Segunda Leitura

Há distância entre a segurança da Constituição e a aplicada no mundo real

Autor

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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12 de abril de 2015, 8h00

Spacca
A Constituição Federal de 1988 assim dispõe: 

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I – polícia federal;
II – polícia rodoviária federal;
III – polícia ferroviária federal;
IV – polícias civis;
V – polícias militares e corpos de bombeiros militares.

O Brasil cumpre o que consta no texto? Vejamos, a partir da redação da cabeça do artigo e iniciando pelo dever do Estado em proporcionar segurança aos cidadãos. Os três entes políticos a isto estão obrigados.

A União tem a Secretaria Nacional de Segurança Pública, vinculada ao Ministério da Justiça. No seu site[1], as últimas notícias são de dezembro de 2013. Há menção a pesquisas, só que isso ocorreu em 19 de fevereiro de 2013. Ao que parece, a única atividade de sucesso são os cursos a distância. A União, portanto, não conduz a política nacional de segurança e não cumpre sua missão constitucional.

Os Estados membros são diferentes entre si. Uns investem mais, outros menos. Entre as boas iniciativas, cita-se o Espírito Santo, através de sua Delegacia On Line, que proporciona ao cidadão acesso direto a vários de seus serviços[2].  São Paulo investe na capacitação de seus membros através da Academia de Polícia Civil e, inclusive, publica livros e revistas de interesse (v.g. Manual de Polícia Judiciária Ambiental[3]). A PM do Pará promove cursos de promotor de Polícia Comunitária, habilitando seu membros em matérias como Direitos Humanos e Mediação de Conflitos[4].

Do outro lado da moeda, o Rio Grande do Norte abriu concurso para delegado de Polícia em 5 de dezembro de 2008, mas, segundo o site da CESP-UNB, responsável pelo certame, até agora só houve convocação para os habilitados participarem do curso. Ou seja, não há notícias da nomeação até hoje[5]. Aliás, o site da SSP e Defesa Social nada revela sobre o final do processo seletivo[6]. Não por acaso, com a rebelião em presídios de março passado, o estado teve de pedir socorro à Força Nacional.

Independentemente do estado, regra geral a Polícia Civil e a Militar trabalham sem aparelhagem moderna. Em tempos de drones, robôs e depoimentos por videoconferência, ainda há delegacias sem máquinas filmadoras, computadores de última geração e até mesmo mobiliário. As feiras de instrumentos modernos para a segurança pública estão a mostrar o futuro[7], mas a realidade ainda está no passado. Por sua vez, a Polícia Científica tem poucos peritos e instrumentos inadequados de produção de provas. E é ela quem poderia auxiliar a esclarecer crimes complexos.

No âmbito municipal o papel do Poder Público é de difícil conclusão, pois, além das atribuições das Guardas Municipais serem restritas ao âmbito de proteção do patrimônio do município, elas são muitas espalhadas pelo território nacional. Na busca de casos de sucesso, constata-se que o site das Guardas Municipais do Brasil aponta a corporação de Capivari (SP) como de reconhecida efetividade[8].

Prosseguindo na leitura do artigo 144 da Constituição, vemos que a segurança é direito e responsabilidade de todos. O dispositivo assemelha-se ao art. 225, que garante aos brasileiros um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

A diferença é que, enquanto o art. 225 é invocado e adotado em milhares de decisões judiciais, o art. 144 nem sequer é conhecido. O direito dos brasileiros à segurança é teórico/abstrato, pois, na realidade, ninguém o usufrui. Nem mesmo as pessoas muito ricas, pois seus condomínios fechados são vulneráveis, seus automóveis blindados não dão garantia total de segurança e são obrigados a utilizar guardas particulares.

Responsabilidade de todos é o complemento. E aí entra a nossa parte. O que podemos e devemos fazer individualmente como cidadãos ou organizados em associações (ONGs).

Inicialmente, observe-se que a responsabilidade prevista na Constituição não significa o dever de agir nos casos de ação criminosa, como se fosse um detetive particular. A responsabilidade constitucional é um dever ético, um dever de colaborar no aprimoramento da segurança. E aí muito pode ser feito.

A começar pela simples ação individual de tratar bem, de valorizar os profissionais da segurança. Um bom-dia ao guarda municipal, um muito obrigado ao PM que faz a segurança de um local ou um e-mail à Ouvidoria da Polícia Civil, elogiando um escrivão que foi atencioso, colaboram muito para que haja maior empenho dos servidores públicos.

De forma coletiva, muito pode ser feito. Por exemplo, em Curitiba atua o Conselho Comunitário de Segurança (Conseg), entidade de apoio às polícias estaduais. Em outras palavras, são grupos de pessoas de uma mesma comunidade que se reúnem para discutir, planejar, analisar e acompanhar as soluções de seus problemas, o qual se reflete na segurança pública.

São meios de estreitar a relação entre comunidade e polícia, e fazer com que estas cooperem entre si”[9]. Espalhado por vários bairros da cidade, os membros do Conseg procuram autossuficiência nas ações locais de segurança em parceria com a polícia.

A Academia também pode colaborar. Na PUC-PR, dou aulas no mestrado/doutorado sobre Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública. Além disso, abri a possibilidade de alunos de graduação fazerem projetos de pesquisa sobre a matéria e surpreendi-me com o elevado número de interessados. Cabe às faculdades de Direito abrir-se ao tema, proporcionarem cursos supletivos e estimularem a redação de monografias, dissertações e teses sobre o tema. E nele tudo está para ser estudado.

Nos incisos do art. 144 estão as forças de segurança reconhecidas na Constituição. A Polícia Federal é a primeira e conquistou o respeito da população. Não é à toa que ela atrai grande número de pessoas nos concursos públicos. Seus membros possuem elevado nível cultural e sua estrutura é razoável.

A Polícia Rodoviária Federal tem um papel importante na ação preventiva que se faz nas rodovias. A Polícia Ferroviária Federal pertence ao passado, foi-se com os trens e as estradas de ferro.

Na verdade, as Polícias Civil e Militar dos estados são as que enfrentam o maior número de infrações, as que estão no combate à criminalidade mais violenta. Elas têm os seus problemas e, como em todas as áreas, sempre repercutem mais do que as ações dignas de elogios. Nesse momento a mídia ocupa-se da trágica morte de Eduardo de Jesus Ferreira, de 10 anos, na Favela do Alemão, no Rio de Janeiro.

Note-se que a comunicação entre os órgãos de segurança e a sociedade não é boa. Por exemplo, acusa-se a PM de arbitrária e é recorrente a tentativa de mudar seu perfil. Pois bem, terá dificuldades quem quiser saber se seus cursos de formação incluem matérias como Direitos Humanos, Psicologia Social, Relações Humanas e outras de interesse direto na forma de agir de seus agentes. Os sites da PM-MG[10], PM-SC[11], PM-DF[12], PM-SP[13] e PM-PE[14] não fazem qualquer referência ao currículo de formação de praças e oficiais.

A corrupção e a violência também merecem referência. Qualquer pessoa atenta sabe os problemas que envolvem as atividades policiais. E sabe, também, que esses problemas só diminuem com ação contínua de valorização da classe, estímulo aos bons e severa repressão aos desvios de conduta. Mas uma coisa é certa: basta ver as entrevistas da TV com delegados jovens, bem apessoados e expressando-se bem, para concluir que algo mudou.

Outrossim, o tema tem atraído discussões sobre políticas públicas e, por essa razão, as opções da segurança são levadas ao Judiciário. Não é este o local para a tomada de decisões. Juízes não têm nenhum preparo para decidir políticas públicas de segurança. Por isso, com acerto indeferiu-se ação civil pública proposta pelo Ministério Público no Rio Grande do Sul, na qual se pretendia discutir o número de policiais no município de Marau[15].

Encerrando, a segurança prometida pela Constituição está longe de ser cumprida. É preciso que a Nação acorde para a sua importância. Estudá-la não tem o charme das complexas dúvidas de ordem constitucional, mas tem tudo a ver com o dia-a-dia dos brasileiros. Quem tiver dúvida, pense nisto quando, esta noite, parar em um semáforo.

 


Autores

  • é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente eleito da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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