Estado islâmico

EUA discutem se razões humanitárias podem legitimar ações militares ilegais

Autor

24 de setembro de 2014, 10h52

Os Estados Unidos iniciaram os ataques contra o estado islâmico, em território da Síria, na madrugada de terça-feira (23/9). Logo ao amanhecer começaram a discutir as justificativas jurídicas para a ação militar. É uma tarefa complexa, porque um consenso dificilmente será alcançado, mesmo dentro do país.

Surge então uma questão subsequente: a “legitimidade” da “guerra humanitária”, se houver, pode ser colocada acima da “legalidade”? A Carta das Nações Unidas estabelece: “Todos os estados membros deverão evitar, em suas relações internacionais, a ameaça ou o uso de força contra a integridade territorial ou dependência política ou dependência política de qualquer estado”.

Mas abre duas exceções a essa regra geral, dentro das quais os países tentam justificar suas ações militares em território alheio: 1) Os estados podem usar força em legítima defesa; 2) O Conselho de Segurança da ONU pode autorizar o uso de força para o propósito de proteger a paz e a segurança internacional.

A justificativa jurídica apresentada pelos EUA é o da legítima defesa. Em uma carta ao secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, a embaixadora americana Samanta Power argumentou que esse princípio dá aos países o direito de se defender, incluindo usando força no território de outro país, quando esse país não quer ou não pode resolver o problema.

De acordo com o jornal The New York Times e outras publicações, as agências de inteligência dos EUA já afirmaram que o estado islâmico não representa uma ameaça imediata aos Estados Unidos — apesar de um outro grupo militante estacionado na Síria, o Khorasan, ser formado por antigos membros da Al-Qaeda e representar uma ameaça perene aos EUA.

Apoio local
Assim, segundo as publicações, os EUA afirmam que sua ação militar, apoiada por cinco países árabes, está dentro da legalidade, “porque ela é feita em defesa do Iraque”. Os cinco países árabes são o Bahrein, a Jordânia, o Qatar, os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita — todos aliados dos EUA no Oriente Médio.

Nem o Iraque nem a Síria estão na lista. Mas, de acordo com a carta da embaixadora, o Iraque pediu a ajuda dos Estados Unidos para se defender dos ataques do estado islâmico, que encontrou refúgio dentro do território da Síria. E o Iraque precisa recuperar o controle de uma certa área em sua fronteira.

Os ataques aéreos dos EUA aos militantes do estado islâmico em território do Iraque nunca foram seriamente contestados. Aliás, eles veem acontecendo desde agosto. O que está em discussão, agora, são os ataques aéreos, iniciados na terça-feira, a alvos dentro do território da Síria.

Os EUA nunca receberam um pedido da Síria — e também nunca pediram permissão à Síria — para fazer os ataques aéreos em seu território. “Não pedimos permissão à Síria, não coordenamos os ataques com a Síria, nem sequer enviamos uma carta à Síria informando sobre os ataques”, declarou o Departamento de Estado dos EUA.

Nem há como fazê-lo, porque os EUA deixaram de reconhecer a legitimidade do governo da Síria no decorrer de seus conflitos internos. A Síria, por sua vez, já declarou que “qualquer ação direta dos Estados Unidos dentro da Síria constituiria um ato de guerra e uma violação de sua soberania”, segundo a Vanity Fair Daily.

Impasse
A advogada especializada em legislação internacional e professora de Direito da Universidade de Columbia Sarah Knuckey explicou à publicação as exigências jurídicas para uma “justificação sob a lei internacional”:

“Os ataques aéreos dos EUA na Síria podem ser justificáveis juridicamente se a Síria consentir com o uso de força em seu território. Se a Síria não consentir, os ataques violam a legislação internacional, a não ser que os EUA demonstrem que os ataques contra o Estado Islâmico e contra o grupo Khorasan foram feitos em legítima defesa ou legítima defesa coletiva. Nesse caso, precisa apresentar imediatamente a justificativa ao Conselho de Segurança da ONU”.

“Além disso, se o uso de força for permitido por consentimento da Síria ou por legítima defesa, cada ataque deve também respeitar as regras do uso de força em conflito armado. E se houver relatos verossímeis de vítimas civis, os EUA devem investigar, explicar e dar uma resposta ao problema”.

Segundo o jornal The Telegraph, os Estados Unidos não podem apresentar uma reivindicação plausível de que está usando força em legítima defesa ou a pedido do estado da Síria para, por exemplo, suprimir uma rebelião interna. Supondo que os EUA realmente fizessem questão de comprovar a legalidade da ação, mas falhassem nessa empreitada, toda a discussão poderia se voltar para a legitimidade da ação. Isto é, às vezes é preciso usar a força para resolver uma questão humanitária premente.

Precedente humanitário
Isso já aconteceu antes, diz o professor de "Guerra no Mundo Moderno" Theo Farrell. Em março de 1999, os EUA, com apoio de países aliados da Otan, lançaram uma extensa campanha de bombardeio contra forças da Sérvia, para “interromper atrocidades contra civis em Kosovo”. Também nesse caso, os EUA não podiam reivindicar legítima defesa. Nem foi uma ação militar autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU.

Para a coalizão de países que atacou a Sérvia, como a atual coalização dos EUA com seus cinco aliados árabes, os ataques se basearam em justa causa, uma necessidade humanitária. No entanto, a necessidade humanitária não é reconhecida pela lei internacional como fundamento jurídico para o uso da força.

Em 1999, como agora, as opiniões estavam divididas. Muitos países, especialmente os ocidentais, reconheceram a legitimidade das ações da Otan, lideradas pelos EUA, mas poucos reconheceram sua legalidade. De lá para cá, as coisas não melhoraram. Pioraram no governo Bush. Para justificar a guerra ao Iraque, quando o presidente e sua equipe criaram a doutrina da defesa “preemptiva” – isto é, um país tem o direito a legítima defesa preventiva, se houver uma ameaça de ataque.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!