produção não se coadunam a sínteses de qualquer espécie. Ao reverso, perfil tão fecundo e multifacetado há de sempre requerer caudalosa biografia, tantos são os intentos de Vossa Excelência a favor do Brasil. Nada obstante, urge que eu encerre esta singela homenagem para que prossigamos nos trabalhos deste Congresso.

Saúdo a cada qual dos participantes e faço também menção especial a Dr. Álvaro Teixeira da Costa, ilustre Presidente dos Diários Associados, grupo que reúne 35 veículos de imprensa e sobressai como líder no segmento de jornais. Na pessoa do Dr. Álvaro, homenageio a liberdade de imprensa, sem a qual não é possível falar de democracia, nem sequer de civilidade.

Na realidade, a primeira forma de ataque à democracia quase sempre se revela na mitigação da liberdade de imprensa. Não por coincidência, Dr. Álvaro, o autoritarismo simplesmente não consegue suportar uma imprensa livre, pela qual o senhor lutou por toda sua vida.

Senhoras e Senhores, dou-lhes as boas-vindas. Que este evento contribua ao aperfeiçoamento pessoal e profissional de cada qual dos participantes deste evento. Tenhamos todos um excelente aprendizado.

Muito obrigado.

Gilmar Ferreira Mendes
Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e professor da Escola de Direito de Brasília (EDB/IDP)

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