"Corporativismo travestido"

Mudanças previstas na nova Loman enfraquecem papel do CNJ

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11 de abril de 2015, 16h17

Recentemente meios de comunicação propagaram a preocupação com o futuro do Conselho Nacional de Justiça diante da minuta da nova Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman), proposta pelo ministro Ricardo Lewandowski, que teria sido enviada para avaliação dos membros do Supremo Tribunal Federal.

A preocupação e o destaque da notícia têm razão de ser. O conselho, desde sua idealização, é palco de exaustivas discussões sobre a extensão de suas atribuições. Entretanto, as novas propostas para enfraquecimento do CNJ chegam no momento em que deveríamos discutir seu fortalecimento e consolidação — o momento de celebrarmos seus 10 anos de funcionamento.

Pela leitura da minuta, identificamos rapidamente problemas de ordem jurídica e mesmo lógica. Ao prever, por exemplo, em seu art. 92, IV, como prerrogativa do magistrado “não ser interrogado em processo disciplinar ou criminal, a não ser por magistrado de instância igual ou superior, ainda que integrante ou designado pelo CNJ”, a proposta de Estatuto da Magistratura carrega uma inconstitucionalidade clara e inviabiliza o órgão, considerando que há seis membros não magistrados e três juízes de primeiro grau.

A Constituição da República, em seu art. 103-B, não criou cargos de conselheiros hierarquizados, com atribuições e atuação diversas. Ao contrário, afirma que o CNJ é composto por 15 membros, sem desigualdades de qualquer natureza.

Com a implementação hipotética de tal norma, uma das atividades de maior notoriedade no CNJ — a disciplinar — seria concentrada nas mãos de alguns magistrados do final da carreira. Pela quantidade de processos e pela complexidade da tarefa, a concentração impediria o dinamismo e a celeridade necessários à condução dos processos disciplinares.

Imagine-se, num mesmo órgão colegiado, uma Turma do Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, em que alguns ministros tivessem “poderes” (ligados sempre a deveres) que os outros não detivessem. E se os ministros originários do quinto constitucional não pudessem exercer a jurisdição da mesma forma que seus colegas? É essa “inovação” que se propõe ao CNJ? Espera-se que não.

Felizmente não há limites à imaginação, e felizmente há limites para a realização de tudo que se pode imaginar — no caso em análise, nos preservamos dessa sanha imaginativa na Constituição Federal.

Se a limitação de atuação de parte do CNJ fosse a vontade do legislador constitucional, suacomposição do não seria heterogênea — e não haveria, aliás, sentido na sua criação.

A possibilidade de monopólio do controle disciplinar na mão dos magistrados não reflete ideia que orientou a Reforma do Poder Judiciário concretizada na Emenda Constitucional 45. Essa proposta minaria a eficiência correcional do CNJ, que só desagradada à parte da magistratura que insiste em se manter fora do alcance do órgão representativo e deve garantir a democratização e a transparência do Poder Judiciário.

A propósito, é triste retravar discussões que já foram exauridas não apenas no Congresso, mas também no próprio Supremo, por oportunidade dos julgamentos da ADC 12, da ADI 3367 e da ADI 4638.

Triste, pois mobiliza um órgão que deveria, como comemoração de sua primeira década, aprimorar suas conquistas, os serviços que presta, ao invés de se debater e lutar, contra Golias, pela sua sobrevivência.

Há muito para realizarmos. Há muito trabalho para acabarmos com a morosidade dos julgamentos. O CNJ tem uma missão gigantesca: implementar uma política judicial única, nacional, num cenário em que não se pode desconsiderar a autonomia dos estados e o pacto federativo.

Os desafios são enormes, e é lamentável que, em vez de gastar seus recursos com o planejamento e coordenação da política judiciária para todos, buscando celeridade processual, eficiência e confiabilidade na atuação dos órgãos jurisdicionais, o CNJ despenda boa parte de suas forças lutando para não ser esvaziado.

Quanto ao artigo da minuta do estatuto que veda o afastamento de lei contrária à Constituição pelo CNJ (275, parágrafo único), ressaltamos o quanto tal previsão mutila este órgão de sua plena operação.

A Carta de Outubro confiou ao CNJ zelar pela observância de seu art. 37, pela autonomia do Poder Judiciário e pelo Estatuto da Magistratura. O CNJ, desse modo, cuida e promove a observância dos princípios da legalidade, moralidade, eficiência, impessoalidade e publicidade pela administração judiciária de todas as esferas estatais. Tal competência revela-se um enorme desafio institucional diante dos interesses de instituições importantes, órgãos fortes, associações influentes. Como seria possível cumprir fielmente a missão constitucional sem franquear ao CNJ o afastamento de atos que aviltem, que desrespeitem qualquer dos princípios e institutos que deve proteger?

O conselho afastou, em inúmeras oportunidades, leis estaduais não apenas imorais, mas flagrantemente atentatórias a regras e princípios constitucionais, e sua atuação corajosa só foi possível pelo exercício desse controle de legalidade em sentido lato.

É preciso esclarecer, ainda, que o § 2º do art. 12 da proposta de Estatuto da Magistratura, ao estabelecer que o Tribunal Superior Eleitoral não está submetido às decisões do Conselho Nacional de Justiça, também inseriria no sistema jurídico uma restrição ao funcionamento do CNJ que não foi prevista pelo artigo 103-B da Constituição.

O encaminhamento de tal proposta pelo Supremo Tribunal Federal, acaso consubstancie tais possibilidades, se revelaria um verdadeiro paradoxo, dado o reconhecimento de que a esse órgão cabe a análise mais apurada e final a respeito da constitucionalidade das leis. É difícil admitir que o titular do controle de constitucionalidade poderia, eventualmente, apresentar ao Congresso uma agressão à Carta da República — a redução da competência fixada pela Constituição, por meio de lei.

Com relação às portarias da Presidência, de 29 e 30 de março de 2015, que criam conselhos consultivos que devem se pronunciar previamente às deliberações do CNJ, consideramos que, além de inconstitucional, a possível consulta a tais conselhos revela-se desnecessária.

É que já há espaço de diálogo sistemático com todos os segmentos do Poder Judiciário, a exemplo dos Encontros Nacionais do Poder Judiciário, nos quais as decisões de maior relevo para o planejamento estratégico são discutidas e decididas democraticamente, ou seja, são realizadas pelos próprios tribunais, cabendo ao CNJ sua implementação e acompanhamento.

Além disso, a medida representa um desprestígio aos representantes dos Tribunais de Justiça no CNJ (Art. 103-B, IV e V). Afirmar que os tribunais não possuem espaço de interlocução nas análises do que tramita no CNJ significa desconsiderar a atuação desses representantes designados pela Constituição, dos dois conselheiros que acompanham e deliberam a respeito de todas as matérias que aqui tramitam.

Com a instituição das aludidas consultas, o CNJ — órgão que tem autonomia na Constituição para editar atos normativos, segundo previsão do inciso I, do § 4º, do artigo 103-B– passaria a ser um órgão dependente da autorização prévia de quem deveria coordenar e liderar. Não é preciso dizer que, além de corporativista, tal implementação parece ser a inversão da lógica que criou o Conselho.

O poder normativo do CNJ criou políticas públicas judiciárias nacionais que revolucionaram o sistema judicial brasileiro, trazendo eficiência e transparência onde havia irregularidade e assimetria. É natural que isso desagrade a alguns profissionais habituados a inexistência de gestão e de prestação de contas. Contudo, é absurdo admitirmos que tais profissionais, refratários à instituição de padrões de excelência e produtividade, ditem o futuro do Judiciário e imponham esse retrocesso na atuação do CNJ.

A proposta de nova Loman contém outro projeto de enfraquecimento do poder normativo do CNJ, em seu art. 273, § 2º. Trata-se de novo ataque à competência constitucional do CNJ que é, possivelmente, a mais relevante. É por meio dela que podemos rumar a um Poder Judiciário nacional, com padrões uniformes de eficiência. Foi por meio desse poder normativo que foram cortados os supersalários, os horários de funcionamento arbitrários, as promoções injustas e tantas outras ações revolucionárias.

Os ataques ao CNJ, pelo que se vê, são incessantes. Aproveita-se cada oportunidade para se tentar minguar o órgão ou mesmo sepultá-lo de vez. Não fosse o apoio da sociedade brasileira, conquistado pelos resultados de seus esforços, o CNJ não teria se mantido.

Esperamos que o Supremo Tribunal Federal mantenha o respeito ao pacto político-institucional que permitiu a aprovação da Emenda 45, e não imponha, unilateralmente, em desprezo às instituições republicanas e democráticas, uma vontade desvinculada da soberana vontade popular.

Nós lutamos contra esse corporativismo eufemisticamente travestido de preocupação de que o controle externo possa colocar em risco a independência funcional da magistratura. Celebramos, sim, o antídoto constitucional que completa uma década e deve ser fortalecido e não minguado! 

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