Proibição de retrocesso

É ilegítima lei que revogou execução fiscal da União na Justiça estadual

Autor

  • Artur César de Souza

    é juiz federal convocado no TRF-4 pós-doutor pela Università Statale di Milano (Itália) Universidad de Valencia (Espanha) Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal) e Universidade Federal de Santa Catarina doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná doutorando em Filosofia pela Universidade de Barcelona (Espanha) professor da Universidade de Marília e juiz formador da Escola da Magistratura Federal do TRF-4.

11 de abril de 2015, 10h00

Provêm da doutrina norte-americana, capitaneada por Cooley e seguida entre nós por Rui Barbosa, as normas constitucionais em sel-executing provisions e not self-executing provisions, expressão traduzida como normas autoaplicáveis ou autoexecutáveis. Essas normas tratam de preceitos completos que não requerem nenhuma complementação por via de lei infraconstitucional e, assim, têm aplicação imediata. Já as normas não autoaplicáveis ou não auto-executáveis dependem de complementação legislativa para serem executadas.[1]

Nem todas as normas que integram a Constituição são passíveis de incidência imediata em relação à realidade que tratam. Muitas só poderão ser aplicadas, no sentido de plena eficácia, quando da interposição de outra norma, genérica e abstrata, entre o que enuncia e a concretização por ela visada.[2]

As normas não-autoxecutáveis meramente indicam princípios, sem estabelecer normas por cujo meio se logre a dar a esses princípios vigor de lei.[3]

O art. 15 da Lei 5.010/66 teve por finalidade outorgar eficácia plena a uma norma não autoexecutável, no caso, ao §3º do art. 109 da Constituição Federal.  O dispositivo estabelecia que, “nas comarcas do interior onde não funcionar Vara da Justiça Federal, os Juízes Estaduais são competentes para processar e julgar: Inc. I – os executivos fiscais da União e de suas autarquias, ajuizados contra devedores domiciliados nas respectivas Comarcas”.

A autorização para o deslocamento da competência da Justiça Federal para a Justiça estadual decorre de norma de eficácia limitada (de legislação) expressamente prevista na Constituição Federal, art. 109, §3º, da Constituição Federal § 3º – Serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual.

Portanto, o art. 15, inc. I, da Lei 5.010/66, teve por fundamento uma norma de eficácia limitada (de legislação) prevista no §3º do art. 109 da Constituição Federal.

J. H. Meirelles Teixeira divide as normas de eficácia limitada em duas espécies: norma de eficácia limitada programática e norma de eficácia limitada de legislação. A primeira apresenta programas éticos e sociais que devem ser concretizados pelo legislador ordinário. A segunda depende de legislação ordinária para concretizar o núcleo essencial previsto na Constituição.[4]

José Afonso da Silva insere o disposto no §3º do art. 109 da Constituição como sendo de eficácia limitada, pois não apresenta normatividade suficiente sem a expedição de ulterior norma infraconstitucional.

Note-se que a regulação da competência delegada prevista no art. 15, inc. I, da Lei 5.010/66, embora proveniente de uma lei ordinária, jamais perdeu sua essência de norma constitucional, ou melhor dizendo, de instrumento de concretização de princípios e valores previstos na Constituição Federal.

Mudança na legislação
Porém, o art. 15, inc. I, da Lei 5.010/66 foi revogado pelo art. 114, inc. IX, da Lei 13.043/2014, o que significa dizer que a União e suas autarquias poderão promover a execução fiscal na sede da Seção ou Subseção Judiciária Federal, ainda que não seja esse local o do domicílio ou residência do devedor.

A problematização que se coloca em análise é se o legislador ordinário poderia revogar o art. 15, inc. I, da Lei 5.010/66, sem alteração das condições essenciais impostas pela Constituição Federal, tendo em vista que esse dispositivo teve por objetivo concretizar e instrumentalizar em nosso ordenamento jurídico os princípios e valores estabelecidos na norma de eficácia limitada prevista no §3º do art. 109 da Constituição.

É importante salientar que toda a construção normativa do §3º do art. 109 não tem por finalidade outorgar novas prerrogativas (tutelar) à União ou às suas autarquias (tais prerrogativas estão no caput do art. 109, ou seja, foro privilegiado na Justiça Federal), mas sim tutelar aquele que litiga com o ente federado (seja ele no âmbito previdenciário ou de execução fiscal), resguardando o processo público com todas as suas garantias, especialmente a melhor forma de favorecer e resguardar o contraditório e a ampla defesa, mantendo-se o conhecimento e o processamento de determinada questão no domicílio da parte, em tese, menos favorecida em relação ao Poder Público.

A inserção legislativa de nova exceção à competência absoluta da Justiça Federal também estabelece uma nova perspectiva ao princípio do juiz natural, pois, onde não há Vara Federal, a competência para processar e julgar a causa será a Justiça estadual.

E a lei ordinária, ao concretizar e instrumentalizar determinada norma de eficácia limitada programática ou de legislação, deverá incorporar o sistema de valores, concretizando princípios e programas implicitamente agasalhados pelo texto constitucional.[5]

Aliás, conforme já teve oportunidade de afirmar Jorge Miranda, entre as normas programáticas e preceptivas não existe diferença de natureza e valor, uma vez que sua diferenciação encontra-se na estrutura e na projeção no ordenamento, tendo em que vista que nenhuma delas é mera proclamação política ou cláusula não vinculativa.

É importante salientar que a norma prevista no §3º do art. 109 da Constituição Federal, além de ser de eficácia limitada (pois depende de outra norma infraconstitucional para concretizar sua plena eficácia), também estabelece diretrizes (norma constitucional diretiva) a serem seguidas pelo legislador infraconstitucional. Embora essas diretrizes não constranjam o legislador a seguir determinado caminho, obriga-o a não usar via diversa.[6]

O art. 15, inc. I, da Lei n 5.010/66 teve por finalidade justamente concretizar os valores e os princípios consagrados no §3º do art. 109 da Constituição Federal.

A concepção teleológica desse dispositivo tem por objetivo resguardar o direito fundamental do cidadão ao processo público com todas as garantias, em outras palavras, ao devido processo legal, especialmente o princípio previsto no art. 5º, inc. LV, da Carta Magna.

 A Constituição Federal, ao excepcionar a competência da Justiça Federal para julgar causas de beneficiários da previdência social, exteriorizou a essência dessa normatividade,  qual seja, a garantia de melhor concretização do contraditório e da ampla defesa no domicílio do autor, ainda que esse domicílio não seja sede da Justiça Federal.

E a Constituição Federal somente permitiu ao legislador ordinário estabelecer novas exceções à competência da Justiça Federal, caso se verifique essa condição, qual seja, favorecer ao litigante maior concretude ao contraditório e à ampla defesa.

O §3º do art. 109 da Constituição Federal apresenta, indubitavelmente, uma norma diretiva de eficácia limitada, ao estabelecer que serão processadas e julgadas na Justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual.

Na realidade, o §3º do art. 109 da Constituição Federal estabelece uma norma constitucional definidora de direitos, pois, ao permitir a tutela daquele que não possui domicílio na sede de Vara Federal, resguardou dois importantes princípios reguladores do direito fundamental ao processo público com toda a garantia, ou seja, o contraditório e a ampla defesa.

Note-se que a Constituição Federal não permitiu o deslocamento da competência da Justiça Federal para a Justiça estadual por qualquer circunstância fática ou jurídica, mas desde que verificada a condição essencial prevista no §3º da Constituição Federal.

E qual seria essa condição essencial que autorizou o deslocamento de competência?

a) primeiro: não existência de Vara do Juízo Federal na comarca em que for domiciliada a parte que irá litigar com a União ou com suas autarquias;
b) segundo: possibilitar a concretização na sua plenitude do princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório.

Foi o Superior Tribunal de Justiça que reconheceu a competência delegada prevista no revogado art. 15, inc. I, da Lei 5.010/66 com o fundamento de facilitar o princípio da ampla defesa do devedor. A tese foi definida no REsp 1.146.194, pelo sistema de recursos repetitivos:

PROCESSO CIVIL. COMPETÊNCIA. EXECUÇÃO FISCAL.
A execução fiscal proposta pela União e suas autarquias deve ser ajuizada perante o Juiz de Direito da comarca do domicílio do devedor, quando esta não for sede de vara da justiça federal.
A decisão do Juiz Federal que declina da competência quando a norma do art. 15, I, da Lei nº 5.010, de 1966 deixa de ser observada, não está sujeita ao enunciado da Súmula nº 33 do Superior Tribunal de Justiça.
A norma legal visa facilitar tanto a defesa do devedor quanto o aparelhamento da execução, que assim não fica, via de regra, sujeita a cumprimento de atos por cartas precatórias.
Recurso especial conhecido, mas desprovido.
(REsp 1146194/SC, Rel.
Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Rel. p/ Acórdão Ministro ARI PARGENDLER, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 14/08/2013, DJe 25/10/2013)

Portanto, a legislação ordinária somente poderia gerar eficácia à norma diretiva prevista na Constituição Federal se, e somente se, estivessem presentes essas duas condições essenciais impostas pelo §3º do art. 109 da Constituição Federal.

Contudo, uma vez presentes essas condições, e devidamente reconhecida pela norma infraconstitucional integradora, o afastamento da competência da Justiça estadual somente poderá acontecer quando não mais existirem no mundo fático e jurídico as duas condições essenciais, quais sejam, a efetiva instalação de Vara Federal na comarca daquele que tiver que litigar com a União ou suas autarquias e a eliminação de qualquer possibilidade de mácula ao princípio do contraditório e da ampla defesa.

É certo que o legislador infraconstitucional não estava obrigado, exceto nas causas previdenciárias, a indicar quais seriam as hipóteses fáticas e jurídicas que justificariam nova exceção à competência da Justiça Federal, nos termos do caput do art. 109.

Porém, uma vez reconhecido pelo legislador situações fáticas e jurídicas que justificavam a construção de nova exceção à competência da Justiça Federal, esse ato legislativo de reconhecimento aderiu ao núcleo essencial do §3º do art. 109 da Constituição, deixando evidenciado que, sem o deslocamento da competência da Justiça Federal para a Justiça estadual, haveria mácula ao princípio do processo público com todas as garantais, especialmente o contraditório e a ampla defesa.

Na realidade, uma vez integralizada a norma constitucional diretiva de eficácia limitada pela norma infraconstitucional, não será mais possível revogá-la, sem que a condição essencial prevista no texto normativo seja alterada e modificada no plano fático e jurídico.

Qualquer tentativa de revogação da norma infraconstitucional integradora caracteriza, sem dúvida, mácula ao princípio da vedação de retrocesso, que é uma garantia constitucional implícita, de matriz axiológica da máxima efetividade dos direitos constitucionais fundamentais individuais e sociais, dentre eles, o processo público com todas as garantias (contraditório e ampla defesa).

O direito à proibição de retrocesso não se aplica apenas aos direitos fundamentais sociais, mas, igualmente, aos direitos fundamentais e garantias fundamentais do cidadão ao um processo público com todas as garantias. É o que se pode denominar de o direito a ter direito.

A proibição de retrocesso em relação ao direito fundamental a um processo com todas as garantias foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal no AI 598212, cujo relator foi o ministro Celso de Melo, in verbis: 

Assiste a toda e qualquer pessoa – especialmente àquelas que nada têm e que de tudo necessitam – uma prerrogativa básica essencial à viabilização dos demais direitos e liberdades fundamentais, consistente no reconhecimento de que toda pessoa tem direito a ter direitos, o que põe em evidência a significativa importância jurídico-institucional e político-social da Defensoria Pública. (…). por transformar os direitos e as liberdades fundamentais em proclamações inúteis, convertendo-os em expectativas vãs. É que de nada valerão os direitos e de nenhum significado revestir-se-ão as liberdades, se os fundamentos em que eles se apoiam (…) A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. (AI 598212 ED, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 25/03/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-077 DIVULG 23-04-2014 PUBLIC 24-04-2014)

O princípio da proibição ou vedação do retrocesso estabelece que, uma vez sendo implementado ou ampliado pelo Estado-legislador um direito ou princípio fundamental, individual ou social, não poderá ocorrer retrocesso, a não ser que o núcleo essencial da Constituição, que  permitiu essa implantação ou ampliação, também sofra alteração.

Em outras palavras, não pode o legislador ordinário editar normas infraconstitucionais que vão de encontro ao núcleo essencial da norma constitucional de eficácia limitada, sob pena de ser declarada inconstitucional.

Conforme anota Ingo Wolfang Sarlet, fazendo referência a Luís Roberto Barroso, “mediante o reconhecimento de uma proibição de retrocesso está a se impedir a frustração da efetividade constitucional, já que,  na hipótese de o legislador revogar o ato que deu concretude a uma norma programática ou tornou viável o exercício de um direito, estaria acarretando um retorno à situação de omissão”.[7]

Portanto, o art. 114, inc. IX, da Lei 13.043/2014, ao revogar o art. 15, inc. I, da Lei 5.010/66, sem que haja efetiva instalação de Vara Federal no local de domicílio ou residência do executado, feriu o princípio de proibição de retrocesso aos direitos fundamentais individuais e de garantia outorgados pela Constituição Federal, ferindo o núcleo essencial do art. 109, §3º, cuja finalidade é a proteção do processo público com todas as suas garantias, especialmente o contraditório e a ampla defesa.

 


[1] MACEDO. Regina Maria; FERRARI, Nery. Normas constitucionais programáticas. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1994. p. 97.

[2] MACEDO. R.; FERRARI, N.  idem, ibidem.

[3] MACEDO. R.; FERRARI, N., idem, p. 102.

[4] TEIXEIRA, J.H. Mirelles. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 315.

[5] FERRAZ JÚNIOR. Tercio Sampaio. Constituição de 1988: legitimidade, vigência e eficácia, supremacia. São Paulo: Atlas, 1989, p. 11.

[6] MACEDO. R.; FERRARI, N., op. cit., p. 104.

[7] SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 428 e 429.

Autores

  • é juiz federal auxiliar da vice-presidência do TRF-4, doutor pela Universidade Federal do Paraná e pós-doutor pela Università Statale di Milano (Itália); Universidad de Valencia (Espanha); Faculdade de Direito de Lisboa (Portugal) e Universidade Federal de Santa Catarina. Também é pesquisador da Capes e membro do IBDP.

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