Diário de Classe

Analfabetismo, vergonha
e o Direito após Auschwitz

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20 de setembro de 2014, 8h01

Spacca
Me recordo como se fosse ontem, o maldito dia em que, após o alistamento, compareci à Junta Militar para cumprir minhas obrigações patrióticas e realizar a seleção geral. Tinha 18 anos incompletos, cursava Direito e me dava dor de barriga só de pensar na hipótese de vir a servir ao Exército. Muito embora meu tio fosse tenente-coronel, e com ele eu já tivesse conversado algumas vezes a respeito do meu desejo de ser dispensado, por precaução, decidi levar todos os atestados médicos que colecionei ao longo de minha adolescência, especialmente um relativo a uma tendinite crônica que sofria em ambos os tornozelos, resultante de uma década dedicada à prática de esporte de competição. Isto foi o suficiente para obter a tal “CDI” (Certificado de Dispensa de Incorporação).

Na época, ninguém sabia o que esta sigla significava. De todo modo, não importava. Era apenas um detalhe, que não mudava nada. Na verdade, independente do significado que tinha, a CDI era o que todos buscavam. Todos? Calma. Todos como eu. Gente como eu, pois havia aqueles que queriam ser selecionados, havia aqueles para quem a seleção se apresentava como uma alternativa, uma possibilidade, uma chance, enfim, um futuro. Ocorre que, para mim, todos estes eram invisíveis. Eles não existiam, simplesmente não faziam parte do meu mundo.

O procedimento era bastante simples. O alistado devia apresentar-se à Junta Militar, no dia, local e horário designados, para a seleção, que era composta por uma bateria de exames físicos e de testes psicológicos, cujos resultados determinavam a (in)aptidão do cidadão. Aqueles que eram considerados inaptos, assim como aqueles aptos que fossem dispensados por outra razão, deviam retornar apenas para prestar o chamado Juramento à Bandeira Nacional.

Na ocasião, após a coleta de dados pessoais e o preenchimento de alguns questionários, foram formados grupos de aproximadamente 50 alistados, que deviam seguir um percurso de testes realizados por diferentes comissões. De início, fomos encaminhados à avaliação odontológica. Sem comentários. Ato contínuo, passamos ao exame clínico. Era um exame de rotina, mas em maior escala, coletivo e, sobretudo, militar. Todos deviam ficar nus, assoprar o punho, respirar fundo, estender os braços, abrir os dedos, mostrar a garganta, etc. Até aí tudo bem. Então, ordenaram que nos dirigíssemos à próxima sala, onde deveríamos formar duas filas. Na parede, havia aquelas placas com letras em diversos tamanhos para a realização de exame oftalmológico, ou, como se diz, para o chamado “teste de vista” (sic). Eu era o quarto da minha fila. Então, o médico disse ao primeiro: “— Me diga as letras da primeira linha”. O alistado respondeu corretamente, superando todas as etapas, até chegar às últimas linhas, onde as letras eram menores. Ao segundo alistado foi aplicado o mesmo procedimento, que não durou mais de alguns segundos.

Todavia, quando o terceiro da fila se posicionou sobre a demarcação no chão da sala e o médico lhe pediu para soletrar as letras que constavam na parede, um silêncio se instalou. O médico renovou a ordem. Nada. Então, o médico perguntou em alto e bom tom: “— O senhor não sabe ler?” Antes da constrangida resposta, que se limitou a um aceno negativo com a cabeça, a única coisa que se ouviu foi o riso, ingênuo e infantil, de alguém que não acreditava que a pergunta pudesse ser levada a sério. Para piorar. Quem era o autor deste ultrajante comportamento? Yo. Era o meu riso. O meu riso. E, aqui, não há como escapar de um clichê: embora certamente tudo não tenha durado mais do que um segundo, a sensação foi de que o tempo parou.

Ora, não tenho dúvidas de que, antes desta ocasião, já havia sentido vergonha em muitas outras vezes ao longo de minha puberdade. Como todos os adolescentes, fiz bullying e também sofri bullying, em uma época — não tão distante assim — na qual isto não dava todo o Ibope dos dias de hoje. De qualquer modo, o constrangimento múltiplo, o sentimento de culpa, a exposição pública e a vergonha resultantes do analfabetismo me tocaram de tal maneira que não lembro do resto da seleção, da volta para casa e do protocolar juramento à bandeira.

Analfabetismo, vergonha e culpa. Estes mesmos elementos também atravessam o romance O leitor, de Bernhard Schlink — conhecido jurista alemão —, e aliados à experiência resultante da hegemonia dos regimes totalitaristas provocaram inúmeras reflexões no campo da filosofia, da religião, da política e da ética: a culpa individual ou coletiva, tratada por Karl Jaspers; a questão da responsabilidade e do julgamento, abordada por Hannah Arendt; o que resta de Auschwitz, de Giorgio Agamben; o inenarrável, de que fala Theodor Adorno; a literatura do testemunho, de Primo Levi; a memória e o esquecimento, trabalhados por Paul Ricoeur; a primeira e a segunda realidades, de Eric Voegelin.

Todavia, para além destas leituras — sobre as quais já escrevi num longo ensaio intitulado A teoria do Direito após Auschwitz —, a narrativa de Schlink supre uma lacuna importante no campo do Direito contemporâneo. Isto porque, muito embora o segundo pós-guerra seja reconhecido como o evento desencadeador do constitucionalismo contemporâneo — e, portanto, da própria noção de Estado Constitucional — e também de inúmeras teorias do Direito, raros foram os juristas que ousaram escrever, especialmente no Brasil, a respeito do Direito no nazismo.

O enredo do livro — também adaptado para o cinema, em 2008, em cujo elenco estão Kate Winslet e Ralph Fiennes — consegue escapar dos lugares comuns e, ainda, denunciar a saturação decorrente de certa cotidianidade do Holocausto. Uma prova disto, aliás, é que a Segunda Guerra Mundial, as atrocidades cometidas nos campos de concentração, a chamada “solução final”, os impasses que se colocaram no tribunal de Nuremberg, a legitimidade das respostas jurídicas formuladas e a própria idéia de “revisão do passado” constituem apenas o pano de fundo do romance, cujo argumento pode ser interpretado “queda do Direito”, no sentido de “declínio” ou, ainda, de “fracasso”.

“O que direito pode fazer para que situações de violência extrema — e institucionalizada — não se repitam? Qual o papel a ser assumido pela teoria do Direito após Auschwitz?” Estas são as questões que atravessam a narrativa de Schlink e conduzem o leitor a uma reflexão acerca de temas da maior relevância para os juristas: o surgimento do constitucionalismo do segundo pós-guerra, a autonomização do Direito, a crise do positivismo jurídico, a relação entre direito e moral, o problema da culpa e da responsabilidade, a tensão entre vigência e validade, bem como o próprio conceito de direito nos dias de hoje.

Em suma, o livro de Schlink reforça ainda mais minha convicção de que existem algumas narrativas literárias que são mais importantes para a compreensão do Direito do que a maior parte dos manuais jurídicos. Além disso, no romance, a literatura desempenha um papel central na medida em que é através dela que Hannah alcança sua maioridade intelectual.

“Analfabetismo é menoridade”, afirma o narrador. Com isto, fica claro que a literatura é a via de acesso que possibilita a protagonista adquirir uma consciência crítica e assumir uma postura mais humana em relação ao mundo. E isto é fundamental para os juristas. A literatura possui o poder de nos sensibilizar. Seu caráter universalizante nos permite experimentar as situações figurativizadas na obra. Assim, ao cumprir sua função de catarse, a literatura nos conduz a refletir sobre a humanidade que nos habita, como revela a confissão contida na abertura desta coluna.

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