Herança da exclusão

Ações afirmativas deveriam ter datado desde a abolição da escravatura

Autor

  • Cleucio Santos Nunes

    é advogado e vice-presidente Jurídico dos Correios. Mestre em Direito pela Universidade Católica de Santos (UniSantos) doutorando em Direito pela UnB e professor nas áreas de Direito Financeiro e Tributário.

5 de abril de 2015, 10h51

Este artigo constitui a primeira parte de uma série de outras abordagens sobre o tema das ações afirmativas no Brasil com foco na reserva de vagas para negros no serviço público, instituída pela Lei 12.990/2014.  No momento, ficarei adstrito a alguns elementos históricos sobre a chegada e permanência do negro no Brasil, a partir do flagelo da escravidão. Sem a pretensão de exaurir o assunto, será feito um breve escorço das atrocidades cometidas contra negros escravizados no Brasil e as consequências sociais e econômicas desse período da história, o que indica a necessidade de reparação jurídica de erros do passado no tempo presente.

Nos próximos artigos discorrerei a respeito do significado político e jurídico das ações afirmativas, dos indicadores de desigualdade social como determinantes da política pública e da igualdade como causa central das ações afirmativas. Explicarei também que as políticas de cotas são complementares às políticas públicas de base (educação e saúde) e serão ainda contextualizadas as principais medidas de cotas no Brasil.

A Lei 12.990, de 9 de junho de 2014, reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos no âmbito da administração pública federal direta e indireta. Trata-se de política social no terreno das ações afirmativas com nítido propósito de tentar corrigir distorções históricas na formação da sociedade brasileira. Como se sabe, desde a época da colonização do Brasil, a população negra sofre injustiças que não se resumem apenas à discriminação em razão do seu principal estereótipo, que é a cor da pele. O período da escravidão deixou chagas que estão abertas até hoje e emanam desigualdades econômicas e sociais que atingem mais fortemente a população negra do que outras etnias.

Não são poucas as explicações históricas que ajudam compreender porque as pessoas negras são preteridas em diversas oportunidades de crescimento pessoal e econômico. A principal delas sugere que, logo após a declaração da extinção da escravidão no Brasil, com a entrada em vigor da Lei do Império 3.353, em 13 de maio de 1888 — conhecida como Lei Áurea — faltaram medidas que pudessem incluir o negro no mercado de trabalho, relegando ao abandono social uma população de ex-escravos, desterrados de seus países africanos.

Em mais de cem anos de abolição da escravatura, a herança de exclusão do negro, deixada como um problema menos importante, estendeu-se para as regiões mais pobres e precárias do desordenado crescimento das cidades brasileiras. Daí por que é comum constatar-se nas comunidades carentes (favelas) e nas periferias, maior concentração de mulheres e homens negros (principalmente jovens e crianças) do que outros grupos étnicos, tais como brancos e amarelos, utilizando-se aqui um critério do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE).

A precariedade da vida em comunidades pobres aliada à convivência íntima dos negros como trabalhadores nos espaços urbanos economicamente mais desenvolvidos gera outros flagelos sociais tão ou mais desumanos quanto os efeitos da exclusão econômica. Refiro-me à violência que nas grandes cidades acomete mais o jovem negro do que o branco da mesma faixa etária.

Também do ponto de vista da saúde são várias as estatísticas, apontando que o negro morre mais pela ausência de tratamentos básicos de saúde do que o cidadão de outras etnias.

Os fundamentos morais das ações afirmativas, que têm por base a verificação de elementos empíricos — senão significariam pura abstração — entrecruzam-se, obviamente, com a força normativa do Direito para afirmação de políticas inclusivas, como é o caso das cotas em questão. Isso me obrigará a passar, ainda que em apertada síntese, pelas origens da injustiça com o negro no Brasil.

Origens da injustiça
A separação entre pobres e ricos no Brasil é abismal. A despeito dos diversos esforços empregados na última década para diminuir a distância dos 10% mais ricos para o restante da população por meio de programas governamentais de transferência de renda ou de inclusão social, o problema persiste disfarçadamente nos diversos matizes da sociedade brasileira.

De acordo com dados do IBGE, em 2012, “enquanto os 10% da distribuição com maiores rendimentos detinham 41,9% da renda total, os 40% com menores rendimentos se apropriaram de 13,3% da renda total. O indicador de desigualdade razão 10/40 mostra que, ao se dividir o rendimento dos primeiros pelo rendimento dos segundos (10% mais ricos sobre os 40% mais pobres), obtém-se a razão de 12,6, que significa dizer que os 10% com maiores rendimentos tinham um rendimento médio 12,6 vezes superior ao rendimento dos 40% com menores rendimentos (em 2002, essa razão foi de 16,8). Analogamente, as razões 20/20 (20% mais ricos sobre os 20% mais pobres) e 1/50 (1% mais rico sobre os 50% mais pobres) foram, respectivamente, 12,5 e 34,7, em 2012, e 17,4 e 42,0, em 2002” (fonte: IBGE. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira, 2013).

A esse problema se soma o da desigualdade por motivos raciais, que se agrava quando se comparam indicadores sociais e oportunidades de acesso aos bens da vida entre brancos, negros e indígenas.

Neste texto não pretendo abrir os arquivos históricos que poderiam responder perguntas sobre a evolução social das diversas etnias que desde o período colonial fizeram parte da formação do povo brasileiro. Meu principal objetivo neste item é extrair algumas conclusões úteis a partir de fontes indiretas que se debruçaram sobre a trajetória do negro no Brasil do período da escravidão até os tempos de hoje.

A escravidão de negros no Brasil
A formação da população brasileira sob o aspecto econômico, rural, urbano, cultural, artístico e religioso contou com a força de trabalho de aproximadamente doze milhões de negros. Este cálculo é de Darcy Ribeiro, ao acrescentar que, “ao fim do período colonial [o Brasil], constituía uma das maiores massas negras do mundo moderno” (2006: 203).

A presença do negro no Brasil, como se sabe, é decorrência do período da escravidão, que sucedeu a fase extrativista da exportação de pau-brasil para a Europa entre os anos de 1500 e 1530 (FURTADO, 1988: 9). A partir desse período, a economia brasileira passa a se centralizar na produção de cana de açúcar, basicamente concentrada na região nordeste. Os negros escravizados no Brasil foram desterrados, principalmente, da costa ocidental da África. As pessoas trazidas dessas regiões dividiam-se em três grandes grupos: (i) sudaneses, representados pelos Yoruba, também conhecidos como nagô; (ii) Dahomey, designados também como gegê; (iii) Fanti-Ashanti, chamados também de minas (RIBEIRO, 2006: 102).

Esses grupos guardavam diferenças culturais, de língua e de religião que até hoje marcam o continente africano. Essa diversidade de elementos básicos que unem pessoas em prol de objetivos comuns conspirou contra a unificação da população escravizada, abrindo margem ao sofrido e demorado período de escravatura no Brasil que, além da fase da cana de açúcar, grassou os diversos ciclos econômicos brasileiros. Primeiramente, a descoberta de minas de ouro, em 1696. A partir de 1760, a extração do ouro entra em declínio. Com o fim do ciclo do ouro as populações que viviam à custa da mineração entraram em franco empobrecimento, uma vez que nas zonas mineradoras não se desenvolveram culturas agrícolas capazes de compensar a escassez do minério.

Com a retomada da produção agrícola, após a febre mineradora, inicia-se novo ciclo da economia brasileira, qual seja: o ciclo do café. Essa atividade gerou profundos reflexos na distribuição demográfica do país e na produção econômica. No Brasil, as primeiras mudas aportaram por volta de 1727 na região do Pará. O café, de certa forma, compensou os prejuízos de a mineração não ter chegado até a região norte e a partir de 1732 o plantio se estendeu do Pará a Santa Catarina e do litoral a Goiás.

Com relação à indústria, Celso Furtado informa que as primeiras fábricas voltadas à produção de tecidos instalaram-se no Nordeste, apesar de o aparecimento da indústria no país ter ocorrido de forma simultânea em quase todas as regiões economicamente ativas (FURTADO, 2003: 247).

A partir de 1885, máxime em razão do maior acúmulo de capital na economia agroexportadora e o aumento da população nas zonas urbanas, iniciou-se um surto de instalação de indústrias no país. O capitalismo industrial somente encontrou condições de se desenvolver com o fim da escravidão e a chegada de imigrantes artesãos, que eram atraídos pela promessa de incentivos salariais.

No início do século XX, a “geografia econômica” do Brasil apresentava as seguintes “peculiaridades regionais”: i) Amazônia: apresentava características de economia extrativista do látex; ii) nordeste: a cultura da cana-de-açúcar encontrava-se estagnada, mas desenvolvia pequenas produções de algodão, tabaco e cacau; iii) sudeste: notadamente em São Paulo, estava em franco ritmo de expansão da produção do café; em Minas Gerais, além do café, expandia-se também a agricultura de subsistência; iv) sul e centro-oeste: dedicava-se basicamente à pecuária, fornecendo charque, couro, peles e erva-mate (FURTADO, 1988: 106).

  Assim, os três primeiros ciclos econômicos do Brasil, a cana de açúcar, a exploração do ouro e o plantio e exportação do café foram constituídos com a ausência de custos de produção com mão de obra. O trabalho forçado e não remunerado exercido pelos escravos negros, ironicamente, e apesar do indizível sofrimento de pessoas subjugadas às atrocidades da escravidão, permitiram ao Brasil ingressar na era industrial com o acúmulo de capital gerado da agroindústria cafeeira e escravagista.

Apesar da existência dos quilombos, núcleos de resistência e abrigo de escravos foragidos, as diversidades dos povos africanos escravizados no Brasil viabilizou sorrateira e passivamente a expansão da escravidão no país. Some-se a isso a estratégia dos mercadores de escravos de não permitirem a concentração de servos de etnia comum em uma mesma propriedade e até nos mesmos navios negreiros, tudo como esforço para evitar resistências coletivas ao trabalho forçado (RIBEIRO, 2006: 103).

Um dos traços mais cruéis da escravidão no Brasil foi a imposição de carga brutal de trabalho a que eram submetidos os escravos, o que na prática condenava o trabalhador escravo a apenas dez anos de vida ativa de labor. A baixa produção era sinônimo de acoite, razão pela qual tinha que poupar suas forças no pouco tempo de descanso. Vale acrescentar que o escravo era constantemente ameaçado de morte contra sua natural intenção de busca da liberdade. Eram comuns os castigos preventivos como instrumento brutal e ignominio de coação para impedir fugas e assim conseguir manter a escravidão como insumo produtivo. Conforme a oportuna advertência de Ribeiro: “Aí está a racionalidade do escravismo, tão oposta à condição humana que, uma vez instituída, só se mantém através de uma vigilância perpétua e da violência atroz da punição preventiva” (2006: 107).

A Lei do Império 2.040, de 28 de setembro de 1871, alcunhada popularmente como “Lei do Ventre Livre” é considerada a primeira instituição jurídica em direção à abolição da escravidão no Brasil. Resultado de inúmeras pressões da Inglaterra e da intelectualidade abolicionista, a mencionada norma declarava que os filhos de escravas nascidos a partir de sua promulgação eram livres, podendo ser entregues ao Estado ou mantidos até os vinte e um anos com o proprietário de sua mãe. Geralmente a mãe optava pela segunda alternativa, o que permitia que seu filho, embora livre, trocasse a liberdade por moradia e trabalho nas propriedades do amo de sua genitora até se tornar adulto. A abolição da escravidão somente se institucionalizou para todos os escravos com a Lei do Império 3.353, em 13 de maio de 1888 — conhecida como Lei Áurea e que ajudou a fazer ruir o império e surgir a república, no ano seguinte.

O escravo viveu “acondicionado culturalmente a poupar sua força de trabalho para não ser levado à morte pelo chicote do capataz” (RIBEIRO, 2006: 203). Esse comportamento era diferente do colono imigrante vindo da Europa para o Brasil para trabalhar na indústria ou no campo com o fim da escravidão. O imigrante estava ambientado a outra realidade de trabalho, pois recebia salário em seu país de origem, fazendo com que associasse o aumento de sua produção à conquista de um pedaço de terra ou à ampliação de seus ganhos.

Por outro lado, o negro, uma vez alforriado, cultuava sua liberdade como uma dádiva. Lançou-se às estradas à procura de um lugar para plantar e sobreviver. Caíram em desgraça e na miséria, pois a terra fértil nessa época já estava praticamente toda ocupada pelas fazendas de café e outras culturas, de modo que os ex-escravos eram considerados esbulhadores e, como tais, expulsos pela polícia, o que foi empurrando boa parte dessa população para as grandes cidades em processo de formação (RIBEIRO, 2006: 205). Nas comunas sua sorte não foi diferente. Sem instrução e dinheiro, o destino dos ex-escravos foi viver à margem da prosperidade. Logo se instalaram na periferia e nos morros, como se criassem uma espécie de quilombos urbanos, perpetuando o distanciamento entre as raças.

Essas observações históricas podem explicar — ainda que não seja aceitável — o doentio legado racista brasileiro em relação ao negro, que era considerado “culpado” por sua própria penúria. Nessas circunstâncias, conforme alerta Darcy Ribeiro, “seu sofrimento [o do negro] não desperta nenhuma solidariedade e muito menos a indignação” (RIBEIRO, 2006: 205).

O Brasil atravessa quase todo o século XX com essa mentalidade, e as ações afirmativas no país que deveriam ter datado desde a abolição da escravatura, somente iniciam seu despertar a partir dos anos 90, alicerçadas no traçado democrático e igualitário fomentado pela Constituição Federal de 1988.

Referências bibliográficas

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 33ª ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 2003,

FURTADO, Milton Braga. Síntese da economia brasileira. 5ª ed. São Paulo: Livros Técnicos e Científicos Editora, 1988.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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    é advogado e vice-presidente Jurídico dos Correios. Mestre em Direito pela Universidade Católica de Santos (UniSantos), doutorando em Direito pela UnB e professor nas áreas de Direito Financeiro e Tributário.

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