Diário de Classe

Consistência da pesquisa em Direito depende de um quadro referencial teórico

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13 de setembro de 2014, 8h01

Spacca
É conhecida a afirmação de Eric Hobsbawn que apresenta o século XX como o século mais curto de toda história. Isso basicamente porque, para o historiador, o século XX começou apenas com a primeira guerra mundial e terminou em 1989, com a queda do muro de Berlim[1]. Certamente, essa enunciação do historiador inglês é reflexo, também, dos eventos que marcaram profundamente o século passado: duas guerras com um potencial destrutivo jamais vivenciado em outros períodos; a grande depressão econômica que praticamente levou à falência todo o sistema capitalista; o new deal; as democracias do segundo pós-guerra; os movimentos pela efetivação dos direitos humanos etc. Assim, se o século XX foi curto, ele foi também um dos mais movimentados, com acontecimentos que levaram esse mesmo autor a nomear o século XX como “A Era dos Extremos”.

Pois esse reflexo da história — e dos extremos retratados por Hobsbawn — certamente produziu efeitos nas concepções filosóficas e científicas que pulularam, numa quantidade absurda de diferentes propostas, nesses tempos extremos.

De fato, não é exagero afirmar que também no campo teórico, de produção do conhecimento, o século XX foi uma era de extremos. Em nenhuma outra época histórica existiu um número tão grande de diferentes abordagens teóricas que procuram apontar para um mesmo aspecto, problema ou objeto do mundo histórico-social.

No âmbito das ciências humanas, então, esse quadro assume uma proporção ainda mais agigantada. Com efeito, são várias as formas pelas quais se nomeia esse conflito entre diversas posições teóricas que competem, ao mesmo tempo, pelo título de estatuto primário do conhecimento de cada uma das disciplinas que compõem o universo da cultura: fala-se em crise do fundamento[2]; poluição semântica[3]; e, até mesmo, em um relativismo epistemológico[4]. O campo jurídico é um terreno fértil para isso. O século XX assistiu à construção de inúmeras propostas que procuravam cuidar de solucionar os problemas teóricos e concretos da experiência jurídica.

As teorias privativistas da Alemanha pandectística e pós-pandectística (Jurisprudência dos conceitos, Jurisprudência dos interesses e Jurisprudência dos valores[5]); o normativismo lógico de Hans Kelsen; o jusnaturalismo culturalista de Gustav Radbruch; e, já na segunda metade do século, a ascensão das chamadas teorias pós-positivistas, como é o caso da metódica estruturante de Friedrich Müller, ou ainda não positivistas como no caso da teoria da argumentação de Robert Alexy.

No âmbito do direito anglo-saxão, o mesmo período presenciou as construções do positivismo utilitarista de Bentham e Austin, bem como as críticas lançadas por Herbert Hart à posição destes autores, que acabou por ser considerada uma forma “moderada” do positivismo jurídico. Ainda neste contexto, não se pode esquecer as críticas feitas por Ronald Dworkin ao Conceito de Direito de Hart, cujo eixo central encontra-se vinculado à refutação da tese hartiana do poder discricionário dos juízes para decidir sobre a chamada “textura aberta”, a “zona da franja” dos Hard Cases.

Diante desse aparente caos teórico, no interior do qual essas diversas posições – que podem até confluir para um consenso num determinado aspecto – se apresentam de maneira contraditória, o primeiro (e talvez o maior) esforço a ser empregado pelo pesquisador passa pela construção de ferramentas que lhe possibilitem encontrar, dentro desse universo complexo, algo que produza sentido.

Uma ferramenta interessante é desenvolvida contemporaneamente por Lorenz Puntel a partir daquilo que, no contexto de sua obra, vem sendo chamado de quadro referencial teórico.[6] Por certo que Puntel pensa esse quadro referencial para composição de sua filosofia sistemática que, embora com reformulações e novos contornos críticos, procuram recompor uma unidade presente na tradição e que foi perdida no contexto da radicalização da filosofia analítica no século XX.

Com efeito, a construção desse quadro referencial teórico é realizada por Puntel a partir de Rudolf Carnap, que introduziu – no âmbito da filosofia analítica – o conceito de linguistic framework, ou, quadro referencial linguístico.[7] Todavia, Puntel vai além de Carnap e oferece um conceito que é ao mesmo tempo mais abrangente e mais preciso do que aquele com o qual operava este último. Como ressaltado em nota, para Carnap o quadro referencial linguístico só era acionado no momento em que alguém queria nomear uma nova espécie de entidades. Para Puntel, o quadro referencial teórico representa uma espécie de tecido base que conforma a análise que se pretende realizar.

Puntel articula o conceito da seguinte forma:

“Neste livro, o termo quadro referencial é empregado em um sentido teórico abrangente, a saber, no sentido de quadro referencial teórico. O quadro referencial como quadro teórico designa a totalidade de todos aqueles quadros referenciais específicos (pensa-se principalmente no quadro referencial linguístico, no lógico, no semântico, no conceitual, no ontológico) que de uma ou outra maneira constituem os componentes irrenunciáveis de um quadro referencial compreensivo pressuposto por uma dada teoria. (…) o termo “quadro referencial teórico” não pode ser entendido no sentido de um sistema formal interpretado; um quadro teórico de cunho filosófico (e científico) é, antes, um instrumento que permite apreender, compreender e explicar algo (um nexo, um domínio objetual…). Dentro de ou por intermédio de um quadro referencial teórico se faz referência a algo”.[8]

Assim, para que a pesquisa em direito não se perca no raso, o pesquisador possui para si o ônus de estruturar o espaço teórico a partir do qual projetará sua análise. Esse esforço metodológico – quase catártico – implica aparar as arestas e eventuais contradições observadas nas obras dos autores que escolheu para dar suporte ao seu trabalho, criando, assim, condições que possibilitem perceber uma consistência nos resultados alcançados. E isso faz toda a diferença!


[1] Hobsbawn, Eric. Interesting Times. A Twentieth-Century Life. Nova York: Pantheon Books, 2002. Em especial, pp. 411 e segs.
[2] Ver quanto a isso Stein, Ernildo. A Caminho de uma Fundamentação Pós-Metafísica. Porto Alegre: Edipucrs, 1997. Nesse texto, afirma o autor que a crise pela qual passou a filosofia no final do século XIX e início do século XX gerou um processo de fragmentação do pensamento de modo que foi possível a produção de vários modos de filosofar que competem – concomitantemente – pela solução dos problemas filosóficos. O livro citado traz um modo interessante de colocar esse problema ao apresentar ao leitor dez modos possíveis de se fazer filosofia no século XX.
[3] Cf. Stegmüller, Wolfgang. A Filosofia Contemporânea, Vol.I e II. São Paulo: EPU, 1977, passim.
[4] Cf. D’Agostini, Franca. Analíticos e Continentais. Tradução de Benno Dischinger. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003, pp. 175 e segs.
[5] Importante anotar que o termo “Jurisprudência” aqui é utilizado no sentido de “Ciência Jurídica”, sem uma específica conotação tribunalícia ou qualquer significado similar. Na verdade, Jurisprudência dos Conceitos, Jurisprudência dos Interesses e Jurisprudência dos Valores são expressões que traduzem um modo específico de se relacionar com o conhecimento do direito e apresentar soluções para os casos judiciais. Desse modo, no decorrer do texto, utilizaremos a grafia da expressão com “J” para nos referirmos à Jurisprudência enquanto Ciência jurídica, ao passo que jurisprudência com “j” utilizamos para nos referirmos ao termo em seu sentido corrente, ligado às decisões sequenciadas dos tribunais.
[6] Cf. Puntel, Lorenz. Estrutura e Ser. Um quadro referencial teórico para um filosofia sistemática. São Leopoldo: Unisinos, 2008, p. 27 e segs.. Na esteira do autor leia-se o seguinte: “a determinação mínimal mas fundamental de filosofia, como entendida neste livro, diz que filosofia é uma atividade teórica, isto é, uma atividade que visa o desenvolvimento e a exposição de teorias. Para que o desenvolvimento e a exposição de uma teoria seja factível, devem ser reconhecidos e cumpridos muitos requisitos específicos. A totalidade dos fatores que preenchem esses requisitos pode ser chamada de quadro referencial, mais precisamente quadro referencial teórico
[7] Cf. Carnap, Rudolf. Empiricism, Semantics, and Ontology. Texto disponível em: http://www.philosophy.ru/library/carnap/02_eng.html>, acesso em 29.10.2010. Dentro das pretenções da filosofia de Carnap, eis uma amostra do significado do conceito: “If someone wishes to speak in his language about a new kind of entities, he has to introduce a system of new ways of speaking, subject to new rules; we shall call this procedure the construction of a linguistic framework for the new entities in question” [Se alguém deseja falar em sua linguagem sobre uma nova espécie de entidades, deve introduzir um sistema de novos modos de falar, sujeito a novas normas; daremos a esse procedimento o nome de construção de um quadro referencial linguístico para as novas entidades em questão – em tradução livre].
[8] Puntel, Lorenz. Estrutura e Ser. Um quadro referencial teórico para um filosofia sistemática, cit., p. 30.

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