Eficácia vinculante

Regimento interno do TJ-RJ o torna um super-herói do texto constitucional

Autor

19 de setembro de 2014, 8h43

O direito constitucional brasileiro, quando examinado o seu processo histórico, é marcado por períodos antagônicos: do seu mais completo desprezo a um período de hipervalorização.

Apesar de a independência do Brasil ter ocorrido em 1822 e logo em seguida ter sido instituída juridicamente a figura estatal, por mais de um sesquicentenário a Constituição não conseguiu romper as barreiras retóricas ou programáticas. A insinceridade constitucional não pode ser ignorada, pululam exemplos caricatos a comprovar essa assertiva.[1] No cotidiano, as relações jurídicas eram regidas pelos códigos e demais atos legais.

Hodiernamente, e sem que isso constitua qualquer exagero na descrição da realidade, experimenta-se um verdadeiro “desbunde” das normas constitucionais, sendo certo que a todo momento se mostra possível encontrar a mais nova safra, versão ou modelo de princípio constitucional implícito. E tudo isso se materializa ao bel-prazer do consumidor-jurista. Há, assim, o pleno florescimento de um fenômeno perigoso: o pamprincipiologismo. A aposta na concretude em princípios jurídicos artificialmente concebidos – seria o Brasil marcado pelas jabuticabas e pelos princípios jurídicos de laboratório, de gabinete ou mesmo de algibeira? — é demasiadamente perigosa, pois faz com que todas as fichas sejam jogadas no Poder Judiciário[2]. A partir do mais “novo princípio”, se mostra mais fácil recorrer ao Estado-juiz[3] do que exercer ativamente uma postura cívica[4] e, assim, questionar uma escolha política feita pelos governantes e parlamentares bem ou mal eleitos. A crítica que se faz à dependência do poder político, e não se pode esquecer que a história brasileira é marcada pelo clientelismo, muitas vezes não consegue se insurgir contra uma cidadania delegada ao Poder Judiciário. O tutor pode até ser distinto; porém, subsiste uma incapacidade de se fruir a vida autônoma e, dessa forma, a concretização do desejo por uma emancipação política fica cada vez mais distante.

Para a presente análise, é, ainda, relevante assinalar que durante todo o período imperial não havia qualquer previsão de controle jurisdicional de constitucionalidade. Esse cenário foi alterado modestamente com o advento da República, que consagrou o modelo difuso de controle de constitucionalidade. O controle concentrado surgiu já na 2ª metade do século XX por meio da Emenda Constitucional 16, que previu a representação de inconstitucionalidade com legitimidade ativa exclusiva do Procurador Geral da República. Somente com a Constituição de 1988 e um alargamento do rol de legitimados é que o controle concentrado alçou voos maiores.

No entanto, e isso se relaciona com o deslumbramento com a matéria constitucional ocorrido pós-1988, não se pode negar que, no que se refere ao exercício do controle de constitucionalidade, equívocos são realizados pelos órgãos jurisdicionais. Antes mesmo de examinar a previsão contida no Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, mostra-se importante apresentar duas considerações. O juiz, que seja o neófito localizado no rincão do país-continente, quer seja o Tribunal Pleno da mais alta corte de justiça, influenciará a vida de diversas pessoas, até mesmo de maneira drástica. Contudo, e se aqui transparecer postura acaciana as escusas são apresentadas previamente, o exercício da atividade jurisdicional possui limites[5]. O outro aspecto a ser examinado consiste na necessidade de se insurgir contra a equiparação dos modelos de controle de constitucionalidade. A crítica que foi feita quanto ao decidido na Reclamação 4.335-5/AC[6] é atual e não pode ser ignorada.

Feitas essas digressões iniciais, é apresentado o artigo do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro a ser submetido ao crivo científico:

“Artigo 103. A decisão que declarar a inconstitucionalidade ou rejeitar a arguição, se for proferida por 17 (dezessete) ou mais votos, ou reiterada em mais 02 (duas) sessões, será de aplicação obrigatória para todos os Órgãos do Tribunal.

§ 1º – Nas hipóteses deste artigo, enviar-se-ão cópia dos acórdãos aos demais Órgãos Julgadores, ao Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil e à Revista de Jurisprudência do Tribunal.

§ 2º – Qualquer Órgão Julgador, por motivo relevante reconhecido pela maioria de seus membros, poderá provocar novo pronunciamento do Órgão Especial, salvo se a Assembléia Legislativa já houver suspendido a execução da lei ou ato normativo declarado inconstitucional.

§ 3º – Suscitada nova arguição, com igual objeto e fundamento, fora da hipótese do § 2º , o relator indeferir-lhe-á o processamento e ordenará, se for o caso, a devolução dos autos ao Órgão de origem. Do indeferimento caberá o agravo previsto no art. 226 do Código de Organização e Divisão Judiciárias.

§ 4º – Cessará a obrigatoriedade a que se refere o caput deste artigo se sobrevier decisão, em sentido contrário, do Supremo Tribunal Federal, tratando-se da Constituição da República, ou do Órgão Especial, quando se tratar da Constituição do Estado.”

A crítica ao disposto no Regimento Interno do TJ-RJ, que permite denominá-lo como o mais novo super-herói do Texto Constitucional, se pauta em cinco pontos, que são apresentados a seguir.

Muito embora o próprio Supremo Tribunal Federal, ao invocar uma possível mutação constitucional sobre o artigo 52, inciso X, Constituição da República, tenha feito uma equiparação entre os controles de constitucionalidade difuso e concentrado, é imprescindível afirmar que essa postura decisória foi equivocada. Se os dois modelos de controle de constitucionalidade não fossem distintos, por exemplo, não haveria a necessidade de atuação do Senado Federal na atuação difusa do controle de constitucionalidade, que se encontra, inclusive, constitucionalizada. Os efeitos também são distintos, bem como a competência. Em suma, o controle de constitucionalidade difuso não é a mesma coisa do controle concentrado. Um erro, mesmo que oriundo do STF, não pode(ria) justificar outro feito pelo TJ-RJ.

Além disso, em sede de controle difuso o entendimento sumulado para obter cunho vinculante, segundo expressa disposição da Constituição da República pós EC 45/04, deverá ser necessariamente oriundo do Supremo Tribunal Federal, desde que observado os requisitos estabelecidos pelo seu artigo 103-A. É sabida toda a celeuma que envolve a Súmula Vinculante, inclusive quanto à sua compatibilidade constitucional. Toda essa discussão é esvaziada por meio de capciosa construção, que, no âmbito do TJ-RJ, institui verdadeira súmula vinculante, sem assim denomina-la, e por meio de ato infralegal[7].

O terceiro ponto da crítica tem por base o fato de a arguição de inconstitucionalidade, caso observado o Regimento Interno do TJ-RJ e julgada improcedente, fazer as vezes de ação direta de constitucionalidade, quando sequer há previsão da ADC no âmbito estadual.

O quarto quesito da censura se pauta em uma análise maior sobre a forma como se realiza o exercício da atividade jurisdicional. Atualmente, a preocupação quantitativa é uma realidade que não se pode ignorar. No entanto, a busca por metas não pode representar verdadeira negação da jurisdição. Ao se permitir um efeito vinculante, que é indevido, se torna possível julgar mais rápido as demandas e, assim, aumentar as estatísticas; porém, a quantidade de julgados não representa uma decisão de qualidade.

O último capítulo do exame negativo sobre o artigo 103 do Regimento Interno do TJ-RJ se pauta na ausência de legitimidade na decisão que concede os efeitos vinculantes. No modelo estabelecido pelo Texto Constitucional, aferida a incompatibilidade de determinada norma em sede de controle difuso de constitucionalidade, é chamado um elemento exógeno, que representa todos os estados da federação e o Distrito Federal, ou seja, o Senado Federal, para deliberar sobre a suspensão, ou não, do ato tido como inconstitucional para que, dessa maneira, seja estendida a perda de eficácia da norma. Visualiza-se, assim, uma complexa engenharia, que envolve mais de um dos poderes constituídos para que uma norma tida como inconstitucional, caso esse reconhecimento se realize em sede difusa. Tudo isso é menosprezado na realidade fluminense, pois, segundo o Regimento Interno do TJ-RJ, basta a manifestação de quórum qualificado do seu Órgão Especial.

O surgimento do Estado Constitucional trouxe o reconhecimento de que a Constituição deve servir como fundamento de uma ordem jurídica vigente. Superou-se, assim, a chamada Era dos Códigos. É louvável toda preocupação em fazer valer o labor do Poder Constituinte. Porém, a partir do que veio a ser exposto, afirma-se que, no âmbito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o zelo se deu fora dos quadrantes possíveis de exercício do controle difuso de constitucionalidade. No mundo ficcional, àqueles que movidos pelo interesse público não se veem limitados pelas leis da natureza — voam, veem além do alcance, possuem uma força descomunal, gozam da imortalidade, entre outros atributos — são denominados de super-heróis. Uma ordem jurídica que já adquiriu sua maioridade não pode mais tolerar fantasias, não se pode recorrer aos modelos ficcionais para tentar resguardar a Constituição da República. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro não pode querer avocar a condição de personagem literato, deve tão-somente exercer o papel que lhe foi atribuído. O seu descomedimento poderá na realidade torna-lo o grande vilão, isto é, um dos responsáveis pela própria fragilidade da democracia. 


[1] Na Constituição outorgada de 1967 é possível se deparar com a previsão de direito social que nunca se viu cumprida: “Art. 158. A Constituição assegura aos trabalhadores os seguintes direitos, além de outros que, nos termos da lei, visem à melhoria, de sua condição social: XIX – colônias de férias e clínicas de repouso, recuperação e convalescença, mantidas pela União, conforme dispuser a lei;”. Um outro exemplo pode ser aferido na previsão de plebiscito, que nunca foi realizado, para a apreciação popular da Carta de 1937: “Art 187 – Esta Constituição entrará em vigor na sua data e será submetida ao plebiscito nacional na forma regulada em decreto do Presidente da República.”. Muitos outros exemplos poderiam ser destacados, sendo a previsão da liberdade em um regime escravocrata a maior prova da falta de sinceridade da Constituição Imperial com a realidade existente, vide o disposto no artigo 179, in verbis: “A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte: ”.

[2] A crítica que pode ser realizada na excessiva judicialização na realidade brasileira, que decorre da incapacidade de o Estado cumprir com as promessas da modernidade, pode se valer do pensamento de T. Todorov, que aponta no descomedimento, na húbris, o novo inimigo interno da democracia. “Aquilo que os antigos gregos denominavam de ‘húbris’, ou descomedimento, era considerado como a pior falha da ação humana: uma vontade ébria de si mesma, um orgulho que persuade quem o sente de que para ele tudo é possível. Seu contrário é considerado como a virtude política por excelência: a moderação, a temperança.” (TODOROV, Tzvetan. Os inimigos íntimos da democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 18)

[3] Alexandre Morais da Rosa apresenta relevante reflexão sobre o papel do Poder Judiciário em uma sociedade renitente aos limites. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-set-06/diario-classe-poder-judiciario-nao-capaz-salvar-ninguem-proprias-frustracoes Acesso em 08 de Setembro de 2014.

[4] A advertência de Eduardo Bittar se mostra apropriada para o presente momento: “ (…) na linha de raciocínio que se  está desenvolvendo, não se pode considerar a cidadania uma atitude passiva, e muito menos representativa, que se delega a representantes políticos investidos de poder para mandato eletivo que se escolhem por voto periódico. Se isso é ser cidadão, então a definição de cidadania encontra-se um tanto quanto restrita e apegada à tradição. Mais do que isso, essa linha do pensamento está ainda eivada por um profundo assistencialismo e por concepções paternalistas de Estado.” (BITTAR, Eduardo C. B. Ética, educação, cidadania e direitos humanos. Barueri: Manole, 2004. p. 11)

[5] Nesse momento, a admoestação apresentada por Lênio Streck é perfeitamente cabível: “Ora, o direito não é aquilo que o intérprete quer que ele seja. Portanto, o direito não é aquilo que o Tribunal, no seu conjunto ou na individualidade de seus componentes, diz que é (lembremos, aqui, a assertiva de Herbert Hart, em seu ‘Concept of law’, acerca das regras do jogo de críquete, para usar, aqui, um autor positivista contra o próprio decisionismo positivista …” (STRECK, Lênio. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 3. ed. São Paulo: RT, 2013. p. 59)

[6] STRECK, Lênio Luiz; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de & LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. A nova perspectiva do Supremo Tribunal Federal sobre o controle difuso: mutação constitucional e limites da legitimidade da jurisdição constitucional. Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=912. Acesso em 12 de Agosto             de 2014.

[7] A advertência de Lênio Streck, que se relaciona com a carência de teoria das fontes, se mostra apropriada para o presente caso: “ E ficamos fazendo dissertações e teses sobre direito constitucional, força normativa da Constituição etc. Os alunos invocam Konrad Hesse, Canotilho, Hassemer, Ferrajoli. Com veemência. Ora, qualquer burocrata tem mais poder que o Congresso Nacional. Qualquer burocrata de ‘terrae brasilis’ sabe – e pode –mais que o Supremo Tribunal Federal. Sua palavra é final. Definitiva. Ou seja, estamos diante de uma grande fancaria. O guarda da esquina tem fé pública para multar (quem controlará o guarda?). Os recursos aos órgãos administrativos são ‘decididos’ em uma ou duas linhas, por carimbo. Uma portaria do INSS vale mais do que todo o capítulo de direito previdenciário da Constituição.” (STRECK, Lênio Luiz. Compreender o direito. Desvelando as obviedades do discurso jurídico. São Paulo: RT, 2013. p. 131)

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!