Liberdade de expressão

Controle das coisas públicas pela sociedade é feito pela imprensa

Autor

  • Alexandre Fidalgo

    é doutor em Direito pela USP mestre em Direito pela PUC-SP advogado e sócio do escritório Fidalgo Advogados. Integrante do conselho jurídico da Fiesp e do conselho de liberdade de expressão da OAB Federal.

8 de abril de 2015, 8h05

Spacca
O artigo 1º da Constituição Federal consagra que o Estado brasileiro adotou como forma de governo a República, no caso a República Federativa. Por República devemos entender algo mais do que simplesmente uma forma de governo, contrapondo à Monarquia. Aristóteles já conceituava República como sendo o governo em que o povo governa no interesse do povo. Como sabemos, república está a significar res publica, coisa do povo, ou seja, as diversas coisas da sociedade pública, às quais todos (o povo) têm igual direito[1].

Também no mesmo artigo 1º, o constituinte brasileiro optou pelo regime Democrático, ao afirmar que a República Federativa do Brasil constitui um Estado Democrático de Direito. Devemos ressaltar que um dos princípios fundamentais de um Estado Democrático é a transparência dos atos do governo, previsto inclusive no artigo 37 da Carta Magna. É com esse mesmo sentido que Bobbio define governo da democracia como o governo do poder público em público.[2]  

Como podemos perceber, a transparência dos atos do governo é uma condição das repúblicas democráticas, necessária para uma participação social efetiva nos assuntos públicos.

O professor Celso Antonio Bandeira de Mello, nesse sentido, define que:

“Consagra-se nisto (princípio da publicidade) o dever administrativo de manter plena transparência em seus comportamentos. Não pode haver um Estado Democrático de Direito, no qual o poder reside no povo (art. 1º, parágrafo único, da Constituição), ocultamento aos administrados dos assuntos que a todos interessam, e muito menos em relação aos sujeitos individualmente afetados por alguma medida.”[3]

Daí a importância, para uma efetividade do Estado Democrático, que seja garantida à sociedade brasileira o acesso às informações públicas, a fim de que se possa tomar conhecimento dos atos do governo e, de alguma forma, exercer fiscalização.

No Brasil, o direito de acesso à informação pública tem previsão a partir da Constituição de 1988, especialmente no artigo 5º, inciso XIV (é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte), inciso XXXIII (estabelece que todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado). Percebe-se, portanto, uma preocupação do constituinte, afinado com a ideia de democracia, de banir da política do Estado práticas secretas, privilegiando a informação da sociedade a respeito da coisa pública.

É de se lembrar que a única ressalva feita pelo constituinte brasileiro, restringindo o acesso à informação pública, diz respeito aos assuntos que envolvem a segurança do Estado e da sociedade, como também ressalvou o segredo ao sigilo de fonte quando indispensável ao exercício profissional.

Da Constituição Federal de 1988 para cá, pouca foi a produção legislativa a respeito do assunto, tendo sido apresentados alguns projetos de lei. Em maio de 2009 foi encaminhado ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 5.228/2009, propondo a regulamentação do inciso XXXIII do artigo 5º da Constituição Federal, que dispõe sobre o direito de acesso à informação pública, bem como do inciso II do parágrafo 3º do artigo 37, que trata dos princípios que a administração pública deve observar, e do parágrafo 2º do artigo 216 da Constituição Federal, que trata da consulta e gestão da documentação governamental.

O Projeto referido, renomeado no Senado para Projeto de Lei 41/2010, foi convertido, em 2011, na Lei 12.527, conhecida como a Lei de Acesso à Informação.

Indiscutivelmente, o direito de acesso à informação, considerado um direito fundamental da humanidade, consoante reconhecimento da ONU, OEA, OSCE, entre outros organismos internacionais, regulamentado pela Lei 12.527 e presente desde a Constituição Federal de 1988 como valor fundamental de uma República Democrática, reforça a ideia de transparência do Estado Democrático brasileiro.

Não é por outra razão que a lei de acesso à informação pública consignou que os procedimentos previstos serão executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública (artigo 3º), destacando como valor essencial a observação da publicidade como preceito geral e tendo como exceção o sigilo (I), além de ressaltar o fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na administração pública (IV) e do controle social da administração pública (V).

Portanto, temos em nosso sistema um instrumento jurídico que garante à sociedade brasileira o direito, na verdade o exercício do direito, de saber as motivações tomadas pelo Estado e que consultam o interesse da sociedade. O Brasil republicano e democrático criou um aparelho jurídico, consonante os valores constitucionais e previstos pelos organismos internacionais, que dá à sociedade a possibilidade do exercício do controle das coisas públicas.

“Só que não”. Na verdade, toda a base teórica acima tratada constitui reprodução absolutamente verdadeira da lei e dos valores constitucionais brasileiros, absolutamente negados pela administração pública.

Tanto a Constituição Federal como a Lei de Acesso à Informação Pública, como visto, tratam a transparência (publicidade) como regra geral a guiar os objetivos da República brasileira, indicando, como exceção a esse valor maior, situação que importar risco à segurança da sociedade e do Estado. No entanto, para a administração pública, especialmente a federal, a regra geral parece ser a da exceção.

Muito embora o mencionado diploma legal (Lei 12.527) tenha relativa jovialidade, temos algumas questões judicializadas no país. Em todas as ações consultadas, busca-se acesso à informação de dados públicos, como, por exemplo, o que está a motivar o BNDES a conceder empréstimos a determinadas empresas, informação registrada necessariamente em documento específico do banco[4]; o nome das empresas que receberam empréstimos do Banco do Nordeste do Brasil decorrente do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE)[5]; a íntegra dos autos em que foi processada auditoria pela Comissão interna da Petrobras, envolvendo a apuração/averiguação das denúncias de prática de corrupção por funcionários da Petrobras e a SBM Offshore[6].

A negativa da administração pública não está calcada na segurança da sociedade ou do Estado, fundamentos a impedir o acesso à informação pública. As razões são inúmeras, mas revelam, efetivamente, o uso político do Estado para esconder o que é de direito da sociedade saber, negando valores republicanos e democráticos, bem como desconsiderando o recente diploma normativo.

Não adianta o Estado criar leis para com elas bradar que a administração pública brasileira obedece ao princípio da transparência, quando, na verdade, o que mais faz é esconder da sociedade as razões de seus atos de gestão da coisa pública, os motivos pelos quais renunciou créditos com países africanos, as razões de investimento em portos alienígenas, entre outras questões mantidas em segredo.

BOBBIO, aqui citado, escreve que a exigência da publicidade dos atos do governo é importante não apenas, como se costuma dizer, para permitir ao cidadão conhecer os atos de quem detém o poder e assim controlá-los, mas também porque a publicidade é por si mesma uma função de controle, um expediente que permite distinguir o que é lícito do que não é.[7]

Nesse sentido, não é democrático um Estado em que as decisões políticas sejam tomadas sob a penumbra, sem que sejam dadas a conhecer não apenas as deliberações em si mesmas, como também as razões que as inspiram, uma vez que se tratam dos critérios utilizados pelos representantes do povo.[8]

A propósito, a penumbra remete a uma figura hoje bastante conhecida da gestão pública, a corrupção, conforme escreve a professora CAGGIANO:

“(…) o termo corrupção indica quaisquer ações praticadas de forma camuflada, a partir de uma zona de penumbra, à margem das linhas comportamentais norteadas pela lei e pela moral, sempre com vistas à obtenção de vantagens individuais ou em prol de um grupo intangíveis pelas vias ordinárias”.[9]

Como visto no início do texto, o estado republicano é incompatível com privilégios hereditários, típicos de estados monárquicos, e a democracia impõe uma necessária transparência aos atos do governo, até porque destinam-se, no final da linha, a atender os interesses da sociedade.

Não reconhecemos razão alguma para que alguns órgãos do Estado possuam privilégios de manter em segredo informações e dados de interesse da sociedade. O exercício do controle das coisas públicas pela sociedade se faz, sobremaneira, pela atividade de imprensa, no exercício de seu mister jornalístico. A imprensa tem se valido da Lei 12.527 como instrumento jurídico para materializar o direito fundamental democrático, buscando dar transparência aos atos do governo e, lamentavelmente, tem recebido um “não”, sob os mais absurdos fundamentos.

Como sempre, vale a citação do brilhante Rui Barbosa, todo o poder que se oculta, perverte-se.


[1] Cf. Cícero, Da República.

[2] BOBBIO, Norberto, Il futura dela democrazia, trad. Port. De Marco Aurélio Nogueira, 10ª ed., São Paulo, Paz e Terra 2000

[3] Curso de Direito Administrativo, 14ª ed., São Paulo: Malheiros, 2002

[4] Processo nº 2011.51.01.020225-7 – 5ª Vara Federal do Rio de Janeiro – TRF 2ª Região

[5] Processo nº 0847352-85.2014.8.06.0001 – 37ª Vara Cível de Fortaleza

[6] Processo nº 0135263-44.2014.4.02.5101 – 20ª Vara Federal do Rio de Janeiro – TRF 2ª Região

[7] BOBBIO, Norberto. Ob. Cit.

[8] Conf. FIDALGO, A.; FULIARO, Ana Paula. A democracia e a transparência dos negócios públicos. In: CONPEDI/UNINOVE. (Org.) Teoria do estado e da constituição. 1ª ed. Florianópolis, 2013, v., p. 7-529

[9] CAGGIANO, Monica Herman Salem. Corrupção e financiamento das campanhas eleitorais. Revista de Direito Constitucional e Internacional, v. 10, 2002

Autores

  • Brave

    é sócio titular do escritório Fidalgo Advogados, doutorando em Direito Constitucional na USP; mestre em Processo Civil pela PUC-SP; especializado em Direito da Comunicação e Direito Penal.

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