Contrato de seguro

Superior Tribunal de Justiça deve decidir sobre indenização de suicídio

Autor

  • Ernesto Tzirulnik

    é advogado doutor em Direito pela Universidade de São Paulo(USP) é presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro e da Comissão de Direito do Seguro (IBDS) e resseguro da OAB-SP.

7 de abril de 2015, 7h30

Seguros são instrumentos de solidarização social. Eles não existem por capricho. São necessários. O acesso a um bom seguro é direito básico nas sociedades contemporâneas, onde o acidente, como diz François Ewald, nos espera na esquina.

Os seguros de vida podem ajudar muito a viver com liberdade e em paz. São “um privilégio do marido, um direito da esposa e um pedido do filho. (…) Acalma o choro do bebê faminto a noite. Alivia o coração da viúva enlutada. É sussurro reconfortante no escuro, as horas de silêncio da noite” (Vivek Dubey, “Suicide Clause in Life Policies in India: How far legally valid?” Tradução livre)

Para que seu objetivo seja concretizado é necessário evitar certos abusos na formação dos prêmios comerciais (preço), na duração dos contratos — que muitas vezes penalizam ou excluem os que envelhecem, adoentam-se ou se vão incapacitando, prejudicando a chamada solidarização entre gerações —  e outras questões inúmeras, algumas apenas pretensamente técnicas que acabam colocando em dúvida a real segurança que se espera do seguro.

Em muitas legislações contemporâneas não é lícito à seguradora alegar, por exemplo, que houve agravamento voluntário do risco para negar o pagamento de um seguro de vida. Isso porque há norma proibindo as seguradoras de alegar qualquer tipo de agravamento do risco para negar o pagamento do capital contratado a título de seguro de vida. Entre diversas outras, é o caso, por exemplo, das leis de contrato de seguro belga (art. 81, §1), alemã (seção 161 [1]) e da peruana (arts. 64 e 91). Optaram também por essa solução os Projetos de Lei de Contrato de Seguro brasileiros em discussão no Congresso Nacional (PL 3.555/2004, PL 8.034/2010, PLS 477/2013 e PL 8.290/2014).

Ao contrário dos seguros patrimoniais, de danos, os seguros de vida são seguros quase perfeitamente massificados. A empresa seguradora dispõe de técnica suficiente para tratá-los na ponta do lápis, ou seja, com os mais sofisticados instrumentos da estatística e da atuária. A grande operação seguradora, que compreende o resseguro e a retrocessão, ajusta muitas questões na subscrição, nas tábuas de mortalidade, na pulverização, na distribuição junto a imensas mutualidades, enfim, na taxa que será aplicada para o cálculo do prêmio (preço do seguro) e no bom acompanhamento da atividade.

Nosso Código Civil de 2002 tem um capítulo de direito do seguro elaborado há mais de quarenta anos, com muitas lacunas, insuficiências e anacronismos, como reconheceria o próprio Miguel Reale.

Chega a ter artigo que exige proposta escrita (art. 759), quando são extremamente comuns seguros contratados pela simples prática de outros atos como uso de cartão de crédito, ingresso em meios de transporte etc. Outro dispositivo do CC 2002 (art. 758), alheio à realidade das relações de seguro, pretendeu instaurar o monstruoso sistema da prova legal dos contratos, por meio de documentos emitidos unilateralmente pela seguradora!

Uma das questões que atinge a eficácia dos seguros de vida é a do agravamento do risco. O Código não restringiu aos seguros de dano o regime do agravamento, colocando-o como regra para todos os seguros (art. 769). Isso tem determinado muitos litígios entre segurados e seguradoras. Mesmo a habitual taça de vinho em uma refeição pode por tudo a perder, ou postergar para as calendas a provisão destinada ao cônjuge, companheiro ou filhos. Quem opta por mudar de emprego e resolve trabalhar na Favela do Alemão pode ser acusado de agravar o risco. Afinal, o art. 799 do Código Civil prevê que a seguradora não pode negar o seguro de vida em razão do uso de meio de transporte perigoso, da prática desportiva arriscada ou da prestação de serviço militar, mas sobre perigos laborais a lei silenciou.

No fim, o seguro fica inseguro. Os consumidores de seguro de vida passam a temer a alegação da seguradora para não pagamento em razão de fato que constitua agravamento voluntário do risco. Alguns deixam de contratar o seguro de vida. O seguro de vida de verdade, para a família, não o do consumidor prestamista, porque este é pago pelo consumidor independentemente da sua aceitação, e nem seguro de pessoa é, uma vez que garante o recebimento, pelo credor, das parcelas do crédito concedido.

Ao invés de comprar o seguro, opta-se, então, pela poupança, pelos investimentos, imóveis ou outros ativos que sejam identificados como mais certos e protetores do que os seguros.

Enquanto não vem uma boa lei de seguros, porque ainda são poucos os que estão preocupados com isso, o Judiciário tem cumprido um papel fundamental. Há boas conquistas, mas o movimento, como já disse o Ministro do STJ, Ricardo Villas Bôas Cueva, é “pendular”: ora vai para as seguradoras, ora para os consumidores.

Justiça é acerto histórico e estabilidade. Para os negócios e para a vida de cada um de nós, é também muito importante a jurisprudência boa e estável. A norma jurídica, se ajustada ao tempo em que vigora, ajuda muito o encontro desse estado de paz. A experiência dos julgadores também é fundamental, especialmente quando a lei formulada não se ajustar plenamente às coisas como acontecem na vida. Os juízes e juízas têm de ser pessoas do Direito e do mundo, têm de sentir a realidade para construir o Direito. Do contrário, inventam moda ou chancelam o mal formulado. Um pouco do empírico sempre liberta de preconceitos e ajuda a estabilizar as soluções justas.

A questão da cobertura do suicídio no seguro de vida é outro desses temas que, no atual Código Civil, foi muito mal resolvido, e que o Judiciário tem procurado resolver.

Por que o suicídio é importante? É importante porque é uma das causas das mortes que ocorrem na sociedade. As pessoas morrem disso também.

Há até piadas: “Cumpadre se matô com veneno, cumadre?” “Não, tiro”. “Ah! Tiro é bom também!”

Em um ambiente protestante, a lei alemã, que é recente, tomou posição sobre o assunto, diferentemente da lei reclamada pelas seguradoras – que aliás costumam se ressegurar por lá:

“In the case of a whole life insurance, the insurer shall not be obligated to effect payment if the insured person intentionally commits suicide before three years have elapsed since the conclusion of the contract of insurance. This shall not apply if the act was committed while a person was in a state of morbid disturbance of mind precluding their ability to freely determine their intent.”

O suicídio é igualmente importante porque existem os que são programados; tudo que remunera a potestatividade desajusta o funcionamento da sociedade como um todo. Seguro é contrato comutativo mas requer risco, álea. Se um prejuízo é causado dolosamente não há risco, elemento essencial do contrato. O incêndio intencional cometido pelo segurado ou beneficiário nunca será coberto pelo seguro e é um problema grave, especialmente em tempos de crise financeira.

O naufrágio doloso também não está coberto e determina perdas consideráveis. Uma série desses ataques à álea é capaz de destruir estruturas seguradoras saudáveis. Os suicídios vultosos, com seguros premeditadamente contratados, atos de planificação e até mesmo assistência, também são preocupantes e avessos à “aventura seguradora”. Eles não podem ser rentáveis ou estimulados. Seria uma avenida muito larga para as pessoas proverem os seus dependentes tomando a decisão de tirar a própria vida.

Nem a sociedade quer isso, nem as companhias seguradoras. Não há aí o legítimo interesse, essencial ao seguro (cc 2002, art. 757); é nulo o seguro contratado pelo que premedita, que planifica assegurar a vida para destruí-la.

Mas destruir dolosamente as coisas para obter vantagens são sempre atos tipificados na lei penal. Apesar dos tabus, cometer ou tentar suicídio não é crime. E há diferenças que devem ser observadas.

Quem foge do ataque do incêndio no topo de um prédio e pula para a morte, comete suicídio.

A dor mortal do incêndio interno, a depressão, e as nem sempre salvadoras induções medicamentosas, também levam a atirar-se noutro sacrifício.

A distinção entre o premeditado e o não premeditado, o intencional e o não intencional, como o sadio e o doentio, é um problema que se coloca nos mais diferentes países: “The intent of the insured is a major element, as reflected in “sane or insane” language found in many suicide clauses.” (Suicide and the Life Insurance Death Claim, p. 380. Edgar Sentell, Senior Vice President – General Counsel of Southern Farm Bureau Life Insurance Company in Jackson, Mississippi.)

O velho Código de 1916 contemplava essa diversidade de situações e vedava apenas a contratação do “premeditado por pessoa em seu juízo” (art. 1.440).

As seguradoras não se conformavam. Seguros de vida eram poucos, seus capitais em geral elevados. As seguradoras procuraram, então, emitir suas apólices contendo uma cláusula fixando carência para a cobertura do suicídio. Como acontecia em exemplos estadunidenses e europeus, tomaram o prazo de dois anos na maioria das apólices.

Foi grande a litigiosidade e, finalmente, sobreveio, em dezembro de 1963, a Súmula 105 do Supremo Tribunal Federal, que vetou a eficácia da cláusula de carência no caso de suicídio não premeditado: "Salvo se tiver havido premeditação, o suicídio do segurado no período contratual de carência não exime o segurador do pagamento do seguro".

Os seguros de vida continuaram sendo operados pelas seguradoras de forma não especializada, com taxas de prêmio mais copiadas e inventadas do que resultantes da técnica securitária. Com capitais elevadíssimos e grande concentração individual de apólices. Em geral, com custos de distribuição altíssimos, sem as redes imensas que hoje os espalham a custos dissolvidos.

Um suicídio, até o final dos anos 1980, poderia causar perdas parecidas com os sinistros de danos catastróficos. Isto nos dias de hoje é praticamente impossível, graças à grande massificação e aos cuidadosos critérios de subscrição de riscos utilizados pelas seguradoras, melhor assistidas e fiscalizadas pelos atuários e técnicos especializados.

Mas eram outros os tempos. O suicídio se transformara num objeto de luta inegociável. A litigiosidade acabou determinando a repetição de recursos, e a edição da Súmula 61 do Superior Tribunal de Justiça: “O seguro de vida cobre o suicídio não premeditado”.

As seguradoras foram influentes no Projeto de Código Civil dos anos 1960, e o Código de 2002 — envelhecido sem alterações no capítulo que cuida do seguro —, aparentemente teria tratado os diferentes tipos de suicídios como um só ao estabelecer uma carência:

Art. 798. "O beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o segurado se suicida nos primeiros dois anos de vigência inicial do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o disposto no parágrafo único do artigo antecedente."

Embora a regra não tenha utilizado “premeditado ou não”, muitos entenderam que o legislador teria se valido da mesma régua cronológica utilizada nas apólices que foram reprovadas pelo STF e pelo STJ.

Isso significaria que o suicídio, qualquer um deles, mesmo o por doença, por ingestão de substâncias, por ato de desespero, estariam todos a descoberto por dois anos. Quem pulasse de um edifício Joelma em fogo arderia com a negativa do pagamento do capital!

Os certificados de seguro e as apólices, também é bom lembrar nesta terra de CDC, costumam ter vigências mensais ou anuais. Isto dispara situações como 24 vigências mensais ou, conforme o caso, duas vigências anuais inteiras como “carência”. Chega-se assim, não raro, a absurdas situações de carências maiores do que as vigências contratuais!

Se o suicídio ocorresse nos primeiros dois anos da vigência inicial ou “recondução” do contrato, a seguradora nada pagaria; se ocorresse depois, a seguradora seria obrigada a pagar. Segundo os que consideram isso um “critério objetivo”, até o suicídio premeditado, planificado, e como tal provado, seria indenizável depois de dois anos. Ou seja, se abriria uma vala para a cobertura do dolo do segurado, da destruição premeditada, desejada, planificada e lesiva para os cofres da seguradora.

A matéria continua sendo discutida. As seguradoras, mesmo hoje em dia, com domínio técnico e práticas de gestão nos seguros vida muito mais avantajadas, com subscrições cuidadosas e taxas bem ajustadas, sistemas tecnológicos etc., continuam, talvez mais pelo velho hábito do que por necessidade, travando sua luta contra todos os suicídios.

A casuística do suicídio é complexa. Suicídios no trabalho operário, em acidentes automobilísticos, programas de caça, ingestão de medicamentos, proteção da honra, estados emocionais excepcionalíssimos, doenças mentais, enfim, a diversidade imensa de situações que podem determinar o suicídio, ou a possibilidade de se estar ou não diante de um suicídio, acabou revolvendo a discussão que tem quase cem anos.

Recentemente, a douta 3ª Turma do STJ afetou à 2ª Seção um recurso especial (REsp 1.334.005/GO) em que se discute suicídio que ocorreu 25 dias após a assinatura do contrato de seguro.

O  relator, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, por decisão monocrática, invocando precedente uniformizador da 2ª Seção, objeto doAgRg no Ag 1.244.022/RS, rel. ministro Luis Felipe Salomão, de 13.04.2011, havia negado seguimento ao recurso com base na tese de que “o fato de o suicídio ter ocorrido no período inicial de dois anos de vigência do contrato de seguro, por sí só, não autoriza a companhia seguradora a eximir-se do dever de indenizar, sendo necessária a comprovação inequívoca da premeditação por parte do segurado, ônus que cabe à Seguradora, conforme as Súmulas 105/STF e 61/STJ expressam em relação ao suicídio ocorrido durante o período de carência".

Contra essa decisão, a seguradora interpôs agravo regimental, o qual foi provido para admitir o recurso especial e ao mesmo tempo já afetá-lo  à competência da 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça.

A entidade que hoje representa os seguradores do ramo vida habilitou-se nos autos. Querem a carência, o critério objetivo. Nenhuma entidade de consumidores está a postos!

Será pendular o movimento?

Esperamos que não. A Corte Superior, do alto de sua sabedoria, haverá de manter a orientação já maturada e consolidada no leading case da 2ª Seção, prestigiando a segurança jurídica e o verdadeiro sentido de proteção do seguro de vida.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!