Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo italiano (Parte 10)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

8 de abril de 2015, 18h26

Spacca
O aluno de Direito na Itália: ingresso, aulas e formação
Muitos desconhecem que as Institutas de Justiniano, um dos livros do famoso Corpus Iuris Civilis, foi um dos primeiros manuais de ensino do Direito na História. Para integrar o monumental projeto de consolidação normativa do imperador bizantino, era de todo conveniente que houvesse um livro para uso nas faculdades de Direito do Império.

Justiniano elaborou um prefácio para as Institutas, no qual se percebe imediatamente sua dupla finalidade: explicar quem e como se elaborou o livro e convidar os estudantes de Direito para que aprendessem as leis romanas a partir de suas próprias fontes e não em textos antigos. Segundo Justiniano, o aprendizado das lições contidas em seu manual viria acompanhado da esperança do imperador de que os alunos se ilustrassem a fim de governar o Império nas funções que ele lhes confiaria. Em suma, Justiniano passava a seguinte mensagem: aprendam o Direito, pois um Império não se governa apenas com armas mas também com leis. E também compreendam que esse aprendizado há de servir ao combate das injustiças, que muitas vezes se escondem nas fímbrias das fórmulas da lei.[1]

É pensando nessa personagem – o aluno – que a terceira coluna sobre o ensino jurídico na Itália tem início, na sequência das duas colunas anteriores (clique aqui e aqui). 

Para os cursos jurídicos, não há um equivalente ao vestibular na Itália. À exceção das faculdades de Medicina e de Arquitetura, para os quais existe um exame nacional de admissão, o ingresso nas faculdades de Direito dá-se por efeito da classificação do aluno no equivalente ao ensino médio. Essa nota definirá também a faculdade (de maior ou menor nível) na qual ele ingressará.

Ao iniciar o curso de Direito, o estudante terá de cursar um número específico de disciplinas obrigatórias e outra optativas (sobre as quais se cuidará na próxima e última coluna sobre o ensino jurídico italiano). Não há um estágio curricular como no Brasil e sim uma obrigação de exercício de atividade prática para quem deseja se submeter ao exame que permite o acesso à profissão de advogado.

O modelo das aulas é bastante similar ao que existe na Alemanha. Aulas magistrais com um professor catedrático em salas que mais lembram auditórios e, posteriormente, a divisão das turmas entre os assistentes. Não há grandes diferenças da aula expositiva que é praticada em boa parte do continente europeu e também no Brasil. As aulas são ministradas em italiano.

A formação do aluno é preponderantemente jurídica. Nesse ponto, a Itália é mais aberta para disciplinas como o Direito Romano, o Direito Comparado e a História do Direito. As razões para isso foram de certo modo adiantadas na primeira coluna: a forte herança do Direito Romano, a ligação com a Alemanha e o papel dos italianos como agentes difusores do Direito de língua alemã para os países latinos e a capacidade de formulação original do pensamento jurídico pelos juristas italianos, que não temiam usar a seu favor os métodos comparatistas. O elemento histórico-jurídico também foi favorecido por se depositarem nas bibliotecas italianas um conjunto notável de obras jurídicas milenares, graças à função de guardiã da memória cultural do Ocidente exercida pela  Igreja Católica desde antes do fim do Império Romano.

Nas instituições tradicionais, não há a figura do curso noturno. A atividade didática é desenvolvida nos períodos matutino e vespertino, com ênfase na pesquisa nas bibliotecas. A estrutura das bibliotecas, até por seu caráter avoengo, não é comparável a dos grandes centros de pesquisa na Alemanha, no Reino Unido ou nos Estados Unidos. Em muitos lugares, os livros estão dispersos em locais reservados e o contato se dá por meio de requisição ao bibliotecário.

O acesso à literatura jurídica pelos alunos dá-se por meio de manuais, livros-texto ou códigos com anotações breves. A Itália é a sede de editoras tradicionais e muito conhecidas do público brasileiro, como a UTET, de Turim, a CEDAM, de Pádua, e a Giuffrè, de Milão. Atualmente, existe o grave problema da cópia ilegal dos livros jurídicos, o que tem enfraquecido a capacidade dessas casas editoriais de produzir as clássicas obras monográficas italianas.

Um detalhe interessante é que, em algumas universidades, existem regras que exigem a adoção de um manual específico para cada matéria e é com base nesse livro que os conteúdos devem ser exigidos nas provas. É uma disposição altamente polêmica e que gera problemas operacionais de grande monta, além de limitar e muito a liberdade expositiva do docente.

Uma nota característica da graduação italiana é a tese de láurea. No Brasil, seu equivalente seria o trabalho de conclusão de curso, exigência das diretrizes curriculares nacionais desde 2004, mas cuja forma de apresentação é mais livre que a tesi di laurea. Em verdade, sua correspondência mais fiel no Brasil é a “tese de láurea” da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, uma monografia de apresentação obrigatória pelos alunos que pretendem se graduar em Direito e que deve ser defendida, salvo situações excepcionais, perante uma banca examinadora, presidida pelo orientador. O modelo italiano é a matriz que serviu de inspiração à USP.

A importância da tesi di laurea é tamanha que Umberto Eco, em 1977, publicou um opúsculo intitulado Come si fa uma tesi di láurea (Como se faz uma tese de láurea), destinado a orientar os estudantes de graduação italianos na elaboração dessa monografia. No Brasil, esse livro foi traduzido por Gilson Cesar Cardoso de Souza com o ambíguo (para não se dizer algo mais forte a respeito dessa opção do tradutor ou da editora) título Como se faz uma tese (22 ed. São Paulo: Perspectiva). Essa omissão do qualificativo “de láurea” muda completamente o contexto do título, cuja versão mais informativa ao leitor sobre seu conteúdo seria: Como se faz uma monografia. Muito bem, o livro de Umberto Eco tem sido muito usado no Brasil como referência metodológica para dissertações de mestrado e teses de doutorado. Isso diz muito sobre a qualidade do livro, a importância da tesi di laurea e também como um erro(?) de tradução pode gerar efeitos imprevisíveis.

O aluno de graduação, de acordo com o Decreto no 270, de 22.10.2004, é quem está matriculado em um curso di laurea, o título básico oferecido pela universidade italiana (art.3o), que tem por objetivo a aquisição de conceitos e o domínio de métodos científicos gerais, ainda que tais venham a servir a um conhecimento de caráter profissional.

O curso di laurea tem duração de 3 anos, após a criticada Reforma de Bolonha, seguidos de 2 anos de uma laurea magistrale, um curso de pós-graduação que, a depender do modo como ele é desenvolvido pode equivaler a uma especialização ou um mestrado no Brasil.

Mestrado e doutorado
O mestrado (laurea magistrale, considerando as adequações de carga horária e de exigências nacionais para revalidação)  e o doutorado (dottorato di ricerca) são títulos universitários de pós-graduação, ao lado da especialização (diploma di specializzazione).

As instituições são livres para organizar o currículo e o modo de acesso desses cursos de pós-graduação, conforme as Lei Ruberti (Lei 341, de 1990, e a Lei 168, de 1989. Na Universidade de Roma – La Sapienza exige-se que o candidato se submeta a uma prova escrita e outra de natureza oral, esta última com a finalidade de expor e defender seu projeto de pesquisa. Em outras instituições, exige-se apenas uma nota mínima global na graduação e a apresentação do currículo.

Se a laurea magistrale pode ser concluída em 2 anos, o dottorado di ricerca exige um mínimo de 3 anos, com defesa de tese ao final. Como se dá na Alemanha, o doutorando deve usar de seu tempo para realizar pesquisas e não assistir às aulas, o que se pressupõe ocorreu durante o período de seminários no mestrado.

Carreiras jurídicas na Itália
Além da carreira docente, sobre a qual falamos na coluna anterior, é possível oferecer informações sobre algumas das principais profissões jurídicas na Itália.[2]

Os magistrados compõem o Poder Judicial e são divididos em juízes togados e juízes honorários, de entre os quais se incluem os juízes de paz, os juízes honorários de primeiro grau e os agregados. Os primeiros são admitidos ao serviço público por meio de concurso e integram uma carreira de Estado. O segundo grupo exerce suas atribuições em caráter provisório e não se consideram membros da magistratura em sentido estrito.

Os togados percebem uma remuneração mensal fixada pelo Estado, cujo valor depende de sua posição na carreira. Os magistrados honorários são remunerados em conformidade com o número de sentenças produzidas e de audiências realizadas.

Integram também a magistratura, mas com funções de investigação, aqueles que se vinculam aos órgãos da Procuradoria da República Italiana, que oficiam junto à Corte de Cassação, aos tribunais de relação e aos tribunais de primeiro grau. Esses magistrados são procuradores, embora se considerem da mesma natureza que os juízes togados, inclusive quanto ao ingresso por concurso público e às formas de remuneração.

Magistrados togados que exercem suas funções na judicatura ou na procuratura evoluem na carreia por critério de exclusiva antiguidade, conforme a seguinte escala: a) auditor judicial; b) magistrado de tribunal (de primeiro grau); c)  magistrado da Relação (de segundo grau); d) Magistrado de Cassação (ministro da Corte de Cassação); e) magistrado habilitado para as funções de direção superior da magistratura.

A advocacia e o notariado não integram carreiras no serviço público, considerando-se como profissionais liberais.

O ingresso na advocacia depende da aprovação em um exame nacional organizado pelo Estado italiano, coordenado pelo Ministério da Justiça, que ocorre todos os anos e é realizado junto a um tribunal de relação (segundo grau). As provas são teórico-práticas, de natureza escrita e oral. A prova escrita divide-se em três: a) elaboração de um parecer em matéria regida pelo Código Civil; b) redação de um parecer sobre tema submetido ao Código Penal; c) confecção de um ato judiciário com aspectos de direito material e de direito processual, cujo tema se liga ao quesito proposto, em matéria escolhida pelo candidato nas áreas de Direito Privado, Direito Penal e Direito Administrativo.

A prova oral, por sua vez, consiste na discussão sucinta sobre temas ligados ao Direito Constitucional, Direito Civil, Direito Administrativo, Direito Comercial, Direito do Trabalho, Direito Penal, Direito Tributário, Direito Processual Civil, Direito Processual Penal, Direito Internacional Privado, Direito Eclesiástico e Direito Comunitário. O candidato escolhe 5 dessas matérias, sendo que uma delas tem de ser de natureza processual. A prova oral também exige a demonstração de conhecimento das normas de organização judiciária e da deontologia profissional.

O conteúdo programático é fornecido pelo Ministério da Justiça a cada ano.

Uma vez admitido na profissão, o advogado divide-se entre os ordinários, que podem exercer suas atribuições em qualquer tribunal de primeiro ou de segundo graus, e os que são habilitados a atuar também na Corte de Cassação. O ius postulandi é privativo dos advogados, exceto perante os juízos de paz. 

Os notários, por sua vez, submetem-se a um concurso público de caráter nacional, que fica a cargo do Ministério da Justiça. É uma profissão extremamente prestigiada e que oferece um excelente retorno financeiro, ainda que variável.

Na próxima semana, concluiremos o estudo do modelo italiano com o exame das universidades e da polêmica Reforma de Bolonha.  


[1] O proêmio das Institutas está disponível aqui: http://droitromain.upmf-grenoble.fr/. Acesso em 7-7-2015.

[2] Dados extraídos da Rede Judiciária Europeia em Matéria Civil e Comercial. O texto é baseado em paráfrases e as informações são totalmente atribuídas a essa fonte, sem qualquer pretensão de originalidade: http://ec.europa.eu/civiljustice/legal_prof/legal_prof_ita_pt.htm. Acesso em 7-4-2015. 

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    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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