Via alternativa

"Ter acesso à justiça não significa ter acesso ao Judiciário"

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8 de abril de 2015, 8h53

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Antes de ser ministro, Barroso Filho foi promotor, juiz e auditor da Justiça Militar.
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José Barroso Filho tornou-se ministro do Superior Tribunal Militar em abril do ano passado credenciado por currículos acadêmico e profissional dos mais ecléticos. Com cursos de pós graduação em Direito Econômico e em Administração Público, além de uma graduação na Escola Superior de Guerra, ele foi promotor de Justiça na Bahia, juiz de Direito em Minas Gerais e Pernambuco e juiz auditor da Justiça Militar em metade dos estados brasileiros. Antes de chegar ao STM, passou ainda pelo Conselho Nacional de Justiça, como juiz auxiliar da presidência, na gestão da ministra Ellen Gracie. Antes ainda, foi assessor do Ministério da Defesa.

Por isso, o ministro da Justiça Militar se sente à vontade para falar dos mais variados temas e, com frequência, invoca sua experiência pessoal para reforçar suas teses. É o que faz quando aponta a ouvidoria de empresas e órgãos públicos como um forte indutor para a solução alternativa de conflitos. Designado ouvidor do Supremo Tribunal Militar, ele fez o curso de ouvidor, certificado pela Associação Brasileira de Ouvidores/Ombudsman. “O objetivo é fazer da Ouvidoria do Superior Tribunal Militar um canal de comunicação com a sociedade com base na transparência, ética e comprometimento  com o aperfeiçoamento dos serviços prestados pela Justiça militar”, diz.

Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, sustenta que o sistema judicial brasileiro está praticamente no limite de sua capacidade para atender a grande demanda criada a partir da Constituição de 1988. Sem pensar em restringir o acesso ao Judiciário, ele defende o estímulo aos meios alternativos de solução de conflito para desafogar o sistema: "Ter acesso à justiça não significa ter acesso ao Judiciário", diz ele.

ConJur – Tramitam hoje no sistema judicial brasileiro 100 milhões de processos. O que levou o Brasil a esse fenômeno de hiperlitigiosidade?
José Barroso Filho
– A explosão de demandas judiciais é uma afirmação da cidadania. Desde a promulgação da Constituição de 1988, o número de processos ajuizados multiplicou-se em mais de 80 vezes, enquanto o número de juízes chegou apenas a quintuplicar. Em 1988 tínhamos 4,9 mil juízes; em 2013, 16.429. Não há dúvida que a alta litigiosidade conjugada com a pouca utilização de meios alternativos de solução de litígios (conciliação processual e pré-processual, mediação e arbitragem) ocasiona uma demora na prestação jurisdicional o que leva a não solução do caso, em tempo razoável. Isso não ocorre por falha do Poder Judiciário, que já atua no seu limite e nem significa que o cidadão não deva buscar  os seus direitos. Mas demonstra que este modelo de judicialização imediata dos conflitos chegou à exaustão.

ConJur – Por que o senhor diz que o sistema atual esgotou sua capacidade de atender à demanda por Justiça da sociedade?
José Barroso Filho
– Segundo o último relatório Justiça em Números, do CNJ, ao final de 2013, todos os ramos da Justiça contabilizavam 16.429 magistrados e 412.501 servidores. Existiam, na média geral, oito magistrados para cada cem mil habitantes. Tramitavam, então, na Justiça brasileira cerca de 95 milhões de ações somando os casos novos e os processos pendentes de baixa. Em todas as esferas, o Poder Judiciário prolatou 25,7 milhões sentenças, com uma média de 1.564 sentenças por magistrado, o que posiciona o Judiciário brasileiro como um dos três mais produtivos do mundo. Vale destacar que, em 2013, 27 milhões de processos foram efetivamente baixados. Em um universo de 22.256 cargos de magistrados, apenas 16.429 (74%) estão providos, ou seja, mantida a atual produtividade média por magistrado, com o provimento destes cargos poderíamos ter um acréscimo de 11,8 milhões de processos.

ConJur – É sabido que grande parte do acervo de processos pendentes é de execução?
José Barroso Filho
– Cerca de 42 milhões de processos são execuções fiscais, feitos que, quando não encontrados os executados ou quando não há bens, os processos permanecem suspensos sem que o magistrado possa adotar outra postura senão aguardar. E o estoque aumenta a cada ano. Mesmo com todas as dificuldades na área de execução, percebe-se que nas execuções não fiscais — com dados do sistema BacenJud — houve a expedição de 4,3 milhões de determinações de bloqueio de valores resultando em R$ 24 bilhões de reais em ativos bloqueados — situação que demonstra a intensa atividade dos magistrados.

ConJur – O senhor defende a busca alternativa de solução de conflitos como a saída para o congestionamento do Judiciário.
José Barroso Filho –
O estímulo à prática da conciliação e a divulgação de métodos autocompositivos significa proporcionar uma solução efetiva para os conflitos. Sobretudo, reflete a postura de uma sociedade preocupada com a realização do bem comum, o que vai ao encontro da finalidade maior do Estado Democrático de Direito. A observância das medidas conciliatórias propicia maior rapidez na pacificação dos conflitos e não apenas a solução da lide, com resultados sociais expressivos e reflexos significativos na redução do número de processos judiciais. Somente quando as partes não conseguem chegar a um acordo, aí sim, deve-se utilizar a forma impositiva. Por isso, a conciliação deve ser incentivada e utilizada no processo, funcionando como verdadeiro filtro. Com a redução de processos conclusos para sentença, o juiz disporá de mais tempo para se debruçar sobre causas que efetivamente necessitem de sua função técnica.

ConJur – Isso não significa restringir o acesso à Justiça?
José Barroso Filho –
Acesso à justiça não é, necessariamente, acesso ao Judiciário. Trago uma experiência que implementei, no inicio da década de 90, quando exercia a magistratura estadual em Pernambuco. Ante centenas de execuções movidas por entidades bancárias, em razão de dívidas contraídas por agricultores, a ideia foi instituir uma fase de conciliação nos Embargos à Execução. Vários acordos foram firmados com a diminuição substancial das dívidas e/ou parcelamento, de modo a manter a atividade econômica e o sustento de inúmeras famílias. Digna de nota é a conciliação pré-processual, experiência que pude presenciar na Seção Judiciária do Distrito Federal, na qual a Justiça Federal consegue elevados índices de conciliação, antes mesmo do processo chegar às Varas Federais. Importantíssimo o movimento iniciado pelo CNJ em 2006, sob a presidência da ministra Ellen Gracie, que resultou na campanha “Conciliar é legal”, que se repete até hoje em todos os ramos do Judiciário. Inclusive, mesmo na condição de Ministro do Superior Tribunal Militar, na Semana da Conciliação em 2014, tive a feliz oportunidade de sentar à mesa de conciliação e participar de várias audiências de conciliação no âmbito da Justiça Federal em Brasília.

ConJur – Os juízes estão preparados para conciliar, antes de julgar?
José Barroso Filho –
Alvissareira é a criação, pelo Ministério da Justiça, por iniciativa da Secretaria de Reforma do Judiciário, da Escola Nacional de Mediação e Conciliação (Enam), com a finalidade de oferecer capacitações e cursos presenciais e à distância, em técnicas de mediação, conciliação, negociação e outras formas consensuais de solução de conflitos.

ConJur – Há consenso na administração pública quanto à necessidade da conciliação?
José Barroso Filho –
Precisamos de mudança cultural para fugir desta caótica cultura do litígio em direção à valorização do diálogo e das soluções autocompositivas, reservando o caminho judicial só em última instância. Confirmando a sinergia interinstitucional, Judiciário, Legislativo e Executivo somam esforços para o aprimoramento dos institutos e procedimentos na área de  Mediação (Projeto de Lei 405/2013) e Arbitragem (Projeto de Lei  406/2013), ambos em tramitação no Senado Federal, sob a relatoria do Senador Vital do Rêgo. Da mesma forma, há tratativas entre o Judiciário e o Executivo (Ministério da Educação) para a inclusão nos currículos dos cursos de Direito, como matéria obrigatória, a disciplina: Técnicas de Conciliação e Mediação.

ConJur – O senhor defende também que as ouvidorias tenham um papel mais ativo na solução de conflitos.
José Barroso Filho –
Se muito das divergências surge do relacionamento das instituições com os cidadãos, cabe às próprias instituições criar um canal de entendimento e solução, ou seja, promover uma gestão ativa e consequente destes conflitos. Nesse sentido, surge a Ouvidoria como um canal de comunicação direto entre o cidadão e as organizações. A ouvidoria no Brasil foi inspirada no modelo de ombudsman da Suécia, criado há mais de 200 anos, e se fortaleceu com a Constituição de 1988, que vivamente incrementou níveis de participação democrática do cidadão/consumidor. Atuando como mediador, o Ouvidor valoriza as pessoas, facilita a comunicação, possibilitando um diálogo pacífico ensejando que as próprias partes encontrem uma solução satisfatória para o conflito. É um órgão estratégico um poderoso instrumento para a transformação institucional permanente, favorecendo mudanças e ajustes em suas atividades e processos, em sintonia com as demandas da sociedade, ou seja, um caminho efetivo na busca da qualidade, da transparência e da efetividade da cidadania.

ConJur – Como a Ouvidoria pode colaborar nesse processo?
José Barroso Filho – A Ouvidoria deve ter um duplo olhar, visando a garantia dos direitos do usuário e a funcionalidade da instituição. Ela tem por finalidade mediar as relações entre as pessoas e as organizações. Tem por propósito conhecer o grau de satisfação do usuário, buscar soluções para as questões levantadas, oferecer informações gerenciais e sugestões aos dirigentes da empresa ou do órgão, visando o aprimoramento dos seus produtos ou dos serviços prestados, contribuindo para a melhoria dos processos administrativos e das relações interpessoais com seus públicos, interno e externo. No âmbito interno, o ouvidor é um mediador de conflitos, defensor das relações éticas e transparentes, que busca soluções junto às áreas da organização, sensibilizando os dirigentes e recomendando mudanças em processos de melhorias contínuas, influenciando os gestores para que a organização tome a decisão mais correta e de acordo com os direitos dos cidadãos.

ConJur – Como o senhor avalia a atuação do Judiciário no tocante à criminalidade?
José Barroso Filho – Criminalidade se enfrenta com política criminal definida e compartilhada pelos agentes públicos que atuam na área. Trata-se de uma questão nacional e diz respeito a todos os brasileiros.  O enfrentamento desse grave problema depende da atuação firme e articulada do Legislativo, Executivo e Judiciário e mesmo de toda a sociedade. Não há dúvida que a questão da segurança do Estado está hoje imbricada com a Segurança Pública, pois a droga que passa pelas fronteiras é a que destrói famílias, e as armas que por lá são traficadas aniquilam destinos. A criminalidade é multifatorial. A falta de acesso a serviços públicos cria um “caldo de cultura” propício ao ilícito, muito pela falta da sensação de pertencimento. Sobretudo, é necessário um correto e direto enfrentamento da questão, sem escapismos ou radicalismos.

Conjur – Prisão é a melhor arma contra o crime?
José Barroso Filho –
Descriminalizar um comportamento porque as prisões são masmorras é escapismo e leva à impunidade. Se comete crime, deve ser sancionado. Não tolerar o crime não significa dizer que a única resposta seja a prisão. Flexibilizar as sanções penais para ter um leque que possibilite uma resposta mais proporcional é um bom caminho. Se por um lado, o Judiciário não pode precipitar suas decisões em decorrência do clamor popular, impaciência e indignação da vítima ou interesses eleitorais momentâneos, não é razoável deixar de dar a adequada e proporcional resposta às infrações cometidas.

ConJur – Há espaço para conciliação em matéria penal?
José Barroso Filho –
Faz-se necessário um maior estímulo à conciliação no ambiente criminal, o que permitiria a dedicação de esforços maiores aos processos em que a conciliação não fosse possível, de modo a destravar a máquina judiciária. Estes mecanismos avançam no mundo com diversas denominações, a saber: pattigiamento, na Itália, plea bargaining, nos EUA, e bagalellisation, na França; além da transação penal e suspensão condicional do processo, no Brasil. Poderíamos avançar mais neste campo, com algumas alterações na Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995), de modo a ampliar o âmbito de atuação dos Juizados Especiais, incrementar a aplicação das penas alternativas à prisão e incentivar a implantação do modelo APAC no Sistema Penitenciário Nacional.

ConJur – A audiência de custódia pode contribuir para a solução do caos carcerário?
José Barroso Filho –
A audiência de custódia objetiva  garantir que, em até 24 horas, o preso seja apresentado e entrevistado pelo Magistrado, em uma audiência em que serão ouvidas também as manifestações do Ministério Público, da Defensoria Pública ou do advogado do preso. Durante a audiência, será analisada a prisão sob o aspecto da legalidade, da necessidade e adequação da continuidade da prisão ou da eventual concessão de liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares, além de eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras irregularidades. A implementação das audiências de custódia está prevista em pactos e tratados internacionais assinados pelo Brasil, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 9º) e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos (art. 7º), conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica e já é utilizada em muitos países da América Latina e na Europa, onde a estrutura responsável pelas audiências de custódia recebe o nome de Juizados de Garantias. Tais normas internacionais estão incorporadas em nosso ordenamento jurídico desde o ano de 1992. A Audiência de Custódia não objetiva resolver o “caos carcerário” mas sim, contribuir para a minimizar este inquietante déficit de cidadania que brutaliza o entendimento e que a todos nós ameaça, no dizer de Kafka, “uma jaula em busca de um pássaro”.

ConJur – O Estatuto da Criança e do Adolescente já prevê a apresentação do menor infrator apreendido ao juiz?
José Barroso Filho –
A apresentação imediata daquele privado de sua liberdade a um magistrado não é novidade em nosso ordenamento pátrio, basta observar o procedimento previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente quando trata de ato infracional (artigo 171 e seguintes da Lei 8.069/90). O adolescente apreendido é, de imediato ou em curto espaço de tempo apresentado ao Juizado da Infância e da Juventude, onde será ouvido pelo juiz, pelo representante do Ministério Público, com o apoio de um defensor e as orientações de uma equipe multidisciplinar. Desta audiência de apresentação, o adolescente já pode receber uma medida sócio-educativa e ser encaminhado ao cumprimento, ser encaminhado à internação provisória ou ser posto em liberdade se avaliada a desnecessidade de privação da liberdade enquanto responde ao processo. Puro encarceramento sem o devido encaminhamento é fermentar o problema que ocasiona violação de direitos, superlotação de unidades prisionais e alto índice de reincidência, sem nada contribuir para a devida responsabilização daquele que transgride a lei.

 ConJur – A logística necessária para implantar a audiência de custódia não pode inviabilizar a prática?
José Barroso Filho – Valendo-me da minha vivência de mais de duas décadas como magistrado seja na seara estadual, seja na federal, dadas as distâncias e dificuldades logísticas em nosso pais-continente, a utilização da vídeo-conferência pode ser considerada, bem assim quando o conjunto instrutório enviado pela autoridade policial assim o permitir,  uma  avaliação do representante do Ministério Público e do magistrado quanto a aplicação imediata da transação penal ou suspensão condicional do processo. É necessário oferecer as condições operacionais aos organismos policiais, ao Ministério Público e à magistratura para cumprir mais esta necessária missão de preservar os direitos e garantias de um sistema penal que busca eficiência e legitimidade. Inicie-se pelas capitais e centros com maior capacidade operacional e aperfeiçoando as práticas, seja a tempo e modo expandido por todas as unidades judiciárias. Se não dermos certas respostas, estaremos fadados e repetir certas perguntas: Cadê o Amarildo? Por quem os sinos dobram?

ConJur – Qual a sua posição quanto às infrações violentas ou continuadas praticadas por adolescentes? Rebaixar a maioridade penal seria a solução?
José Barroso Filho –
Algumas alterações podem ser feitas no Estatuto da Criança e do Adolescente, no sentido de dar maior efetividade, sobretudo nas infrações violentas ou continuadas praticadas por adolescentes. O adolescente que praticou uma infração reveladora de extrema periculosidade e que seja imperiosa a sua internação, depois de submetido a sucessivas perícias semestrais, devido ao intenso risco que representa, mesmo assim, será desinternado, porque embora o parágrafo 2º do artigo 121 do ECA expresse que a medida não comporta prazo determinado, o parágrafo 3º, em total contradição, é imperativo, determinando a liberação, completados três anos de internação. Este entendimento tem gerado tratamentos incompletos, até mesmo verdadeira impunidade, avolumando-se o envolvimento dos adolescentes em condutas graves, como o latrocínio, o homicídio e o estupro. Estes fatos tem levado a população de nosso país a desacreditar no Estatuto da  Criança e do Adolescente e, até mesmo, grandes juristas e doutos magistrados. Melhor será a extensão da aplicação da medida de internação – ao invés da liberação compulsória aos 21 anos – para o limite de 25 anos, em estabelecimento adequado, observadas as peculiaridades quanto à gravidade da infração, bem como as naturais diferenças físicas e psicológicas entre o adolescente e o jovem adulto. Da mesma forma, o prazo máximo de aplicação da medida de internação deveria ser superior a três anos, conjugando-se com o limite anterior (liberação compulsória aos 25 anos e não mais aos 21 anos). Assim, escapamos dos excessos — vez que ineficientes —, seja o protecionismo  exacerbado, seja a extremada sanha punitiva.

ConJur – E quanto à maioridade penal?
José Barroso Filho – Reduzir a idade penal não irá solucionar o problema da violência urbana e criará  outros, tais como o aumento da população carcerária e a submissão de adolescentes, já estigmatizados, ao convívio com criminosos.

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