ADI contra autonomia

Defensoria Pública da União: entre a retórica e a ação de um governo inimigo

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12 de abril de 2015, 10h36

Desde a Constituição de 1988, tanto o Judiciário quanto as Funções Essenciais à Jurisdição experimentaram avanços, mas em diferentes graus. Comparada ao Judiciário, ao Ministério Público e à Advocacia Pública, a Defensoria Pública sempre foi tratada como o “patinho feio” do sistema, a última a merecer estruturação e investimentos, para o adequado desempenho de seu múnus.

A Emenda Constitucional 45/2004 operou uma grande reforma do sistema jurisdicional, nele incluindo importantíssima norma, que conferiu autonomia financeira e orçamentária às Defensorias Públicas estaduais. Uma instituição que litiga quotidianamente contra o Poder Público, em favor do cidadão necessitado, não pode depender desse mesmo Poder Público para sustentar-se financeiramente, expandir-se, atingir os grotões do país, nem dele sofrer qualquer tipo de ingerência, do contrário fica frustrada sua razão de ser. Jamais interessará ao poder central bem estruturar uma instituição que a ele se contraponha.

Ocorre que a EC 45/2004 conferiu autonomia financeira e orçamentária só às Defensorias estaduais, e não à Federal. O Executivo Federal, à época, posicionou-se claramente pela manutenção da DPU sob as rédeas do governo. Com isso, criou-se uma situação inconstitucional: era como se o interesse do brasileiro necessitado dos serviços da Defensoria Pública da União valesse menos do que o daquele dependente dos serviços da Defensoria Pública do Estado. Nos debates parlamentares da época, o então senador (hoje ministro da Casa Civil) Aloísio Mercadante prometeu que a autonomia da DPU seria aprovada em breve, com o apoio do governo, empenhando sua palavra.

Em 2007, o Tribunal de Contas da União decidiu que a DPU deveria contar com 1.200 membros para exercer minimamente sua função, expedindo recomendação ao Executivo nesse sentido. A DPU não contava nem com 300 membros e não tinha atingido sequer as capitais dos Estados federados, situação ocorrida apenas em 2008, com o terceiro concurso da instituição em 14 anos. Hoje, a DPU tem cerca de 540 membros em atividade…

A contribuição da EC 45/2004 foi finalmente complementada pelo Congresso Nacional com a EC 74/2013. Esta, por sua vez, estendeu à Defensoria Pública da União a autonomia orçamentária e financeira já reconhecida às Defensorias Públicas estaduais. Em 2014, o Congresso Nacional aprovou a EC 80/2014 e conferiu aos Estados e à União o prazo de oito anos para lotar um defensor público onde houver um juiz. Para isso, incumbiu de iniciativa legislativa os defensores gerais, permitindo-lhes regulamentar a carreira dos defensores públicos e as carreiras de apoio à instituição. O governo Dilma Rousseff, a despeito das promessas do então senador e hoje ministro, sempre se posicionou contrariamente tanto à EC 74/2013 quanto à EC 80/2014, enfrentando seguidas derrotas no Parlamento, vez que a própria base aliada era (é) entusiasta das potencialidades democráticas da Defensoria Pública. Unido, da oposição à situação, exceto o governo, o Parlamento, órgão realmente empenhado em estender o serviço de assistência jurídica aos pobres no país, trabalhou para o fortalecimento da Defensoria Pública como política de Estado constitucionalizada, e não capricho desta ou daquela gestão.

A presidente da República, por meio da Advocacia-Geral da União, acaba de protocolar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5296, argumentando vício de iniciativa da EC 74/2013 e requerendo medida liminar urgente para suspender sua eficácia, apesar de vigente há quase dois anos. A PEC que resultou na EC 74/2013 foi deflagrada por um terço dos senadores, com lista encabeçada pela senadora Vanessa Grazziotin (PC do B-AM), da base do governo, e foi aprovada à unanimidade em ambas as casas legislativas. A tese estapafúrdia da ADI é de que autonomia se inclui no regime jurídico do servidor público, para cujo tratamento se exige iniciativa de lei exclusiva do Executivo, não podendo o Legislativo propor Emenda Constitucional a respeito.

Ora, em primeiro lugar, não há restrição temática de iniciativa para Emendas Constitucionais. Os legitimados à sua propositura o são a título universal, podendo suscitar alterações no texto da Constituição em qualquer matéria, resguardados os limites do art. 60, § 4.º. O que o STF veda, por iterativa jurisprudência, é o uso fraudulento da Emenda à Constituição para que o Parlamento contorne a iniciativa privativa do Executivo em determinadas matérias. Aqui, o segundo ardil do governo: a definição de autonomia da DPU como parte do regime jurídico de servidores públicos beira a má-fé. A autonomia de órgãos e instituições constitucionais não é tema de regime jurídico de servidores, mas de organização política do Estado.

A organização política do Estado é matéria constitucional por excelência, ao lado dos direitos fundamentais. A engenharia de Estado e o fortalecimento de instituições estão a cargo do poder constituinte reformador, no Parlamento, e não dependem de qualquer iniciativa do Executivo. Confundir esses dois temas é absurdo.

Mais: se o titular do poder constituinte reformador, o Parlamento, entende por conferir autonomia a determinada instituição em face do Executivo, para que ela melhor exerça sua função, não há sentido em exigir que o próprio Executivo seja o árbitro primeiro dessa questão, com a tese da iniciativa privativa para PEC. Se assim o fosse, a engenharia de Estado e a organização política-constitucional da República estariam a cargo do Executivo, não do Parlamento, a indiciar uma perspectiva centralizadora e nada democrática do assunto…

E o que dizer das inúmeras Emendas à Constituição, de iniciativa do Executivo e do Legislativo, que alteraram a conformação do Judiciário e do Ministério Público, também autônomos? Serão todas arrastadas para a vala da inconstitucionalidade, face ao mesmo vício? Eis o caso, entre outros, da EC 45/2004, de iniciativa do Parlamento: é o fim do CNJ, do CNMP, das novas atribuições do Judiciário Trabalhista? Ao mirar o enfraquecimento e o sepultamento da DPU, a ADI 5296 consagrará argumento para nulificar todas as reformas do sistema jurisdicional brasileiro nos últimos vinte anos?

A atuação da DPU interessa ao governo. Nos discursos. Em discurso de 16 de outubro de 2012, a presidente Dilma Rousseff anunciou aumento da Defensoria Pública da União para 200 sedes ou cidades, até 2015. Em 2015, não há mais do que 80 sedes…

Já ao discursar na cerimônia de promulgação do novo CPC, a presidente da República destacou que eram pontos fortes do texto a expansão da assistência jurídica aos necessitados e o fortalecimento da Defensoria Pública.

No entanto, nenhuma novidade sobre a estrutura e o desenvolvimento concreto da Defensoria Pública há, nem poderia haver, no CPC. O discurso retórico de S. Exa. não faz mais do que tirar proveito, sem contrapartida, da boa imagem da Defensoria Pública, a instituição mais bem avaliada do sistema jurisdicional brasileiro, segundo pesquisa promovida pelo CNMP.

O que se vê, lamentavelmente, é que o governo Dilma Rousseff, inimigo figadal do crescimento da DPU e da assistência jurídica aos necessitados no Brasil, para além do mero discurso, comporta-se, neste tema, como soldado que morre atirando. Derrotado seguidas vezes no Parlamento e sob a orientação jurídica equivocada de um ministro AGU em dificuldades com a gestão da própria carreira (http://unafe.org.br/index.php/nota-publica-21/), de membros justificadamente insatisfeitos com anos de desvalorização, vale-se de todos os meios institucionais, agora recorrendo ao STF, para que a DPU não avance, não se desenvolva, não abra novas sedes, não preencha os mais de 700 cargos vagos, não tenha carreira de apoio, não seja autônoma e, com isso, não atinja os que dela mais precisam!

E, ao contrário do que os maus assessores de S. Exa. possam afirmar, as vítimas maiores desse fatídico tiroteio não são os defensores federais que, de atestada competência por exigente concurso público, se podem voltar a qualquer tempo para outras carreiras públicas ou privadas, mas os dependentes do serviço de assistência jurídica integral, gratuita e de qualidade no Brasil, grande parte dos quais sem vislumbre de direitos para além de bolsas de subsistência… aqueles mesmos que a signatária da ADI propagandeia priorizar em seu governo…

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