Paradoxo da Corte

Poder discricionário do juiz não pode atrapalhar tutela do cidadão

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30 de setembro de 2014, 7h40

Desde sempre, com o passar do tempo, a mudança dos paradigmas sociais implica saudável evolução das teses jurídicas e, consequentemente, do posicionamento dos tribunais. Isso significa que os precedentes judicias do passado, sobre inúmeras questões, vão sendo superados por novas orientações que decorrem da dinâmica do Direito.

Seja como for, é certo que tais alterações normalmente não são abruptas, até porque a uniformidade da jurisprudência garante a certeza e a previsibilidade do Direito. Os cidadãos de um modo geral, informados por seus advogados, baseiam as suas opções não apenas nos textos legais vigentes, mas, também, na tendência dos precedentes dos tribunais, que proporcionam àqueles, na medida do possível, o conhecimento de seus respectivos direitos. Na verdade, a harmonia pretoriana integra o cálculo de natureza econômica, sendo a previsibilidade que daquela decorre pressuposto inafastável para o seguro desenvolvimento do tráfico jurídico-comercial: uma mudança abrupta e não suficientemente justificada da posição dos tribunais solapa a estabilidade dos negócios.

Ademais, a jurisprudência consolidada garante a igualdade dos cidadãos perante a distribuição da justiça, porque situações análogas devem ser julgadas do mesmo modo, sobretudo no Brasil, em que há grande número de tribunais. O tratamento desigual é forte indício de injustiça em pelo menos um dos casos.

Em suma, ao preservar a estabilidade, orientando-se pelo precedente judicial em situações sucessivas assemelhadas, os tribunais contribuem, a um só tempo, para a certeza do direito e para a proteção da confiança na escolha do caminho trilhado pela decisão judicial.

Em nosso país, na órbita da tutela jurisdicional, avulta, a respeito dessa expressiva temática, a importância do Superior Tribunal de Justiça, como corte federal, cuja vocação precípua é a de uniformizar a interpretação e aplicação do Direito nacional infraconstitucional.

E tal inequívoca função nomofilácica [de zelar pela uniformização da interpretação e aplicação do Direito] do STJ foi reiterada, em tom de exortação, pelo ministro Humberto Gomes de Barros, em conhecido voto proferido no Agravo Regimental no Recurso Especial 228.432-RS, julgado pela Corte Especial: “O STJ foi concebido para um escopo especial: orientar a aplicação da lei federal e unificar-lhe a interpretação, em todo o Brasil. Se assim ocorre, é necessário que sua jurisprudência seja observada, para se manter firme e coerente. Assim sempre ocorreu em relação ao Supremo Tribunal Federal, de quem o STJ é sucessor, nesse mister. Em verdade, o Poder Judiciário mantém sagrado compromisso com a justiça e a segurança. Se deixarmos que nossa jurisprudência varie ao sabor das convicções pessoais, estaremos prestando um desserviço a nossas instituições. Se nós — os integrantes da corte — não observarmos as decisões que ajudamos a formar, estaremos dando sinal, para que os demais órgãos judiciários façam o mesmo. Estou certo de que, em acontecendo isso, perde sentido a existência de nossa corte. Melhor será extingui-la”.

Todavia, a despeito dessa premissa notória, o exercício profissional revela que acerca de inúmeras questões importantes há flagrante e indesejada instabilidade nos precedentes do STJ. E isso ocorre — o que é pior — num mesmo momento temporal e sem qualquer justificação plausível!

Dentre estas, sobressai aquela relacionada à incidência da regra do artigo 462 do Código de Processo Civil nos domínios da instância extraordinária.  Seguindo velha e  tradicional orientação que prevalecia no STF, atualmente, o STJ tem entendido que, também durante a tramitação do recurso especial, a superveniência de fato apto a influir no resultado do processo deve ser considerado pelo julgador.

Inúmeros precedentes sufragam esta tese, como, por exemplo, infere-se de recente acórdão da 3ª Turma, nos Embargos de Declaração no Agravo Regimental no Recurso Especial 1.145.754-ES, de relatoria do ministro João Otávio de Noronha: “O artigo 462 do CPC não possui aplicação restrita às instâncias ordinárias, devendo o STJ conhecer de fato superveniente que, surgido após a interposição do recurso especial, é suficiente para alterar o resultado do julgado”.

Nesse mesmo sentido manifestou-se a 4ª Turma, no julgamento unânime do Recurso Especial 704.637-RJ, relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão: “O artigo 462 do CPC permite, tanto ao juízo singular como ao tribunal, a análise de circunstâncias outras que, devido a sua implementação tardia, não eram passíveis de resenha inicial. Tal diretriz deve ser observada no âmbito do STJ porquanto o artigo 462 não possui aplicação restrita às instâncias ordinárias, conforme precedente da Casa”.

A 2ª Turma, no julgamento dos Embargos de Declaração no Recurso Especial 1.130.835-DF, considerou também a: “Existência de fato novo capaz de influir no julgamento da lide, nos moldes do artigo 462 do CPC, consubstanciado na procedência dos embargos opostos à execução de título extrajudicial, a impedir a compensação pretendida pelo Distrito Federal”.

Igualmente, a 3ª Turma, ao ensejo do julgamento do Recurso Especial 911.932-RJ, cujo voto condutor é da lavra do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, tendo presente a coisa julgada superveniente, produzida em ação de natureza declaratória, que tramitava paralelamente ao processo de execução, proveu o recurso especial, ao argumento de que: “O fato superveniente (artigo 462 do CPC) deve ser tomado em consideração no momento do julgamento a fim de evitar decisões contraditórias e prestigiar os princípios da economia processual e da segurança jurídica”.

No entanto, de forma injustificável, a mesma 3ª Turma vem de proferir julgamento totalmente diferente em situação absolutamente análoga, no Agravo Regimental nos Embargos de Declaração no Recurso Especial 621.179-SP. Infere-se que o recorrente levou ao conhecimento do relator a ocorrência de fato supeveniente, consubstanciado em sentença transitada em julgado, declarando nula a patente, objeto do pleito de indenização, julgado procedente, discutido no recurso especial. A turma julgadora, por paradoxal que possa parecer, concluiu não ser “possível a alegação de fato novo exclusivamente em sede de recurso especial por carecer o tema do requisito indispensável de prequestionamento e importar, em última análise, em supressão de instância”!

É indiscutível que o juiz não pode ser escravo do precedente judicial, porque certamente haveria aí uma abdicação da independência da livre persuasão racional, assegurada pelo artigo 131 do CPC.

Contudo, se o tribunal resolver desprezar o precedente judicial cabe-lhe o ônus do argumento contrário. Gino Gorla (Precedente giudiziale, Enciclopedia giuridica treccani, v. 23, 1990, pág. 11-12), em um de seus últimos ensaios, pondera, acerca desse verdadeiro dever, que seria até temerário permitir, sem uma argumentação consistente, que um posicionamento jurisprudencial sedimentado deixasse de ser aplicado em hipótese similar.

A tutela do cidadão, que confiou no Judiciário, não pode jamais ser relegada a pretexto do poder discricionário da magistratura!

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