Polarização acentuada

Direito de autor no Brasil atravessa uma profunda crise

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10 de abril de 2015, 9h35

O direito de autor é terreno de batalhas, de atribuição de vilanias.

E no Brasil, em tempos de polarização acentuada no futebol, na religião e na política, o direito de autor tem um pouco dos três.

Visto como uma categoria jurídica de “menor importância”, o direito de autor é assunto como outro qualquer quando o tema é a dificuldade em escutar as ideias alheias.

De modo sintético, classifico as tendências de modo bastante universalizado, assumindo os riscos:

1 – de ser tachado de reducionista (todos somos quando dizemos que os argentinos são de um modo e os franceses de outro);

2 – de ver a minha classificação se transformar numa espécie de taxonomia inútil que nem eu mesmo poderia compreender.

Ainda assim, denomino os autoralistas (nosso nome de casta!) contemporâneos de conservadores e libertarianistas.

Uma espécie, portanto, de taxonomia que leva em conta uma visão um tanto quanto possível fora do campo de batalha do direito de autor, excluída dos interesses ainda que, obviamente, uma (minha) Weltanshauung seja identificável e meus pre-juízos não me deixem em paz!

Escusas à parte — parodiando e provocando Lenio Streck — não criei a sintética, quiçá, simplória taxonomia por ter atendido aos anseios da minha consciência, mas a meus pré-juízos. Ainda assim, poderia consultar minha consciência, pois não sou juiz…

Conservadores são, em poucos caracteres, os entusiastas de que o direito de autor seja mantido integralmente com seus velhos fundamentos (muitos dos quais oriundos do século XVIII) e outros ainda mais radicalmente aplicáveis na contemporaneamente e os libertarianistas, por sua vez, são os que pretendem flexibilizar o direito de autor destituindo-o de suas (eventualmente) principais características.

Ambos estão corretos. E equivocados. A la vez

A gênese da discussão se dá porque parte significativa dos autoralistas está envolvido com algum setor e, portanto, levanta bandeiras mais ou menos acentuadas em concepções ideológicas. Atenção: eu disse parte significativa, não todos. Não estou desvalorizando a discussão, mas explicando porque ela é tão acentuadamente polarizada, religiosamente polarizada, “wyllysbolsonariamente” polarizada.

O grande número de (novos) doutrinadores, no Brasil e no exterior, vinculados a setores ou ideologias que defendem (ou com as quais se identificam), acabam por deixar de centralizar o debate em temas técnicos e misturam doutrina (no sentido do conhecimento, da academia) com doutrina (no sentido religioso fundado-fundante de sedimentações de ideias a todo custo).

Assim, as clássicas polarizações do (velho) direito de autor exemplificadas nos conflitos tais como: gravadoras versos artistas, Ecad versus usuários de obras musicais, autores versus editoras, entre outras, se mantém, em alguma medida, no generalíssimo conflito conservadores versus libertarianistas.

Os  conservadores ecoam (irritantemente) Le Chapellier desde o século XVIII: a obra fruto do pensamento de um escritor é mais sagrada, a mais legítima, a mais inatacável das propriedades!

E respondem os libertarianistas (falseando argumentos): o direito de autor é contra a liberdade de expressão e de acesso à informação!

Gás lacrimogêneo. Cortina de fumaça. Fim dos conflitos. A multidão se afasta sem discutir o assunto!

Os conservadores e libertarianistas citados são os extremistas.

Há, porém, os que pretendem solucionar os conflitos decorrentes do contemporâneo direito de autor, como por exemplo a aberração jurídica prevista na nossa lei em vigor que indica que somente se pode fazer cópias em um único exemplar, de pequenos trechos da obra copiada, sem intuito de lucro, para uso privado do copista, sendo que a cópia tenha sido feita por ele[1]. Faltou definir pequeno trecho, o que é o uso privado, como ele deve fazer a cópia, como seria o único exemplar e, etc…

Se a cópia pode ser digital, se abarca cópias de textos digitais (como da ConJur…)

Alguém diria: — Deixemos para os juízes decidirem…

Puf!!!! Desmaiei. Discricionariedade em matéria desconhecida é o mesmo que dar uma granada para um macaco. Ele vai examinar, examinar, examinar e uma hora vai puxar o pino. Deixem os juízes em paz, eles tem muito o que fazer!!!

O que piora a polarização, além do elemento negativo das ideologizações (há exceções, insisto e conheço muitas) é o falso entendimento sobre a matéria.

Aquele sujeito que diz que vai “registrar uma ideia”, “patentear uma música” e que “não há plágio porque não se utilizou mais do que oito compassos da música”.

Ideias não são protegidas por direito de autor, somente a forma exteriorizada das ideias transformada em obra e suscetível de percepção pelos sentidos. O registro possui somente natureza declaratória nos países do sistema romano-germânico (com exceção única, talvez, da lei argentina[2]). Assim, não se “registra” uma ideia e, por outro lado, uma obra, pode ou não ser registrada. Convém o registro como meio de prova, mas não constitui o direito[3].

Patentear uma música nunca ocorrerá pois a patente é meio de proteção voltado à indústria, ao comércio e ao setor industrial e se refere a processos de invenção e não de criação artística.

E a lei brasileira não prevê nenhum número de compassos para que se configure plágio. (sobre plágio e da originalidade, ver aqui)

A gênese da discussão no ambiente do direito de autor decorre do fato contraditório de que o direito de autor entrou, definitivamente, na moda. E, como consequência, passou a ser odiado. Como???

Explico: com o advento das novas (algumas nem tão novas) tecnologias, e com o acentuado desenvolvimento da “sociedade tecno-comunicacional”, o direito de autor passou a ser de interesse de todos.

Algumas justificativas:

Primeiro ponto — O uso das ferramentas da sociedade tecno-comunicacional favorece o interesse dos jovens pelos direitos a elas relacionados. Com isto, é bastante interessante para os novos juristas compreender a relação (ainda que complexa) que possa decorrer do uso de Whatsapp, Facebook, Spotify, Deezer. E cá entre nós, sejamos sinceros, em linhas gerais, para um jovem, estudar estes temas que se relacionam com a sua vida cotidiana parece mais empolgante do que estudar a aplicabilidade de prisão preventiva, alíquota do ICMS, dação em pagamento.

Deixe-me justificar antes de ser alvejado pelo primeiro petardo: não estou afirmando que o direito de autor é mais importante que tais temas, estou indicando que, em tese, possivelmente e eventualmente para os jovens, talvez estes temas sejam mais interessantes. Tautológico: isto quer dizer o que quer dizer. Sendo agora “bitautológico”: temas que atraem mais jovens talvez sejam mais interessantes para os jovens. Estudantes de Direito tem se interessado, de modo significativo pelo direito das novas tecnologias e direito de autor também porque refletem temas de sua cotidianidade.

Tendo chegado a este ponto sem ser alvejado passo ao segundo.

Segundo ponto — As atividades cotidianas estão, portanto, muito relacionadas com o modo de produção e difusão de obras de diversas naturezas e as ferramentas também aproximam o receptor do difusor e do criador de tal modo que, o difusor de uma obra é o receptor de outra que é o autor de outra. E assim vamos…

Ora, atos cotidianamente relacionados com as novas tecnologias estão permeados de atividades que interessam ao direito das novas tecnologias e, consequentemente ao direito de autor.

Por isso, o interesse pelo direito de autor. O direito de autor invadiu a vida cotidiana das pessoas, mas não por mérito próprio, e sim pelas condições impostas pela tecnologia. Não há nenhum talento próprio de sua parte. Ninguém troca vídeos curiosos ou fotos engraçadas por mensagens em Whatsapp porque são protegidas ou não por direito de autor. Trocam por que os vídeos são curiosos, as mensagens são engraçadas e porque a tecnologia permite condições de fazê-lo.

O direito de autor, portanto, vai correndo atrás da sua própria sustentabilidade.

E, desde que em meados dos anos 1990 a sociedade tecno-comunicacional permitiu um extraordinário avanço na difusão de obras e uma reviravolta (este é mesmo o nome) nos sistema de distribuição de obras, o direito de autor foi condenado à morte. Muito se alardeou: — Com a internet o direito de autor vai morrer. Nada mais equivocado! A possibilidade de distribuição de obras e o advento da tecnologia não somente não matam o direito de autor mas aceleraram o seu processo de nascimento (pois foi assim) e de crescimento (e assim se mantém).

O máximo que se poderia dizer é que o direito de autor é altamente esquizofrênico. É um cachorro correndo para pegar o próprio rabo.   

Ora, com o surgimento da imprensa moderna na Europa central o direito de autor vai aparecendo sob a forma de privilégios de impressão[4]. Não se falava em privilégios de impressão antes pois não havia impressão. Simples assim.

E, repare, com o surgimento das novas tecnologias o direito de autor não vai “diminuir” ou “morrer”. Muito pelo contrário, novos direitos surgem em decorrência das novas circunstâncias fáticas como é o caso, por exemplo, do direito de disponibilização por meios digitais. O erro dos conservadores é querer manter os velhos direitos no mesmo terreno quando o terreno é outro. O erro dos libertarianistas é não compreender que novos direitos podem e devem surgir.

O terreno é outro e há novos direitos! Aceitem! Estas constatações são justas e devem ser aceitas. Admitam que suas ideologias e defesas de interesse não permitem estas reflexões. E passemos, então, a analisar outro aspecto que é verdadeiramente fundamental: o direito de autor se baseia numa lógica relativamente simplória, qual seja: a de que no meio produtivo vinculado ao domínio das artes, da cultura e das ciências é justo que o sujeito-criador participe proporcionalmente do resultado econômico assim como todos os demais participantes do processo produtivo. Esta é a lógica econômica do direito de autor. Não é somente meritocracia, mas socialmente justa e meritocrata. Daí a minha defesa dos direitos de remuneração, muitas vezes em detrimento dos direitos de natureza exclusiva. Remunerar o uso dos criadores em proporção ao uso genérico da obras é justo e permite a participação social e equilíbrio nas atribuições econômicas, além de afastar eventuais excessos exclusivistas, típicos do direito de autor. Sigo nesta linha já se vão 15 anos.

Pode-se concluir, portanto, que o direito de autor, como todo o Direito, atravessa uma profunda crise. Crise pela falta de compreensão do locus que ocupa, crise pelo avanço das tecnologias, crise pela polarização acentuada, crise pelo esvaziamento da ética.

O fato de haver posicionamentos ideológicos e uma difusão de ideias tecnicamente equivocadas afasta o entendimento concreto e efetivo sobre o direito de autor, ao mesmo tempo em que a curiosidade dos não-autoralistas e não-técnicos aumenta.

Ora, a popularização do interesse pelo conhecimento da matéria e a ideologização do setor somadas a pouca difusão técnica dos fundamentos técnicos faz com que todos tenham a ideia de que podem opinar e tratar (tecnicamente) do direito de autor como se discute temas sem necessidade de maior conhecimento técnico. Pior, a soma destes fatores conduz a que o público em geral se filie a uma ou outra corrente ideológica.

Direito de autor não é tema de botequim!

Neste particular, obviamente levam enorme vantagem as tendências libertarianistas que apresentam intenção de diminuir o escopo protetivo e as exclusividades. Resultado: aos olhos do leitor ordinário, o direito de autor se transforma, paradoxalmente, num “direito da moda” e, ao mesmo tempo, inimigo dos interesses da sociedade:

— Ora, como se pode pretender aumentar o escopo de proteção de qualquer direito (querer mais direitos, no popular)? Diriam uns.

— Ora, como se pode pretender que os autores possam desejar ser remunerados se a internet é livre? Diriam outros…

Em situações de maior complexidade, é razoável que os neófitos ou os que não tem formação técnica se voltem à resposta mais simples. A polarização é um convite à solução rápida. Se isto tem ocorrido na política nacional, imagine numa área de menor amplitude. E, como parte da sociedade quer transformar Direito em matemática, a tendência aumenta. Um mais um é dois, desde que me interesse fazer a soma, senão, mudo a operação matemática! Nada mais ideológico do que mudar as “operações matemáticas” nas análises dos fatos que lhes sejam favoráveis (e o que mais se tem visto nas discussões políticas polarizadas no Brasil hoje em dia).

O que agrava a situação é o fato de os tribunais apresentarem, também, tendências reducionistas e um mesmo escopo de falta de conhecimento técnico sobre o tema, guardadas as proporções aplicáveis se comparados juristas e não juristas.

E não pensem que é exclusivo do Brasil a má qualidade das decisões sobre direito de autor e, mais amplamente propriedade intelectual. Isto é um conceito universal.

Retrato da crise: desenvolvimento acentuado das novas tecnologias e curiosidade pelo direito de autor, popularização do (falso) conhecimento sobre o direito de autor, polarização genérica (conservadores versus libertarianistas), enquadramento simplório em cada um destas tendências e acentuadas decisões judiciais equivocadas.

Retrato da solução: valoração ética, aceitação argumentativa, disposição ao diálogo, hermenêutica livre de pré-juízos inautênticos e alimentados por ideologias.


[1] Lei 9610/98, Artigo 46, inciso II.

[2] Lei 11.723 de 1933. Art. 59. El Registro Nacional de la Propiedad Intelectual hará publicar diariamente en el Boletín Oficial, la nómina de las obras presentadas a inscripción […] Pasado un mes desde la publicación, sin haberse deducido oposición, el Registro las inscribirá y otorgará a los autores el título de propiedad definitivo si éstos lo solicitaren.

Art. 63. La falta de inscripción trae como consecuencia la suspensión del derecho del autor hasta el momento en que la efectúe, recuperándose dichos derechos en el acto mismo de la inscripción […]

[3] Quaisquer outras formas admitidas em direito. A publicação, portanto, no Conjur, pode ser utilizada como meio de prova eficaz da anterioridade da autoria por parte dos autores dos textos aqui publicados.

[4] Os primeiros privilégios autorais teriam sido atribuídos ao historiador de Veneza Marc’Antonio Sibellico (Decades rerum Venetarum, em 1486). Ver, a respeito, a base de dados do Primary Sources on Copyright:  http://copy.law.cam.ac.uk/cam/tools/request/showRecord.php?id=record_i_1486

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