Decisões contraditórias

Tribunais americanos têm dificuldades para definir crime de ameaça

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20 de setembro de 2014, 8h18

Caracterizar o crime de ameaça pode ser uma tarefa complexa em qualquer país. Nos EUA, certamente é um pouco mais. Provavelmente porque, na common law, muito do que se entende como lei é fruto de decisões judiciais. Mas, como fica a lei, quando os juízes tomam decisões diferentes e até mesmo opostas?

Um e-mail enviado por um por um adepto da supremacia do homem branco a uma professora universitária, com algumas linhas de impropérios racistas e, é claro, algumas “ameaças” — entre aspas porque não há consenso entre os juízes se a “ameaça” pode, de fato, ser caracterizada como ameaça, do ponto de vista criminal — rendeu centenas de páginas em um processo. Só na decisão do tribunal de recursos foram 32.

Para a Justiça americana, há muitas dúvidas. Em primeiro lugar: o que é uma “ameaça verdadeira”? O que distingue uma ameaça, criminalmente tipificada, de uma pilhéria, de uma discussão política hiperbólica ou de uma conversa fiada? Por exemplo: “Você e sua família vão morrer!” — isso é uma ameaça ou a simples expressão de que a morte e os impostos são inevitáveis a todos os seres vivos?

Que distinção pode ser feita entre ameaça e liberdade de expressão — um direito constitucional do cidadão de, teoricamente, falar o que quer? Ou seja, onde acaba a liberdade de expressão e começa a ameaça?

O que o promotor tem de provar? Que o autor da ameaça teve a intenção de infligir algum medo à vítima ou que a vítima realmente sentiu medo? Quando o caso tramitou pelo tribunal de primeiro grau, o pêndulo foi para o lado da vítima. Quando tramitou pelo tribunal de recursos, foi para o lado do autor.

Isto é, o tribunal de recursos tirou o autor da cadeia porque, segundo a decisão, o promotor não provou que ele teve a intenção de infligir medo à vítima. O advogado do réu alegou que o autor sofre de síndrome de Asperger, “uma doença que o impede de entender como os outros irão perceber as coisas que ele diz ou faz”.

A decisão cita o réu Aaron Heineman, que escreveu uma mensagem com pretensões poéticas, que diz, entre outras coisas: “Irá chegar o tempo de uma nova revolução, em que nos congregaremos para prendê-la e assassiná-la com um facão de caça, que será enfiado embaixo, em seu queixo, e chegará a seu cérebro, com seu sangue inundando sua garganta imundamente traiçoeira”.

Os autos não trazem o nome da professora universitária. Mas é possível inferir que é uma cidadã do México, porque o texto, conforme descrito na decisão, se refere a ela como “puta” (assim mesmo, em espanhol), ao México e ao ‘Meximerda’”. Houvesse ocorrido um crime, o texto ajudaria a caracterizar um crime de ódio.

A Suprema Corte dos EUA poderá entrar nesse assunto em dezembro, no caso Elonis versus United States, em que um marido separado da mulher enviou a ela “mensagens ameaçadoras” pelo Facebook. No entanto, o tribunal de recursos entendeu que a Suprema Corte pode não analisar o caso até junho do ano que vem ou, simplesmente, se excusar de entrar no assunto, como muitas vezes acontece. Portanto, tomou sua própria decisão – às vezes rejeitando “opiniões” de tribunais superiores, às vezes aceitando.

Sobre a questão do que é uma “ameaça verdadeira”, o tribunal de recursos citou a seguinte decisão anterior: “Ameaças verdadeiras englobam as declarações nas quais o autor se propõe a comunicar uma expressão séria da intenção de cometer um ato de violência ilegal contra um indivíduo ou grupo de indivíduos. O autor não precisa, necessariamente, ter a intenção de consumar tal ameaça. Em vez disso, a proibição sobre ameaças verdadeiras protege os indivíduos contra o medo da violência e contra o distúrbio que o medo produz, além de proteger as pessoas contra a possibilidade de a violência prometida irá ocorrer”.

“Intimidação, no sentido constitucionalmente proscrito da palavra, é um tipo de ameaça verdadeira, em que o autor dirige uma ameaça a uma pessoa ou grupo de pessoas, com a intenção de colocar a vítima em medo de lesão física ou morte”.

Sobre a distinção entre a liberdade de expressão e a ameaça criminosa, o painel de três juízes do tribunal de recursos citou: “Embora a Constituição permita, de uma forma geral, que os indivíduos falem o que querem, ela também permite ao estado proteger os indivíduos contra os efeitos de algumas palavras, pelo medo da violência, contra o distúrbio que o medo produz e contra a possibilidade de que a violência prometida irá ocorrer”.

“Porém, o atributo inconfundível da proteção à liberdade de expressão é a de que a Constituição permite a livre troca de ideias, mesmo as ideias em que a ampla maioria da população pode caracterizar como repugnante ou desconfortável”.

Sobre se a análise recai sobre a obra do autor ou sobre a reação da vítima, os juízes citaram fontes contraditórias. Por exemplo: “As ameaças têm raízes em seus efeitos sobre a vítima. Ela funciona bem como um teste que se foca não na intenção do autor, mas no efeito que a ameaça exerce sobre um recipiente razoável da expressão”. Essa foi uma decisão citada, que não sustenta a decisão do tribunal.

Sobre onde a corda arrebenta, o tribunal escreveu: “A questão é se quem ouve ou lê a ameaça considera, razoavelmente, que uma ameaça real foi feita. A questão não é se o autor viu suas declarações como uma ameaça real”.

Mas o tribunal discorda desse entendimento: “O estado precisa provar que o autor teve a intenção de fazer o recipiente se sentir ameaçado — não meramente de que uma pessoa possa interpretar razoavelmente a mensagem como uma ameaça”.

“O ônus da prova é da promotoria, que deve comprovar que o réu entendeu e quis usar suas palavras como uma ameaça, e não uma brincadeira, uma advertência ou um argumento político hiperbólico. Mas a ameaça viola a lei, mesmo que o réu tivesse a intenção real ou mesmo a capacidade de cumprir a ameaça. A questão apropriada ao júri é se o réu quis que suas palavras significassem uma ameaça e se uma pessoa razoável as entenderia assim”.

Mas o tribunal de recursos chegou a uma conclusão amplamente aceitável: “As definições do que é ou não é uma ameaça verdadeira são, de certa forma, ambíguas".

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