Direitos fundamentais

O processo não é problema, é garantia. O casuísmo é que é o problema.

Autor

  • Abhner Youssif Mota Arabi

    é juiz auxiliar da presidência do Supremo Tribunal Federal coordenador do Centro de Mediação e Conciliação do STF doutorando em Direito do Estado (subárea: Direito Constitucional) na Universidade de São Paulo (USP) mestre em "Direito Estado e Constituição" pela Universidade de Brasília (UnB) ex-assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal (2014-2018) e autor de livros capítulos de livros e artigos jurídicos.

5 de abril de 2015, 16h55

Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 29 de março[1], Sergio Fernando Moro — juiz federal que conduz o processo da Operação Lava Jato no Paraná — e Antônio Cesar Bochenek — juiz federal presidente da Ajufe — afirmam que “o problema é o processo”. Valendo-se de tal afirmativa, os autores defendem que a melhor solução seria a atribuição de eficácia imediata àquelas sentenças condenatórias — proferidas por juízo de primeiro grau, portanto — exaradas em processos referentes a “crimes graves em concreto, como grandes desvios de dinheiro público”, independentemente do cabimento ou não de recursos em face de tal decisão. Sim, caro leitor, é essa mesma a proposta  que fizeram.

Como se sabe, o que já desconfio não ser tão óbvio assim, a Constituição Federal de 1988, no âmbito do direito penal e processual, trouxe importantes garantias aos jurisdicionados, dentre as quais se destaca a presunção de inocência (ou presunção de não-culpabilidade, segundo parte da doutrina), prevista no inciso LVII do artigo 5º do texto constitucional (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”). No sistema processual penal brasileiro pós-88, a prisão, bem como os demais efeitos da condenação e afora os casos de medidas e prisão cautelares, somente pode possuir eficácia após o trânsito em julgado de decisão condenatória, após, e não independentemente, a apreciação dos recursos cabíveis. A proposta, portanto, traveste-se de verdadeira inconstitucionalidade.

Aliás, não se trata apenas de hipótese inconstitucional, mas também inconvencional. Isso porque a Convenção Americana de Direitos Humanos — o Pacto de São José da Costa Rica —, do qual o Brasil é signatário, afirma em seu artigo 8, que trata das garantias judiciais, que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”. Ora, a comprovação legal da culpa, requisito exigido pela Convenção, não se dá com a sentença condenatória proferida pelo juízo de primeiro grau, mas tão somente após o trânsito em julgado da condenação.

Há, ainda, outo equívoco. A tese defendida pelos autores no artigo indicado será levada à apreciação do Congresso Nacional, conforme afirmado no próprio texto, mediante Projeto de Lei a ser apresentado pela Associação dos Juízes Federais do brasil (Ajufe). Projeto de Lei, destaco. Ora, ainda que se cogitasse de reformar o direito posto no sentido de reduzir as garantias processuais e os direitos fundamentais assegurados — o que, por si só, já se tem por inadmissível, o Projeto de Lei não é um meio formal de possível empreendimento as alterações sugeridas. Ainda que se sustentasse, tal qual defendem os autores, que a proposição não ofende o texto constitucional e suas garantias não-retrocessivas, o Pacto de São José da Costa Rica, por tratar de direitos humanos, possui, no ordenamento jurídico brasileiro, o status de norma supralegal, conforme o parágrafo 3º do artigo 5º da CF/88. Norma supralegal não pode ser alterada por norma legal, de modo que a proposta seria também formalmente inválida se aprovada como Projeto de Lei.

Demais disso, e é o que aqui mais importa, o que seriam tais “crimes graves em concreto”? A quem caberia defini-los? Seriam definidos em concreto casuisticamente?  Será que, agora, o clamor popular e a indignação coletiva contra a corrupção servirão de hipótese a ensejar a excepcionalidade do texto constitucional? Ou então passaremos a adotar o jargão de que os fins justificam os meios como fio condutor de nossa política criminal? O clamor popular não pode servir de causa justificante à lesão de direitos fundamentais e garantias individuais, por mais altruísticos que sejam seus interesses. Não se pode combater a ilegalidade com ilegalidade.

Recentemente, aliás, após a eclosão da operação "lava jato" e desde o julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão, tem sido várias as tentativas de, sob o pretexto de propor novas medidas de combate à corrupção, reformar o ordenamento jurídico de forma inconstitucional. Relembre-se, a propósito, das propostas feitas pelo Ministério Público Federal[2], capitaneadas pelo subprocurador-geral da República Nicolao Dino Neto, chefe da Câmara de Combate à Corrupção, e nas quais se recomendava que se alterasse o Código de Processo penal para que provas ilícitas pudessem ser usadas nos processos “quando os benefícios decorrentes do aproveitamento forem maiores do que o potencial efeito preventivo”. Mais um casuísmo.

Outro exemplo que se pode rememorar foi quando o Supremo Tribunal Federal determinou, durante o julgamento da Ação Penal 470, que se iniciasse o cumprimento de pena de alguns réus, com a consequente emissão de mandados de prisão, antes de finalizada a análise de recursos ainda pendentes (no caso os embargos infringentes). Os casos para os quais os olhos da nação se voltam mais atentamente devem ser decididos diferentemente do que preconiza o ordenamento jurídico?

O que parece ocorrer é que o clamor popular recentemente fortalecido e direcionado ao combate à corrupção no Brasil — o qual é, ressalto, importante e necessário — tem levado determinados juristas brasileiros a formular propostas que, em verdade, são inconcebíveis!

Não se questiona aqui a importância do combate à corrupção e de estudos e proposições de novas medidas voltadas a extingui-la. O problema é que essa política de repressão, como integrante dos sistema penal que é, não pode ser determinada casuisticamente e em confronto com os direitos fundamentais consagrados pelo ordenamento jurídico nacional, bem como pelo sistema internacional de proteção aos direitos humanos. A definição do plano de combate à corrupção e as alterações normativas dele decorrentes não devem se pautar a partir de uma fundamentação calcada em casos concretos específicos, mas em regras gerais e compatíveis com as garantias constitucionalmente estabelecidas.

Ao contrário do que afirmam os autores do texto com o qual aqui se dialogou, o processo e suas garantias correspondentes apesar de também carecerem de reformas e alterações, não podem ser vistos como problema. Antes de tudo, o processo deve ser visto como garantia, pelo qual se resguarda ao cidadão direitos como o contraditório, a ampla defesa, a presunção de inocência, a produção de provas lícitas, dentre outras garantias.

O processo não é problema. O processo é garantia. O casuísmo é que é o problema.

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