Segunda Leitura

Profissionais do Direito precisam se preparar para situações de conflito

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

21 de setembro de 2014, 10h44

Spacca
Dia 19 de setembro, em longa viagem de avião dentro do território nacional, surge um conflito ao meu lado. Um casal ainda jovem senta-se na primeira fila e coloca suas maletas de mão no colo. É proibido. O comissário de bordo se aproxima e informa que as valises devem ser colocadas no bagageiro. Eles contestam, dizendo que nos bagageiros não há lugar, evidentemente se referindo aos que estão acima do banco e não aos da segunda ou terceira fila.  Põem-nas embaixo da cadeira. Não pode, pois atrapalha os passageiros de trás. O comissário insiste, o rapaz se irrita e responde de forma agressiva. O comissário coloca as maletas no bagageiro localizado mais atrás. O ambiente se acalma, o voo termina, o avião pousa. Mas, antes que se desliguem os reatores, o passageiro se levanta, apanha as malas e  coloca-as no colo. Nova discussão, desobediência, o avião para. O piloto avisa que só prosseguirá no desembarque quando as ordens dos comissários forem obedecidas. O comissário leva as malas de volta ao bagageiro. O jovem olha-o com ódio, entre os dentes dirige-lhe os palavrões mais graves da língua portuguesa e só não o agride porque seriam muitas as testemunhas.

Sentado ao lado, partícipe mudo do conflito, fiquei impressionado com o profissionalismo do comissário de bordo. Sem alterar a voz, usando tratamento de senhor, serenamente ele fez cumprir as normas regulamentares. Veio-me então à mente: como se conduzem os profissionais do Direito nos conflitos que a vida, diariamente, coloca-lhes à frente?

Inevitável o silogismo. Premissas: a) os comissários de bordo são capacitados a enfrentar situações de conflito sem perder o controle; b) os profissionais do Direito não são capacitados. Conclusão: os profissionais do Direito, por não estarem capacitados para administrar corretamente as situações de conflito, expõem-se, sofrem e fazem sofrer.

Vejamos alguns exemplos, muitos deles retirados de fatos reais.

Das profissões ligadas, direta ou indiretamente, à área do Direito, as que mais se expõem a conflitos são as carreiras policiais. Ninguém fica feliz ao ser abordado pela Polícia Militar e não há quem goste de ir a uma Delegacia de Polícia. Vai daí que é comum a existência de atritos, fruto da exaltação de nervos. Isto pode ocorrer das mais variadas formas. Imagine-se que em uma Delegacia de Polícia a vítima de um furto ofenda todos, inconformada com seu destino. Mais difícil ainda é o atendimento de rua, feito pela PM. Parentes tentam interpor-se à ação policial, palavras ofensivas não são raras.

Como tem sido feito o preparo dos policiais? As academias de Polícia capacitam-nos para tratar com pessoas agressivas, com vítimas nervosas que vêm com a frase clássica “com tanto ladrão na rua, vocês…” ou com pessoas que se dizem amigas de seus chefes? Nos cursos preparatórios de seus membros são dadas aulas a respeito? Ou fica-se nas tradicionais informações sobre os prazos do inquérito policial?

E na Justiça, será diferente? Os oficiais de Justiça, obrigados a visitar locais de alta criminalidade, são orientados quanto aos procedimentos? E para atuar nas Varas de Família, recebem noções de psicologia para poder tratar com uma mãe de quem se tira a guarda de um filho? No atendimento de balcão das secretarias e cartórios, os servidores são treinados para atender um advogado exaltado com a demora de um ato processual?

Juízes têm formação que os habilite a lidar com as partes e seus advogados?  Como devem reagir em uma audiência diante de um réu que lhes dirija uma ofensa? Alguém explica a um ou um(a) jovem magistrado(a) que às vezes a provocação é estudada e nada mais é do que uma forma de afastá-los do processo através da suspeição? Não se esqueça de que boa parte dos juízes novos têm pouca experiência de vida, saíram da faculdade para a magistratura com vivência reduzida a um ou dois estágios.

O presidente de um tribunal está preparado para receber perguntas agressivas de um repórter? Depois de 30 anos de dedicação a despejos e rescisão de contratos, está o magistrado preparado para responder a indagação de um jovem jornalista, que o tratando sem cerimônia por você, pergunta-lhe se acha justo um juiz receber auxílio-moradia?

E no Tribunal do Júri, deve o promotor responder no mesmo nível de agressividade às acusações de um advogado que lhe atribui ser mentiroso e não ter lido o processo? No Ministério Público há aulas sobre como portar-se diante de tal ocorrência? Em situação totalmente oposta, como deve comportar-se o advogado que, acompanhando seu cliente ao gabinete do promotor para celebrar um termo de ajustamento de conduta em um inquérito civil, vê seu cliente ser tratado de forma desrespeitosa? Deve retirar-se da sala? Dizer “poucas e boas” ao agente do MP e sair batendo a porta?

Atualmente, mais do que nunca, estes atritos se sucedem. A vida urbana se complica, o trânsito nas cidades é irritante, a pressão exercida pelos meios digitais de comunicações tira os poucos momentos de paz, há gente em excesso, filas, tudo é disputado. Isto está retirando das pessoas a calma necessária a relações sociais saudáveis. O profissional do Direito não está preparado para enfrentar para tais situações. Nunca ouvi falar de capacitação destes profissionais neste tema, na prática as lições são transmitidas pelos mais antigos, de forma empírica. Os incidentes se repetem inutilmente.

Evidentemente, ninguém aprecia ser contrariado e, menos ainda, maltratado. Porém, é preciso respirar fundo pelo menos dez vezes antes de ir ao extremo, porque depois não tem volta. Por exemplo, o advogado em uma audiência deve ter preparo emocional para saber contornar uma indelicadeza do colega da parte contrária. Não deve responder na mesma moeda, porque daí será levado a um caminho imprevisível e sem volta. Fingir que não entendeu, não pessoalizar, não é covardia, mas sim inteligência emocional.

Um juiz que em audiência perde o controle e discute com o advogado ou com a parte, perde sua autoridade, mostra-se despreparado para a função. Um professor de Direito que reage aos gritos contra o aluno que conversa em sala de aula, arrisca-se a perder sua autoridade, além de outros problemas. Melhor será pedir ao aluno que o espere ao fim da aula para uma conversa particular, quando o problema será enfrentado com maturidade e educação.

Bem sei que há situações extremas, onde, por vezes, o autocontrole torna-se quase impossível. Mas é aí que o profissional preparado se distingue dos demais, é na crise que se revelam os talentos. Saber lidar com tais situações é um dos requisitos para o sucesso profissional e também ajuda a evitar doenças estomacais e ataques cardíacos. Por outro lado, o comportamento certo não deve ser exclusividade dos mais talentosos, mas sim cultivado através de profissionais especializados, em aulas nas academias de Polícia, escolas da magistratura, MP, Defensoria Pública, procuradorias e espaços da Ordem dos Advogados do Brasil. Assim, quem sabe, um dia chegaremos à competência do comissário de bordo mencionado ao início do texto.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Vice-presidente para a América Latina da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É presidente do Ibrajus.

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