Baú de recordações

Cartas de Epitácio Pessoa demonstram apurado senso de Justiça

Autor

  • Marcílio Toscano Franca Filho

    é doutor em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) com pós-doutorado no Instituto Universitário Europeu em Florença (Itália) procurador do Ministério Público de Contas da Paraíba professor da Faculdade de Direito da UFPB e coautor do livro Direito da Arte (Ed. Atlas).

5 de abril de 2015, 16h00

Em um conjunto de conferências publicado originalmente em 1979, sob o título de “Borges Oral”, o escritor argentino Jorge Luis Borges pontifica que “dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso, sem dúvida, é o livro. Os demais são extensões do seu corpo. O microscópio, o telescópio, são extensões de sua vista; o telefone é extensão da voz; depois temos o arado e a espada, extensões de seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação”. Memória é o tema deste escrito: a memória de Epitácio Pessoa, jurista cujo sesquicentenário será comemorado no próximo 23 de maio. Retomar a leitura dos escritos de e sobre Pessoa é — sempre dar uma chance ao acaso de rememorar episódios interessantes! Não foi diferente dessa vez.

A aposentadoria do ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa foi publicada no Diário Oficial da União no dia 31 de julho de 2014. Passados quase nove meses, a Suprema Corte continua a funcionar com apenas dez membros. Desde então, por diversas razões, a Presidente da República ainda não conseguiu indicar um novo nome para o STF. Essa demora chama particular atenção quando se considera que, por decreto de 25 de janeiro de 1902, o Presidente Campos Salles nomeou Epitácio Pessoa, então com 36 anos, Ministro do Supremo Tribunal Federal, preenchendo assim a vaga ocorrida pouco antes com a morte do Barão Luiz Antônio de Pereira Franco. O Barão de Pereira Franco falecera a 20 de janeiro de 1902; menos de dez dias depois, ocorreria a posse de Epitácio no STF, a 29 de janeiro.

A notícia da nomeação para o Supremo chegou por via de telegrama a Petrópolis, a cidade imperial onde Pessoa costumava passar os verões na casa dos sogros. Foi pego de surpresa pela mensagem urgente:

“Tenho particular satisfação em comunicar que acabo de assinar decreto sua nomeação para do ministro Supremo Tribunal – elevado cargo em cujas funções julguei dever aproveitar a sua superior capacidade intelectual e moral. Aceite afetuosos cumprimentos de seu amigo, Campos Salles.”

Epitácio fora Ministro da Justiça e dos Negócios Interiores de Campos Sales entre 15 de novembro de 1898 e 06 de agosto de 1901 e apresentara sua demissão ao Presidente em razão de violentos protestos estudantis contra a rigidez da reforma do ensino empreendida por Pessoa. No começo de 1901, Epitácio aprovara um novo “Código do Ensino” que regulava em detalhes e racionalizava a “instrução pública”, revogando o código anterior, de 1892, que permitia manobras pouco adequadas à educação. Nos cerca de cinco meses que mediaram a exoneração do Ministério da Justiça e a posse no STF, Pessoa montou um escritório de advocacia na Rua do Rosário, no Rio de Janeiro.

Epitácio ficaria no STF até 1912. A década em que permaneceu como Ministro do Supremo Tribunal Federal foi de grande produtividade intelectual para ele. Na Corte, fora relator de 25 apelações cíveis, 15 agravos, 12 habeas corpus, 9 recursos extraordinários, além de 25 feitos diversos, totalizando 86 processos  sem nunca, porém, ser voto vencido. A isso soma-se a sua extensa atuação como Procurador-Geral da República entre 1902 e 1905 (nos termos da constituição então em vigor, o PGR era escolhido entre os ministros do STF), além da redação do Projeto de Código de Direito Internacional Público (1909-1911), a publicação de uma monografia sobre terrenos de marinha e a presidência da Comissão Internacional de Jurisconsultos Americanos. Não é objetivo desse artigo, porém, cuidar da produção intelectual epitaciana nos anos de Supremo Tribunal  isso já foi feito com enorme competência por juristas de renome e prestígio, como Oswaldo Trigueiro, Aliomar Baleeiro, Castro Nunes, Haroldo Valladão, José Américo de Almeida, Levi Carneiro ou Sobral Pinto. O ponto que aqui interessa são justamente a saída de Pessoa do Supremo Tribunal e mais dois episódios posteriores.

Com efeito, a saída deu-se por motivos de saúde, que começara a dar sinais de fragilidade a partir de 1907, quando é submetido a uma cirurgia. Em 1908, Pessoa se vê obrigado a afastar-se por alguns meses do STF para tentar uma cura em estações termais da Europa. O tratamento fora, porém, apenas um paliativo. No inverno de 1911, é acometido de grave crise hepática, com episódios de febre e dores. Seus médicos prescrevem uma nova estada termal no estrangeiro. Com poucas melhoras e depois de consultar especialistas na França, Alemanha e Suíça, é diagnosticado com um grande cálculo na vesícula, só removível mediante cirurgia. Feita a cirurgia de vesícula, em setembro de 1911, em Paris, recupera-se para voltar logo depois ao Brasil. Todos os seus médicos, no Brasil e no exterior, porém, foram unânimes: a sua saúde desaconselhava o sedentarismo da rotina como ministro do Supremo Tribunal. Permaneceu na Suprema Corte até 17 de agosto de 1912, quando enfim aposentou-se por recomendação médica. Em carta ao jornal “O Imparcial”, do Rio de Janeiro, datada de 08 de dezembro de 1912, Epitácio relatou as circunstâncias da sua saída do tribunal:

“Depois de grave e melindrosa operação que sofri no ano passado em Paris, os médicos a cujos cuidados me confiei e notadamente os Professores Gilbert e Hartmann, fizeram-me ver insistentemente que eu devia fugir ao regímen de vida a que me obrigavam os afanosos trabalhos do Supremo Tribunal Federal, trabalhos de que os leigos em geral não têm uma ideia exata, e que para mim, talvez por uma defeituosa compreensão do meu dever, sempre constituíram um encargo exaustivo. Aqui chegando tentei ainda por algum tempo conservar-me no exercício das minhas funções. Mas em abril deste ano, os Professores Miguel Couto e Azevedo Sodré tiveram ocasião de examinar-me e por sua vez me aconselharam a deixar o Supremo Tribunal Federal, manifestando-me ambos em atestados circunstanciados e fundamentados, de inteiro acordo com os seus colegas de Paris. (…) Assim, o laudo da junta médica da Diretoria Geral de Saúde veio apenas confirmar o que já era a opinião autorizada de Professores franceses e brasileiros, que acabo de nomear.”

A aposentadoria do Supremo Tribunal Federal não retirou Epitácio de outras atividades públicas e privadas, compatíveis com seu estado. E em uma severa mensagem dirigida ao jornal “O País”, de 08 de dezembro de 1912, explicou a sua situação:

“Quando um funcionário é declarado inválido, não quer isto dizer que ele esteja incapaz para todo e qualquer emprego de atividade. A invalidez exigida para a aposentação é a invalidez relativa ao exercício do cargo, não é a invalidez absoluta, que só existe na morte. É este o sentido racional do art. 75 da Constituição. É esta a interpretação que lhe tem dado invariavelmente o Supremo Tribunal, que, neste particular, peço licença para acreditar que entende um pouquinho mais e tem, em todo caso, mais autoridade oficial que os meus detratores. É isto finalmente o que nos dizem o senso comum e a experiência de todos os dias. Um escriturário que perde a mão direita está evidentemente em condições legais de ser aposentado. Entretanto, ninguém lhe poderá recusar atividade bastante para ser professor ou deputado. Um mestre de canto, atingido por afecção das cordas vocais, não está mais apto a exercer seu emprego, mas será talvez um excelente datilógrafo. Os exemplos podem multiplicar-se ao infinito. E eis porque não há razão, nem de direito nem de fato, para vedar ao empregado aposentado o exercício de outra função, como faz a lei republicana: o critério mais justo é o da monarquia, que apenas proíbe a acumulação dos estipêndios.”

Não resta dúvida de que o honroso cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal constitui, para a grande maioria de seus ocupantes, o ponto mais alto ou o ponto final de uma carreira jurídica exitosa. Essa circunstância, contudo, não se aplica à vida de Epitácio Lindolfo da Silva Pessoa, o paraibano de Umbuzeiro, nascido em 1865, que chegou ao Supremo antes dos quarenta anos de idade, manteve destacada atuação na Corte e, depois, ainda viria a ser Senador da República pela Paraíba, chefe da delegação brasileira na Conferência de Paz de Versalhes, Presidente da República e juiz da Corte Permanente de Justiça Internacional, em Haia, Holanda.

Oficialmente, Epitácio permaneceria como juiz do tribunal internacional de 10 de setembro de 1923 a 06 de dezembro de 1930, quando resolve abrir mão de sua reeleição em carta dirigida à Liga das Nações, em Genebra. Como as sessões da Corte não eram permanentes, Epitácio havia deixado a Haia nos primeiros dias de agosto de 1930. Mais ou menos nessa altura, prepara uma missiva ao Presidente Washington Luís nos seguintes termos:

“Exmo. Sr.  Presidente da República:

Em 1912, assaltado por grave e pertinaz enfermidade, que assumiu caráter permanente e me tolheu inteiramente o desempenho normal de minhas funções de Ministro do Supremo Tribunal Federal, fui obrigado a aposentar-me. Fi-lo a conselho insistente de numerosos médicos nacionais e estrangeiros, que prognosticavam como fatal minha permanência no cargo. Tentei ainda durante longo tempo esquivar-me a esta injunção; resisti cerca de um ano; os sofrimentos, porém, venceram-me afinal.  Fui então para a Europa, onde me tratei durante cerca de dois anos. Voltei em seguida para o Brasil e aqui insistindo com tenacidade no tratamento prescrito restabeleci-me.

O meu restabelecimento gera esta situação anômala: um funcionário válido aposentado como inválido. Qual o meio de solvê-la? Ou renunciar à minha aposentadoria ou fazer-me o Governo voltar à atividade do cargo. A primeira solução não seria justa: importaria perder eu, por motivo estranho à minha vontade, o prêmio legal de mais de 25 anos de serviço.

A segunda parece-me a solução razoável: o funcionário é afastado do serviço por praticamente incapaz; se recupera a capacidade, a consequência lógica é voltar ao serviço. Assim pensando, por duas vezes depois de restabelecido, comuniquei o Governo estar pronto para retornar às funções do meu antigo posto, ainda que por nova nomeação. Os dois antecessores de V.Exa. a quem me dirigi [Venceslau Brás e Delfim Moreira] preferiram manter as coisas no mesmo estado. Há pouco, ao abrir-se a vaga do saudoso Ministro André Cavalcanti, dispus-me a escrever a V.Exa. renovando minha comunicação; não tive tempo de fazê-lo: a vaga foi preenchida mais cedo do que eu esperava e era a praxe. Agora, porém, consta-me que um dos atuais membros do Supremo Tribunal requereu aposentadoria e eu me apresso em participar a V.Exa., caso queira o Governo pôr termo à referida anomalia, que estou apto fisicamente para desempenhar as minhas antigas funções.

Tenho a honra de apresentar a V.Exa. as seguranças da minha mais distinta consideração.”

Conforme uma nota manuscrita na margem daquele documento, a carta não chegou a ser enviada ao Presidente Washington Luís em razão da inauguração do governo de Getúlio Vargas, decorrente da Revolução de 1930. Epitácio, porém, tocou no assunto de sua volta ao STF com o novo ministro da justiça, Oswaldo Aranha. Não obteve sucesso todavia. Meses depois, redige uma nova carta endereçada, desta vez, ao Presidente Getúlio Vargas:

“Sr. Presidente:

Há cerca de três meses, imediatamente após a expiração da minha judicatura na Corte Permanente da Justiça Internacional, tive a honra de comunicar ao governo da V.Exa., —  como antes da minha eleição para aquela Corte já o fizera a outros governos — que me sentia em condições de voltar a exercer o cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal, no qual fora regularmente aposentado em 1912.

V.Exa. dignou-se tomar em consideração as minhas palavras, pois acabo de ler nos jornais a notícia de que me será designada uma das vagas existentes naquela Corte Judiciária. Mas, Sr. Presidente, depois da comunicação a que acima me refiro, as circunstâncias mudaram sensivelmente.

O Governo, por ato discricionário, houve por bem declarar em disponibilidade nada menos de seis ministros do Tribunal, invocando em justificativa do seu ato motivos que se me afiguram inaplicáveis ou injustos, motivos vagos e imprecisos, de que, por isto mesmo, os interessados não se puderam defender, e que assim os expuseram — contra as mais elementares noções de justiça — a todas as suspeitas da opinião pública.

Ora, Sr. Presidente, eu contava tornar à carreira de minha predileção em vaga que se abrisse naturalmente, sem prejuízo material ou moral do magistrado a quem fosse suceder. Dir-se-á que, posteriormente àquele ato do Governo, outra vaga se abriu no Tribunal, esta por morte, sendo lícito presumir que precisamente para ela teria sido feita a minha nomeação. Ainda assim, Sr. Presidente, não me é dado acudir à convocação do decreto governamental. Falta-me ânimo para fazer parte de um tribunal malferido por golpe tão fundo de vexame e desprestígio, e cujos membros permanecem sujeitos a ser expelidos do seu seio por causas cuja existência e relevância é juiz o Governo e só o Governo, causas que ninguém conhece — nem os acusados para se defenderem nem a opinião pública para apreciá-los.

Membro que fui do Supremo Tribunal Federal ao tempo em que ele representava o coroamento de um poder realmente independente; magistrado que nunca reconheci no exercício do meu ministério outro limite nem outra inspiração que não fossem os da minha própria consciência, não me sinto com forças, Sr. Presidente, para tomar assento numa Corte da qual possa amanhã ser afastado violentamente, sem forma nem figura de juízo, ao primeiro voto que o Governo, por motivos pessoais e só dele sabidos, não considere inteiramente conforme ao seu critério pessoal de justiça. Que fé pode merecer à Nação um tribunal assim ajoujado ao arbítrio de um poder estranho? Que confiança pode inspirar um juiz cujos votos têm assim que se amoldar não à sua consciência mas às opiniões alheias? No espírito dos seus jurisdicionados pairará sempre a dúvida se o seu voto é produto de uma convicção sincera ou um ato de cortesia ao Governo onipotente.

Perdoe-me, Sr. Presidente; não veja nas minhas palavras nenhum propósito de censura ao ato de aposentação forçada dos juízes do Supremo Tribunal, embora, — com a franqueza que V.Exa., espírito superior, não regateará a um velho servidor da República sem aspirações pessoais de qualquer natureza — eu entenda que o Governo, no seu próprio interesse, como no interesse do prestígio da magistratura e da eficiência da administração da justiça, não o devera ter praticado; mas, como dizia, não veja V.Exa. em minhas palavras nenhum intuito de hostilidade contra o seu governo, a quem desejo todos os triunfos: o único objetivo das considerações desta missiva é explicar a V.Exa. por que não posso anuir à nomeação que, há apenas três meses, eu me declarava pronto a aceitar, e, em consequência, rogar a V.Exa. haja por bem torná-la sem efeito e receber a renúncia, que ora faço, da minha aposentadoria de Ministro do Supremo Tribunal.

Queira V.Exa., Sr. Presidente, acolher os protestos de distinta consideração, com que tenho a honra de assinar-me de V.Exa. at.º col.ª adm.or — (a) Epitácio Pessoa.”

Uma nova nota manuscrita, no pé desta carta, explica as circunstâncias porque Pessoa não chegou novamente a enviá-la: “Rascunho de uma carta que escrevi para enviar ao Dr. Getúlio (ao ser informado de que os jornais no dia seguinte publicariam a minha nomeação para o Supremo Tribunal). Março de 1931, por ocasião do ato que pôs em disponibilidade os ministros Muniz Barreto, Mibielli, Godofredo Cunha, Pires e Albuquerque, Geminiano da Franca e Pedro dos Santos. Alguns jornais deram o consta da nomeação. Mas como esta não se efetuou, a carta deixou de ser enviada”. Esta não seria a primeira vez que Epitácio declinaria de uma nomeação de Vargas: em novembro de 1930, já havia rejeitado um convite para ser embaixador em Washington.

O tempo do Direito é múltiplo hipertempo , uma vez que está sempre preocupado com passado, presente e futuro. Ao inclinar a sua lupa sobre um episódio da microhistória epitaciana, esta narrativa toma as palavras como atos, revela a experiência jurídica também como experiência de vida e desvela o que o sentimento de justiça significava em Epitácio Pessoa.

Bibliografia

GABAGLIA, Laurita Pessoa Raja. Epitácio Pessoa (1865-1942). São Paulo: Livraria José Olympio, 1951, 2 v.

PESSOA, Epitácio. Pela Verdade. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1925.

_____. Obras Completas (v. III), Acórdãos e Votos no Supremo Tribunal Federal – Regimento Interno. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1955.

_____. Obras Completas (v. II), Primeiros Tempos. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1965.

_____. Obras Completas (v. XX), Miscelânea. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1965.

_____. Obras Completas (v. XXV), Revolução de Outubro de 1930 e República Nova. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1965.

Autores

  • Brave

    é professor da Universidade Federal da Paraíba, docente colaborador da Universidade Federal de Pernambuco e procurador do Ministério Público de Contas do Estado da Paraíba. Pós-doutor pela European University Institute e pela Calouste Gulbenkian, doutor pela Universidade de Coimbra e mestre pela UFPB. É ainda presidente do ramo brasileiro da International Law Association e líder do Laboratório Internacional de Investigação em Transjuridicidade.

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