Retrocesso Social

PL sobre desapropriação deve abranger todas as hipóteses de trabalho escravo

Autor

  • Gustavo Filipe Barbosa Garcia

    é livre-Docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito pela Universidad de Sevilla.

27 de setembro de 2014, 8h00

No dia 5 de junho de 2014 foi promulgada a Emenda Constitucional 81, que, de forma louvável, prevê a desapropriação decorrente de trabalho escravo.

Entretanto, o Senado Federal acrescentou a necessidade de regulamentação legal quanto a essa modalidade de expropriação da propriedade.

O artigo 243 da Constituição da República passou a dispor, assim, que as propriedades rurais e urbanas de qualquer região do país onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo, nos termos da lei, devem ser expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no artigo 5º da mesma Constituição.

Tendo em vista a necessidade de lei regulamentadora, o Projeto de Lei do Senado 432/2013 tem como objeto, justamente, dispor sobre a expropriação das propriedades rurais e urbanas onde se localizem a exploração de trabalho escravo.

Nesse sentido, estabelece que, para os fins ali previstos, o trabalho escravo é considerado como: a submissão a trabalho forçado, exigido sob a ameaça de punição, com uso de coação, ou que se conclui da maneira involuntária, ou com restrição da liberdade pessoal; o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; a manutenção de vigilância ostensiva no local de trabalho ou a apropriação de objetos ou documentos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; a restrição, por qualquer meio, da liberdade de locomoção do trabalhador, em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

Nota-se que o referido Projeto de Lei, ao propor a regulamentação do atual artigo 236 da Constituição Federal de 1988, de forma inusitada, deixa de prever o “trabalho degradante” como hipótese de trabalho escravo, certamente sob a justificativa de que, em razão do seu conceito ser indeterminado, acarretaria insegurança jurídica.

Entretanto, se bem examinarmos, não se observa qualquer indefinição conceitual.

O trabalho em condições degradantes é aquele em que não são observadas as normas básicas e essenciais que disciplinam o labor, em especial as voltadas à segurança, saúde, moradia, higiene e alimentação do empregado.

O artigo 149 do Código Penal, com redação determinada pela Lei 10.803/2003, é claro e expresso ao tipificar o crime de redução à condição análoga à de escravo, ao mencionar, de forma alternativa, as seguintes condutas:

a) submeter alguém a trabalhados forçados ou a jornada excessiva;

b) sujeitar a condições degradantes de trabalho;

c) restringir, por qualquer meio, a locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

Nas mesmas penas (reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência) incorre quem:

d) cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;

e) mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

No mesmo sentido dispõe a Instrução Normativa 91, de 05 de outubro 2011, da Secretária de Inspeção do Trabalho, do Ministério do Trabalho e Emprego, sobre procedimentos que deverão ser adotados em relação à fiscalização para a erradicação do trabalho em condição análoga à de escravo.

O Projeto de Lei em questão, na verdade, ao excluir o trabalho degradante como uma das modalidades de trabalho escravo da atualidade, incide em manifesto retrocesso social, não admitido pela Constituição Federal de 1988 (artigos 7º, caput, e 5º, parágrafo 2º), contrariando a previsão legal já existente, consoante o mencionado artigo 149 do Código Penal.

Além disso, o referido PLS acaba ignorando a previsão fundamental do artigo 5º, inciso III, da Constituição da República, no sentido de que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”.

É preciso ter consciência de que a livre-iniciativa não pode ser exercida em prejuízo da dignidade da pessoa humana.

Afinal, como já decido pelo Supremo Tribunal Federal, para a “configuração do crime do artigo 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva ou a condições degradantes de trabalho, condutas alternativas previstas no tipo penal” (Inq. 3.412/AL, Red. para acordão Min. Rosa Weber, DJE 12.11.2012).

Espera-se, portanto, que o Projeto de Lei 432/2013 seja aperfeiçoado, passando a abranger todas as atuais hipóteses de trabalho em condições análogas a de escravo, inclusive o trabalho em condições degradantes, atendendo, assim, à exigência constitucional de respeito ao valor social do trabalho (artigo 1º, inciso IV, da Constituição da República).

Autores

  • Brave

    é livre-Docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito pela Universidad de Sevilla. Pós-Doutorado em Direito. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, Titular da Cadeira nº 27. Membro Pesquisador do IBDSCJ. Professor Universitário em Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito. Advogado e Consultor Jurídico. Foi Juiz do Trabalho das 2ª, 8ª e 24ª Regiões, Procurador do Trabalho do Ministério Público da União e Auditor Fiscal do Trabalho.

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