Observatório Constitucional

Importância do constitucionalismo farroupilha deve ser relembrada

Autor

  • Carlos Bastide Horbach

    é advogado em Brasília professor doutor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP e professor do programa de mestrado e doutorado em Direito do UniCEUB.

20 de setembro de 2014, 8h00

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“Como a aurora precursora / Do farol da divindade / Foi o Vinte de Setembro/ O precursor da liberdade”. Com essas palavras se inicia o hino rio-grandense, evocando os ideais de liberdade e as virtudes cívicas que empolgaram os revolucionários gaúchos de 1835. Naquele ano, no dia 20 de setembro, era deposto o Presidente da Província do Rio Grande do Sul, Antônio Rodrigues Fernandes Braga, por um grupo de revoltosos que tinha como objetivo afastar da condução dos assuntos provinciais uma liderança ligada ao Partido Conservador e associada aos reveses da economia gaúcha.[1]

O 20 de setembro foi “precursor da liberdade”, portanto, em relação a um governo central que desconsiderava as necessidades específicas de uma província do Império do Brasil, oprimindo-a, mas não representou – explícita e imediatamente, pelo menos – uma ação voltada ao separatismo, à criação de um novo Estado.

Tanto é assim que Bento Gonçalves, líder da revolta de 20 de setembro, empossou novo Presidente da Província, afirmando, no célebre Manifesto de 25 de Setembro, respeito à Constituição de 1824, “ao trono constitucional e à conservação da integridade do império”. É verdade, porém, que – a exemplo de Moacyr Flores – há quem sustente que “negar a existência de um movimento republicano, como fazia Bento Gonçalves, era apenas um recurso para ganhar tempo, enquanto aguardava a reação da Regência”.[2]

De qualquer modo, essa orientação velada pela república e pela secessão somente veio a se materializar após a vitória das tropas revoltosas, em 10 de setembro de 1836, na Batalha do Seival. Nesse combate, os 430 revolucionários comandados pelo Coronel Antônio de Souza Netto, sem nenhuma baixa, derrotaram os 560 soldados legalistas sob a liderança de Silva Tavares, que acabou o dia com 180 mortos, 60 feridos e 116 soldados aprisionados pelo inimigo.[3]

Empolgado pela vitória, Souza Netto proclamou a República Rio-Grandense, em pronunciamento no dia 11 de setembro, fazendo lavrar, no dia 12, uma ata na qual registra que “a Província do Rio Grande de ora em diante se constitui livre e independente com o título de República Rio-Grandense”. Em seguida, a ata aponta para a reunião próxima de uma “Assembleia Nacional Constituinte e Legislativa”.

Na sequência, as Câmaras de Jaguarão e Piratini aprovaram a independência e a instituição do governo republicano, respectivamente em 20 de setembro e 6 de novembro de 1836; procedendo-se, na reunião da Câmara piratinense, à eleição de Bento Gonçalves para a Presidência da República.[4]

A partir desses acontecimentos, não mais se podia negar a ruptura institucional com o Império, como bem destacam Paulo Bonavides e Paes de Andrade:

“A atitude política de Souza Netto clareou o quadro nebuloso e equívoco em que até então se mantinham as relações dos liberais insurgentes, com a autoridade central do Rio de Janeiro, ocorrendo, pois, uma definição de rumos. O período de suposta reconciliação, entretido de ambiguidades políticas, se achava ultrapassado. Com o grito das margens do Jaguarão nascia no extremo sul do Império uma nova república, aquela que entraria depois na história, um tanto impropriamente, sob a denominação de República de Piratini”.[5]

E essa ruptura exigia da nascente república uma adequada institucionalização.  Demandava que se agregasse às vitórias militares uma ordem constitucional idônea a plasmar suas conquistas, consagrando as aspirações liberais.

Mas não basta pra ser livre/ Ser forte, aguerrido e bravo/ Povo que não tem virtude/ Acaba por ser escravo”. A segunda estrofe do Hino Rio-Grandense pode muito bem simbolizar a plena compreensão que tinham os revolucionários da necessidade de regularização constitucional do novo Estado.

Souza Netto, saindo do notável triunfo militar que ensejou a proclamação da República, desde logo fez registrar a necessidade de uma Assembleia Constituinte, demonstrando que não bastavam os feitos dos “fortes, aguerridos e bravos”, se não houvesse a cristalização das virtudes que os moviam, por meio de uma Constituição.

Essa foi também a clara orientação de Bento Gonçalves, sendo a organização institucional da República e os direitos de seus cidadãos temas de sua proclamação de agosto de 1838, o “Manifesto do Presidente da República Rio-Grandense em nome de seus Constituintes”. Nele, após uma longa exposição das causas que levaram ao movimento revolucionário e depois de denunciar a violação de garantias individuais por parte do governo imperial, Bento Gonçalves registrou os dois aspectos centrais para a futura institucionalização do Estado rio-grandense: a república e a abertura federativa. São essas suas expressas palavras, ao final do manifesto:

“Um só recurso nos restava, um único meio se oferecia à nossa salvação, e este recurso e este meio único era a nossa Independência Política e o sistema Republicano; só assim podíamos adquirir a força, a compatibilidade e energia necessárias para debelar nossos algozes em tão lamentável catástrofe. Cedemos à voz santa da natureza, cumprimos as eternas e imutáveis leis do Criador, lançando mão desse recurso, desse meio único de salvação.

Perdidas, pois, as esperanças de concluírem com o Governo de Sua Majestade Imperial uma conciliação fundada nos princípios de justiça universal, os Rio-Grandenses reunidos às suas municipalidades solenemente Proclamaram e Juraram a sua Independência Política debaixo dos auspícios dos sistema Republicano, dispostos todavia a federarem-se quando nisso se acorde às províncias irmãs que venham a adotar o mesmo sistema.

Bem penetrados da justiça de sua santa causa, confiando primeiro que tudo no favor do juiz supremo das nações, eles têm jurado por esse mesmo supremo juiz, por sua honra, por tudo que lhe é mais claro, não aceitar do Governo do Brasil uma paz ignominiosa que possa desmentir a sua soberania e independência”.

O caminho até essa institucionalização, porém, seria árduo, não atingindo a nascente república seu objetivo final. Apesar da convocação  de um Conselho de Procuradores, em dezembro de 1839, que decidiu pela reunião da Assembleia Constituinte em 30 de abril de 1840, as vicissitudes da guerra fizeram com que a instalação de tal colegiado somente fosse possível em 1o de dezembro de 1842, no Alegrete, então a capital republicana.

A Constituinte, que também concentrava competências legislativas ordinárias, optou por nomear uma comissão de cinco membros para elaboração de um projeto de constituição, que – apresentado em plenário no dia 8 de fevereiro de 1843 – não chegou a ser discutido ou votado, uma vez que a assembleia se autodissolveu em 10 de fevereiro de 1843, dois dias depois, portanto.[6]

O projeto de constituição, porém, é um documento importante para a compreensão do pensamento político farroupilha e para a identificação do tipo de Estado que buscavam implantar os revolucionários.

As virtudes liberais transpostas para o texto do projeto refletem, como bem destaca Almiro do Couto e Silva, uma suma do pensamento de autores clássicos, como Locke, Rousseau e Montesquieu; ainda que afirme ser “notório que o projeto de Constituição da República Rio-grandense modela-se, em grande parte, sobre a Constituição Imperial brasileira, substituindo obviamente – no rol do que hoje se denomina em Direito Constitucional de princípios estruturantes do Estado – o princípio monárquico pelo republicano, mas mantendo o da democracia representativa e do Estado de Direito (Art. 4o e Art. 201)”.[7] Destarte, necessário agregar ao rol das influências teóricas do projeto o mentor da Carta de 1824, Benjamin Constant.

O Título I do projeto fixa os princípios gerais de organização do novo Estado, afirmando ser seu governo republicano, constitucional e representativo (art. 4o). Quanto à forma de Estado, não estabelece o texto proposto em 1843 nenhum referencial federativo – apesar do Manifesto de 1838 – e se limita a afirmar, de início, que a legislação cuidará da divisão territorial da república (art. 3o), assentando ainda que as Câmaras dos municípios teriam funções “meramente administrativas” (art. 186) e que o governo das unidades locais ficaria a cargo de um Diretor, nomeado pelo Poder Executivo (art. 182). Ou seja, não se reconhece a autonomia política ao município ou a nenhuma outra instância local de poder, o que caracteriza a República Rio-Grandense como um Estado unitário, como unitário era o Império do Brasil.

Outro aspecto relevante no que toca ao propalado federalismo dos revolucionários de 1835 é o disposto no art. 1o do projeto, segundo o qual os cidadãos rio-grandenses “formam uma nação livre e independente, que não admite, com qualquer outro, laço algum de união, ou federação, que se oponha à independência de seu regime interno”.

Como destacam Bonavides e Andrade, esse dispositivo “veda a união ou incorporação da República a um sistema genuinamente federativo”, sendo que ela “poderia juridicamente confederar-se, mediante um tratado; jamais federar-se, mediante uma Constituição, que a isso se opunha o seu próprio texto de Constituição, sem embargo de ter sido tão-somente ele um projeto”.[8]

A soberania, segundo o art. 9o, residia “essencialmente no povo”, numa formulação que – como ressalta Almiro do Couto e Silva[9] – de início consagra Rousseau,  para de imediato repudiá-lo. É que no próprio art. 9o se afirmava que “a nação não pode exercer as atribuições da soberania imediatamente por si mesma, mas sim por meio das eleições, nos casos e pelo modo que a Lei determinar”, aderindo à célebre justificativa para o sistema representativo.

O art. 10 consagrava a tripartição de poderes de Montesquieu. O Legislativo seria composto pela Assembleia Geral, formada pelas câmaras dos deputados e dos senadores, sendo que as funções desta não se assemelhavam à representação de unidades subnacionais como no federalismo norte-americano. O voto, na tradição liberal da primeira metade do século XIX, era censitário (art. 92, n. 7), sendo os deputados eleitos diretamente – na proporção de um deputado para cada seis mil almas – e os senadores indiretamente, existindo um senador para cada dois deputados (arts. 18, 27 e 89). Na linha da tradição de 1824, o texto do projeto afirma ser a Assembleia Geral a exclusiva responsável pela interpretação e explicação da Constituição (art. 234), não havendo, pois, previsão expressa de um controle judicial da constitucionalidade das leis, que há muito vinha sendo praticado nos Estados Unidos.

O Capítulo I do Título V cuidava do “Presidente do Estado”, o chefe do Poder Executivo que, nos termos do art. 98, teria o título de Presidente Constitucional da República Rio-Grandense e seria eleito por votação nominal da Assembleia Geral (art. 99). O mandato seria de quatro anos, não se admitindo a reeleição consecutiva (art. 100). Não havia a figura do vice-presidente, sendo o titular do Executivo substituído, em seus impedimentos, pelo Presidente do Senado (art. 103).

O Poder Judiciário, por sua vez, era formado pelo Supremo Tribunal de Justiça, pelos tribunais de apelação, pelos juízes de direito, pelos jurados e pelos juízes de paz. O Supremo Tribunal de Justiça se assemelhava em tudo a seu homônimo do Império do Brasil, tendo atribuições de corte de cassação e de instância originária para apreciação de feitos envolvendo algumas autoridades. O tribunal tinha, ainda, uma função consultiva em matéria de decretos conciliares, breves pontifícios e letras apostólicas (art. 152).

Os membros do Judiciário – com exceção dos juízes de paz, que eram eleitos (art. 164) e tinham funções de conciliadores (art, 165) – eram nomeados pelo Presidente, com a aprovação do Senado (arts. 151, 157 e 161), na linha do constitucionalismo norte-americano.

A administração da justiça seguiria normas muito próximas das da Constituição de 1824, impondo, por exemplo, que as partes passassem necessariamente por uma tentativa de conciliação antes do ajuizamento das ações (art. 175) e que poderiam submeter seus conflitos a árbitros por elas escolhidos (art. 176).

O Título VIII do projeto enumerava os direitos civis e políticos dos cidadãos rio-grandenses, numa repetição das garantias inscritas no art. 179 da Constituição Política do Império do Brasil.

Por fim, é interessante registrar que o art. 240 do projeto de Constituição rio-grandense era uma reprodução do célebre art. 178 da Constituição de 1824, que fazia desse texto um exemplo de constituição semirrígida. Tal qual o seu modelo, o dispositivo farroupilha afirmava: “É só constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos poderes políticos e aos direitos políticos e individuais dos cidadãos. Tudo o que não é constitucional pode ser alterado sem as formalidades referidas pelas legislaturas ordinárias”.

Assim, ainda que houvesse um procedimento especial de alteração do texto constitucional, grande parte de seus dispositivos poderia ser modificada pela atuação das legislaturas ordinárias, reservando-se a rigidez somente para os aspectos da separação dos poderes e das garantias individuais.

Feita essa breve síntese do projeto de Constituição da República Rio-Grandense, é necessário examinar sua importância para o constitucionalismo brasileiro. Como antes visto, pouco inovou o projeto em relação ao texto de 1824, o que faz com que autores reputem essa experiência constitucional desprezível. Essa é a compreensão, por exemplo, de Almiro do Couto e Silva:

“Os Revolucionários de 1835 eram acentuadamente liberais e só muito discretamente democratas. Interessados na manutenção da sua situação econômica e social foram à insurreição porque estavam desagradados com o tratamento que o Poder Central dispensava à Província, o que os afetava nos seus negócios e no seu patrimônio. Sob esta luz os homens de 35 fixaram mais na tela da história o gesto romântico do heroísmo e da rebeldia, a altivez da atitude, o desassombro nos combates, a coragem e a pertinácia com que, por toda uma década, defenderam encarniçadamente suas convicções, do que propriamente a grandeza e o poder transformador das idéias que o motivaram”.[10]

Bonavides e Paes de Andrade, por sua vez, registram que “o projeto foi obra precursora do constitucionalismo republicano e federativo que vingou depois no Brasil, com a queda da monarquia”. E lastimam a “perda histórica que significou a omissão dos autores do projeto”, que deixaram de “redigir uma justificação desse trabalho, expondo ou explicitando as ideias e as fontes, ou seja, confessando a filosofia política onde jazem as nascentes do constitucionalismo perfilhado”.[11]

Essa também é a linha adotada por Florêncio de Abreu, para quem o projeto se insere numa tradição republicana brasileira que se inicia com a Inconfidência Mineira e passa pela Confederação do Equador, até desaguar na Proclamação da República no final do século XIX:

“É esse o mérito da Constituinte de 1842. Na solução do nosso problema político, lhe coube a mais valiosa das contribuições. Ela representa, em verdade, pela grande importância  do movimento que lhe deu vida, um notável passo que lhe assegura, inelutavelmente, um papel preponderante na formação histórica do regime constitucional definitivamente implantado em 15 de novembro de 1889”.[12]

Nesse mesmo sentido é a opinião de Victor Russomano, para quem o Rio Grande do Sul deu “à América o exemplo de ser o cenário de uma assembleia republicana”, produzindo um projeto que “observou, melhor que as tentativas frustradas da Confederação do Equador e melhor que o projeto de Constituição do Partido de São Paulo (1873), o princípio da divisão e independência dos poderes, que os constituintes farroupilhas levaram às últimas consequências” e, com isso, contribuiu para “a evolução da ideia republicana brasileira”.[13]

De qualquer modo, longe de se pretender pacificar a discussão acerca da importância do projeto para o constitucionalismo brasileiro, deve-se enfatizar que a simples opção pela constitucionalização do regime num ambiente político dominado pela incerteza da guerra e pelo militarismo crescente é, por si só, um grande feito histórico, digno de figurar — para lembrar por uma última vez o hino rio-grandense — como mais uma façanha a servir de modelo a toda a terra.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio). 


[1] São conhecidas as causas econômicas da revolta, associada que foi ao aumento das tarifas incidentes sobre os produtos da província, que os tornavam mais caros em relação aos similares importados dos países da região platina. Cf. Paulo Bonavides e Paes de Andrade. História constitucional do Brasil, Brasília: Paz e Terra, 1988, p. 177.
[2] Mocayr Flores. República Rio-Grandense. Realidade e utopia, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p. 350.
[3] Moacyr Flores. República Rio-Grandense. Realidade e utopia, p. 360.
[4] Sobre essa eleição, ver: Tupinambá Miguel Castro do Nascimento. “A 1a eleição presidencial na República Rio-Grandense”. Revista do TRE/RS, v. 12, n. 24, jan./jun. 2007, p. 24-29.
[5] Cf. História constitucional do Brasil, p. 180.
[6] Bonavides e Andrade assim sintetizam as possíveis causas da dissolução: “Do nosso ponto de vista, mais genérico, duas prováveis causas determinaram essa autodissolução: a fratura interna do colégio pelo passionalismo das facções liberais e republicanas e a debilidade externa da resistência militar às forças imperiais, fazendo já periclitante a sorte da causa farroupilha” (cf. História constitucional do Brasil, p. 189).
[7] Almiro do Couto e Silva “Matrizes  ideológicas do projeto de constituição farroupilha”. Revista da Procuradoria-Geral do Estado, Cadernos de Direito Público, v. 27, n. 57, Porto Alegre, 2003, p. 288.
[8] Cf. História constitucional do Brasil, p. 193-194.
[9] Almiro do Couto e Silva “Matrizes  ideológicas do projeto de constituição farroupilha”, p. 288.
[10] Almiro do Couto e Silva “Matrizes  ideológicas do projeto de constituição farroupilha”, p. 291.
[11] Cf. História constitucional do Brasil, p. 189.
[12] Florêncio de Abreu. A Constituinte e o Projeto de Constituição da República Rio-Grandense, Porto Alegre: Typographia do Centro, 1930, p. 22 (disponível em http://www2.al.rs.gov.br/memorial/LinkClick.aspx?fileticket=lE7KE3fE864%3D&tabid=3456&language=pt-BR).
[13] Victor Russomano. História Constitucional do Rio Grande do Sul (Esboço), Pelotas: Barcellos, Bertaso e Cia., 1932, p. 179.

 

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