Racismo no futebol

O STJD errou ou os auditores julgaram de acordo com a “sua consciência”?

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9 de setembro de 2014, 6h41

No último dia 03 de setembro, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) “fez história” ao excluir o Grêmio da Copa do Brasil, supondo estar acabando com o racismo e qualquer forma de injúria racial no país, arraigada (infelizmente) em grande parte da população mundial desde o século XIX. O objetivo deste artigo não é tanto adentrar no mérito da discussão sobre a tipificação penal adequada (injúria racial ou racismo, mesmo sabendo que os auditores não conseguem e não conseguiram fazer essa distinção), mas analisar a decisão proferida pelo STJD. Parece, mesmo, que a justiça desportiva não se leva muito a sério, porque se considera um braço político-estratégico da CBF. E sem qualquer accountability.

Ao analisar o artigo 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), percebemos que as tipificações ali descritas são as mesmas constantes no artigo 140, parágrafo 3º do Código Penal, que trata da injúria, sendo as penas, obviamente, diferentes de uma legislação para a outra. O que causa estranheza na pena aplicada pelo STJD é a fundamentação divergente do que consta na norma estabelecida pelo texto do parágrafo 1º, do referido artigo, que assim dispõe:

Art. 243-G. Praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:

§ 1º Caso a infração prevista neste artigo seja praticada simultaneamente por considerável número de pessoas vinculadas a uma mesma entidade de prática desportiva, esta também será punida com a perda do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente, e, na reincidência, com a perda do dobro do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente; caso não haja atribuição de pontos pelo regulamento da competição, a entidade de prática desportiva será excluída da competição, torneio ou equivalente.  

O primeiro ponto divergente é referente ao entendimento que o STJD possui em relação ao que seja um número considerável de pessoas. O início do parágrafo 1º prevê a prática do ato discriminatório por considerável número de pessoas vinculadas a uma mesma entidade de prática desportiva, sendo que as provas utilizadas pelos julgadores para embasar a decisão mostram apenas cinco ou seis torcedores injuriando o goleiro Aranha e o resto da torcida não corroborando com as ofensas, sendo que ao lado da menina Patrícia (famosa após o incidente) outra menina pede para ela parar de injuriar o jogador, demonstrando que não se trata de um número considerável os ofensores, mas sim uma minoria, que foram identificados pelo clube (também não vamos discutir aqui a diferença entre os conceitos de injúria racial e o racismo stricto sensu, que tem previsão em lei específica, circunstância que parece não ter sido levada em consideração no julgamento e nos comentários midiáticos). Assim, considerando que cinco ou seis não seja um considerável número de pessoas (parece que não, pois não?) e estes tendo sido identificados (foram intimados e prestaram depoimentos na Polícia Civil do RS), o mínimo que os auditores do STJD deveriam ter feito seria a aplicação do parágrafo 2º[1], do mesmo artigo, que prevê a pena de multa à entidade desportiva e a proibição dos ofensores de frequentar o estádio em dias de jogo.

Quanto à pena de exclusão constante na parte final do primeiro parágrafo, podemos perceber outro equívoco dos auditores, deixando clarividente que a decisão não levou em consideração o texto legal e seus limites semânticos, mas apenas a “consciência” e a “moral de cada um”. Vejamos: a exclusão somente pode ocorrer caso a competição não seja disputada por pontos de acordo com o regulamento; caso contrário, a punição será a perda de pontos atribuídos a uma vitória. A Copa do Brasil é uma disputa por pontos, conforme Regulamento Específico da Competição (ver aqui):

Art. 11 – O clube que somar o maior número de pontos ganhos ao final das duas partidas em disputa dentro do seu grupo, em cada fase, estará classificado para as fases seguintes.

Art. 13 – Os critérios de desempate, para indicar o clube classificado quando houver igualdade em pontos ganhos ao final das duas partidas de cada grupo serão os seguintes, aplicáveis à fase e nessa ordem:
1º) Maior saldo de gols;
2º) Maior número de gols pró assinalados no campo do adversário;
3º) Cobrança de pênaltis, de acordo com os critérios adotados pela International Board.

Se o próprio regulamento da competição estabelece que o sistema de disputa é por pontos, como o STJD pode excluir um time com a alegação de que a Copa do Brasil não é disputada por pontos? A resposta: “decidiram” de acordo com as suas convicções, a equivocada cisão entre direito e moral (onde a moral “corrige” o direito), com a emoção de ter visto o vídeo com o depoimento do filho do jogador injuriado… Ora, quando houve a morte de um torcedor no jogo entre Santa Cruz x Paraná, no dia 2 de maio de 2014, fato muito mais reprovável do que o ocorrido em Porto Alegre, tendo em vista que houve morte, os auditores não se comoveram com a dor de uma mãe pela perda do filho; pelo contrário, ainda diminuíram a perda do mando de campo, pena imposta ao Santa Cruz (leia aqui). Fatos semelhantes e mais graves já ocorreram em vários campeonatos e em nenhum deles houve a aplicação da pena de exclusão. Por que neste caso não houve o mesmo posicionamento e o cumprimento da legislação? Por que, com essa causa, o STJD poderia fazer política. Afinal, até a Secretaria Racial do governo federal entrou na parada, metendo o bedelho onde não é chamada. Essa é a resposta!

Integridade nas decisões do STJD
Em casos idênticos ao ocorrido no jogo válido pela Copa do Brasil, entre Grêmio e Santos, o STJD sempre cumpriu o disposto na legislação e somente aplicou multa ou perda do mando campo como pena, jamais exclusão. Isto é fato. Um exemplo é o caso do árbitro Márcio Chagas da Silva, que foi vítima de racismo (ou injúria racial — isso não ficou claro) pela torcida do Clube Esportivo Bento Gonçalves em partida válida pelo Campeonato Gaúcho de 2014, no dia 05 de março. Neste caso, o árbitro foi injuriado pela torcida mais de uma vez durante a partida, além de ter danificado o seu carro e colocado bananas no cano de descarga do veículo. Houve o reconhecimento e discussão no pleno do STJD sobre o que é número considerável e diminuição da pena aplicada pelo TJD do Rio Grande do Sul. A condenação pelo tribunal gaúcho foi a seguinte:

“Por maioria de votos conheceram dos recursos da Procuradoria do TJD, do SAFERGS e do EC Passo Fundo, dando parcial provimento reformando a decisão de primeiro grau e condenando o Clube Esportivo Bento Gonçalves, a pena de perda de nove pontos, perda de seis mandos de campo e multa de R$ 30.000,00 (trinta mil reais)”

Ao analisar o recurso 093/2014, interposto pelo Clube Esportivo Bento Gonçalves, o STJD (o mesmo que julgou o Grêmio) reformou a sentença, majorando a pena de multa para R$ 60 mil, afastando a perda de seis mandos de campo e reduzindo a perda de pontos de nove para três. Sim, esse é o mesmo STJD!

Se no recurso 093/2014, o STJD aplicou uma pena de acordo com a legislação vigente, diminuindo a perda do número de pontos e afastando a perda dos mandos campo, por que, em caso idêntico, a pena de exclusão foi aplicada, deixando de lado a jurisprudência dominante do tribunal, se o campeonato em que houve as injúrias raciais se dá por pontos?

É fácil constatar, portanto, que os auditores do STJD não aplicam a integridade e a coerência em suas decisões. Parece que os auditores não conhecem Ronald Dworkin, quando este ensina que os juízes (aqui também vale para os auditores) devem julgar de acordo com a melhor concepção que as normas jurídicas de uma determinada comunidade exigiam ou permitiam na época em que ocorreram os fatos, sendo que a integridade faz com estas normas sejam coerentes,[2] diferentemente do que ocorreu no julgamento do dia 3 de setembro, em que nenhuma integridade e coerência foi respeitada, não se levando em consideração os julgados já proferidos pelo pleno em casos idênticos.

O STJD e o auditor afastado
Algumas horas após o término do julgamento e a decisão já ter atravessado as fronteiras do país, repercutindo na mídia estrangeira, estouraram nas redes sociais algumas publicações do auditor Ricardo Graiche — que participou do julgamento e acompanhou o voto do relator pela exclusão do clube gaúcho — em que este postou fotos de nítido cunho e teor racista, tais como uma criança negra enrolada em um rótulo da Pepsi e o seguinte comentário: “Quer um gole?” Em outra imagem aparece a mão de uma pessoa negra e por cima dos dedos um chocolate em forma de dedo, insinuando que uma pessoa negra poderia acabar comendo o próprio dedo (absolutamente horrível, pois não?). Sem considerar a imagem de um negro fazendo gambiarra em energia elétrica (ou algo assim) e a inscrição “somos todos macacos” (aliás, a palavra holding do julgamento).

Inescrupulosas as publicações do auditor Graiche, bem como imorais — falamos, aqui, do e no conceito de ética e moral de Ronald Dworkin — para quem acabou de proferir um voto com o intuito de combater o racismo; parece que o auditor é adepto da teoria do faço o que eu digo, mas não faça o que eu faço. Daí a pergunta que não quer calar: Poderíamos dizer que o STJD, por ter em seus quadros o auditor Graiche, estaria contaminado, assim como fizeram com o restante da torcida do Grêmio (ou ao próprio clube, dizendo que “o Grêmio é racista”) ao decidir por excluir o clube da competição? Observemos esse dado objetivo: O mesmo tribunal que combate o racismo tem entre seus pares um julgador que faz algo semelhante ou pior do que os envolvidos na causa sub judice. Isso é grave, pois não? Aplicada a lógica dedutiva, nosso preclaro STJD estaria em maus lençóis. Afinal, se alguns poucos torcedores (em um Estádio com 36 mil torcedores) tem o condão de alçar toda a torcida ao patamar de racista (é o que se depreende da manifestação do relator do processo no STJD), um auditor teria o condão de macular a decisão dos outros quatro auditores? Afinal, em termos percentuais, o STJD está em desvantagem, porque um em cinco é igual a 20%.  Ora, é evidente que não seríamos levianos – e não o somos – ao ponto de fazer essa alusão ou afirmação. Dworkinianamente falando, é mais do que evidente que o STJD não pode levar qualquer pecha desse jaez. Falando tecnicamente, o erro do STJD foi o de não ter examinado os seus próprios precedentes e aplica-los de forma coerente e íntegra. Só isso. Mas, ao mesmo tempo, isso é tudo, certo?

Numa palavra final
Fazendo uma análise com e pela literatura, não poderíamos deixar de registrar a parecência do voto do auditor Graiche com a conduta do personagem Ângelo, da obra de William Shakespeare, Medida por medida, em que este é, em um primeiro momento, um escravo da lei, proferindo dura decisão… Já em um segundo momento, quando se encanta pelos encantos da bela Isabela, deixa a lei de lado.

De todo modo, vamos ver qual vai ser a decisão do Pleno do STJD ao julgar o recurso a ser interposto pelo Grêmio. Enquanto isso, sugerimos a leitura de Dworkin, na parte em que fala da coerência e da integridade do direito. Mas nos livros O que é isto – decido conforme minha consciência? e Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica também tem tudo isso.


[1] § 2º A pena de multa prevista neste artigo poderá ser aplicada à entidade de prática desportiva cuja torcida praticar os atos discriminatórios nele tipificados, e os torcedores identificados ficarão proibidos de ingressar na respectiva praça esportiva pelo prazo mínimo de setecentos e vinte dias.

[2] DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 263.

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