Constituição e Poder

Para compreender (e superar) os pilares do positivismo jurídico (parte 1)

Autor

  • Marco Aurélio Marrafon

    é advogado professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

6 de abril de 2015, 18h21

Já há algum tempo as aulas de Introdução e Teoria do Direito têm sido inundadas com críticas ao positivismo jurídico formalista, em geral apresentado como pensamento frio, vinculado à segurança jurídica, onde a lei injusta é dura, mas é lei e deve ser cumprida. No entanto, é preciso ter em mente que o positivismo jurídico é muito mais do que uma mera criação legalista para promover a dominação do poder por aqueles que detêm a autoridade política.

Dada a caracterização do Direito como um fenômeno social complexo, especialmente ligado a processos de manifestação de poder, a compreensão do papel da lei está intimamente ligada à determinada concepção de Estado, de sua relação com a política, das escolhas valorativas consideradas juridicamente relevantes e de uma análise global de seu papel em sociedade.  Por essa razão, a filosofia, a política, a teoria do Estado, a sociologia, entre outras, tornam-se campos de conhecimento que devem informar o filósofo do direito, promovendo clareza categorial sobre o que se está falando e em qual medida.

Uma vez considerado o positivismo jurídico como Teoria do Direito predominante na maior parte do século XIX e XX no mundo ocidental, torna-se inevitável enxergar a sua importância histórica (a legalidade foi conquista civilizatória em face do ocaso medieval) e, a partir dela, a dimensão da crise de seus postulados, abordando quais motivos indicam sua superação em prol de outras soluções, mais adequadas às exigências teóricas contemporâneas. Uma análise crítica exige, antes, uma ampla compreensão, sob pena de recair em mero diletantismo acadêmico.

Um caminho interessante foi pensado por Fernando Bronze. Ele propõe a leitura do positivismo jurídico normativista em cinco coordenadas caracterizadoras que, juntas, ensejam um mapeamento holístico dessa escola[1].

São elas as coordenadas político-institucional, especificamente jurídica, axiológica, funcional e epistemológica-metodológica.

Bronze propõe que o primeiro eixo teórico que compõe o juspositivismo está relacionado à dimensão político-institucional, onde se percebe que ele está atrelado ao Estado Democrático de viés liberal-individualista, assentado na rígida separação dos poderes, democracia representativa, dogma da onipotência do legislador, princípio da legalidade e independência judicial, restringindo a função do Judiciário à mera aplicação do direito legislado.

Os valores políticos predominantes nos países da Europa ocidental nesse período levaram à elaboração de um modelo de Constituição marcada pela desconfiança com relação ao poder, frouxidão nas relações sociais, não intervenção na economia e rígida separação entre público e privado[2].

Sua função era disciplinar o poder estatal e proclamar os direitos fundamentais liberais — basicamente os direitos de liberdade do indivíduo frente ao Estado.

Em face disso, a força normativa do Direito estava majoritariamente nos Códigos, em especial de Direito Civil, com predomínio da defesa da propriedade privada e do contratualismo individualista[3], levando à centralidade do sujeito de direito e da autonomia da vontade nos debates jurídicos.

Como consequência, a Teoria Geral do Direito se apresentava a partir da Teoria Geral do Direito Civil e se desenvolvia com base nas categorias do direito privado, conforme atesta o movimento de codificação e, em especial, o notável significado histórico do Código de Napoleão de 1804 para o pensamento jurídico[4].

Continuando com Bronze, tem-se que a segunda coordenada caracterizadora do positivismo jurídico trata da mediação especificamente jurídica, onde o direito é visto desde um olhar exclusivamente monista e se confunde com a lei (manifestação da vontade geral), tomando para si as características de generalidade, abstração, formalidade e permanência[5].

No plano axiológico, a ideia de Justiça era vista a partir da igualdade formal, de tal modo que os valores enfaticamente defendidos eram: i) o formalismo, sustentado pela faculdade de cada um conhecer racionalmente e obedecer ao direito posto (qualquer que fosse) e ii) a segurança jurídica, exigência de certeza abstrata que deveria estabilizar os padrões de comportamento e a liberdade dos indivíduos em termos previsíveis.

Outro componente caracterizador destacado por Bronze diz respeito à contraposição, até então inédita, entre política e direito, o que deu ensejo ao que ele chama de coordenada funcional[6].

Essa coordenada revela a dissociação positivista entre a intenção constitutiva do direito (tarefa de criação exclusiva do Legislativo) e o papel concretizador do direito, cuja competência seria apenas a aplicação sem, no entanto, elaborar juízos em relação ao conteúdo moral ou de justiça do direito legislado.

De acordo com essa coordenada, a função do jurista positivista era apenas conhecer o direito (objeto) dado e pré-constituído em termos epistemologicamente corretos, o que demanda a neutralidade do jurista perante os valores contidos na lei e também o desenvolvimento de uma metodologia que conferisse status de ciência ao direito, garantindo, independentemente do conteúdo, sua legitimidade.

Outrossim, o direito abdica de sua tarefa judicativa de viés prático-normativa e arroga para si, nas palavras de Bronze, uma tarefa teórico-axiomaticamente aplicativa.

Devido a ela, os grandes temas debatidos eram inerentes à analítica da norma e do ordenamento, versando especialmente sobre características abstratas que diferem normas jurídicas de outras ordens normativas, da organização das matérias jurídicas em termos sistemáticos, dos critérios de interpretação que propiciassem a cognição sintática e semanticamente correta da norma-texto e, enfim, da metódica de concretização formal.

Desde então, segundo Bobbio, a teoria do direito se separa da filosofia do direito, na medida em que a primeira se volta para as questões de validade normativa em termos procedimentais enquanto que a segunda se reduz à analise das questões de justiça ou deontológicas[7].

Ainda seguindo Bronze, tem-se que a convergência de todas as coordenadas anteriores projeta uma quinta, chamada de epistemológico-metodológica[8].

De acordo com o autor, a coordenada é epistemológica porque o objeto da ciência do direito era uma construção conceitual baseada nos elementos do sistema jurídico abstrato e normativo. É metodológica porque, uma vez reduzido o direito à legalidade pré-escrita, deveria ser utilizada a racionalidade lógico-dedutiva para aplicá-lo formal e subsuntivamente. Seguindo esse raciocínio, a tarefa do juiz seria extrair o axioma – norma-regra de um sistema ou ordenamento pré-dado e fechado, através de uma exegese gramatical.

Se necessário, ele poderia se utilizar de regras da hermenêutica filológica tradicional para encontrar o sentido semântico correto dos textos legais (muitas vezes com auxílio dos intérpretes autorizados — juristas conceitualistas) e, através de um silogismo judicial, aplicá-lo ao caso concreto (processo subsuntivo).

Além das cinco coordenadas elencadas por Bronze, cumpre destacar uma sexta, constituída pelo pano de fundo filosófico sob o qual se desenrolava toda a construção teórica juspositivista.

Ora, a matriz do pensamento positivista se funda nos postulados modernos do paradigma da filosofia da consciência, refletindo uma espécie de empirismo-lógico[9] que, descontado o idealismo racionalista, “se identifica com a conclusão kantiana acerca da possibilidade de um conhecimento racional dos objetos, enquanto síntese da forma razão com a matéria empírica”[10].

Através dessas considerações, verifica-se que o mapeamento do positivismo legalista enquanto teoria para o direito e sua comparação com as diretrizes contemporâneas do pensamento jurídico e político deixa antever que, tomadas em sentido rigoroso, nenhuma das coordenadas caracterizadoras se sustentam.

Mesmo observando o abrandamento e releitura de algumas destas premissas, bem como a pluralidade de correntes positivistas, é notável a crise deste pensamento sob qualquer uma das perspectivas em que seja questionado, o que implica na revisão de cada uma das coordenadas caracterizadoras, tarefa para a próxima coluna.


[1]BRONZE, Fernando José. Lições de introdução ao direito. Coimbra: Coimbra, 2002, p. 321-343. As citações do texto de Bronze a seguir estão inseridas dentre as páginas aqui indicada, pois tendo em vista as características próprias de um artigo na forma de coluna periódica, não é oportuna, nem exigível a indicação página a página de cada menção ao autor. Para aprofundamento, conferir também: MARRAFON, Marco Aurélio. O caráter complexo da decisão em matéria constitucional: discursos sobre a verdade, radicalização hermenêutica e fundação ética na práxis jurisdicional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[2]BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 14. ed. São Paulo: Malheiros,  2004. p. 229 e ss.
[3]HESPANHA, Antonio Manuel. Direito, prática social e ideologia. Coimbra: Coimbra, 2003. p. 8. 
[4]BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Trad. Marcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 63 e ss.
[5] BRONZE, Fernando José. Op. cit., p. 333-334.
[6] Ibidem, p. 337 – 339.
[7]BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Tradução de Fernanda Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. Bauru: EDIPRO, 2001. p. 52.
[8] BRONZE, Fernando José. Op. cit., p. 339- 340.
[9] HÖFFE, Otfried. Justiça política. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 98.
[10]MARRAFON, Marco Aurélio. Hermenêutica e sistema constitucional: entre o sentido da estrutura e a estrutura do sentido. Florianópolis: Habitus, 2008. (col. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, n. 01). p. 47.

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