Dever de isenção

Juízes não titubeiam em agir suprindo insuficiências da advocacia pública

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13 de setembro de 2014, 8h04

Impactados pela sucessão de escândalos com dinheiro público, muitos magistrados assumiram o papel de curadores do interesse do tesouro, que afinal custeia sua justa remuneração. Tarefa que cabe ao Ministério Público e aos procuradores da Fazenda. Em ações indenizatórias, tributárias, desapropriatórias, cobranças de indenizações, juízes não titubeiam em agir suprindo supostas insuficiências da advocacia pública. São os juízes-tesoureiros, que advogam mais para a Fazenda que seus patronos. Atuam como o árbitro de futebol que toma a bola de um time para servir ao adversário, supostamente mais fraco ou com maior torcida.

Essa patologia judicante é já grave por comprometer o dever de isenção do julgador (artigo 125, I, Código de Processo Civil). Mas ela tem consequência pior. Ao tomar partido incondicional do erário, o juiz deixa o cidadão vulnerável aos desmandos do Estado. Certo de que defende o interesse público, o juiz-tesoureiro está fomentando o arbítrio, incentivando as más práticas administrativas, adubando a corrupção, dilapidando o erário. O mau gestor público, contando com um Judiciário “parceiro”, não hesita em contratar mais do que pode pagar; é incentivado a agir arbitrariamente. O ímprobo se vê livre para “vender facilidades”. No final, a sociedade pagará a conta.

Infelizmente o juiz-tesoureiro prolifera. Dois casos são exemplos. Há alguns anos o Judiciário Paulista reformou decisão que condenava o Estado a pagar indenização por quebra de um contrato. O recurso foi aceito com um argumento forte: o valor da indenização era muito elevado e a credora estava em boa condição financeira e o dinheiro faria falta ao erário. O STJ recentemente reformou a decisão. Dias atrás o mesmo tribunal julgou outra apelação, agora contra sentença que condenava estatal a indenizar contratado por reiterado atraso no pagamento de faturas. Em nenhum momento a estatal negou seu atraso. Nem impugnou os documentos (faturas, comprovantes de pagamento) apresentados para mostrar a demora. Não pediu para fazer prova contra tal documentação. Pois o TJ considerou que, como havia “interesse público”, o juiz deveria ter exigido uma pericia para provar que os documentos, que ninguém questionava, eram mesmo verdadeiros! Numa penada fez o processo voltar ao zero. Mais dois ou três anos tardará para provar o incontroverso e condenar novamente ao pagamento. Quase um seguro a favor do mau pagador.

Juiz deve julgar de forma isenta, não advogar para uma das partes, por mais pública que ela seja. Respaldado pelo juiz-tesoureiro, o mal gestor público é tentado a proclamar, como faziam os antigos Coronéis de nossos rincões, cientes da docilidade dos juízes adrede nomeados: não gostou, vá procurar seus Direitos! E eis o judiciário entulhado de ações contra a Fazenda. O juiz-tesoureiro incentiva a jurisdição como instrumento de gestão fiscal de curto prazo. De má gestão, diga-se.

É conhecida a história do Moleiro de Potsdam. Frederico II da Prússia queria ampliar os jardins do seu Palácio de Sans Souci. Para tanto necessitava expandi-lo sobre terreno vizinho, onde havia um moinho do qual um agricultor tirava seu sustento. Diante da determinação do Kaiser, recorreu ao Judiciário. Frente à arrogância do rei, o moleiro teria dito: “ilude-se Vossa Majestade, ainda há juízes em Berlim”. Quem vai a Potsdam encontra, ainda hoje, o moinho lá firme, nos lindes do parque em que se transformou o Palácio.

Tivesse o moleiro o azar de ter sua causa distribuída a um juiz –tesoureiro, o Kaiser teria satisfeito seu desejo. Afinal, o jardim do rei seria de “interesse público”. O moleiro, pobre, estaria esperando até hoje sua indenização. Para sorte dele, não havia juízes-tesoureiros em Berlim.

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