Contas à vista

Dívida Pública atrasa ampliação de Direitos Fundamentais e Investimento Público

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

9 de setembro de 2014, 8h05

Spacca
A Constituição de 1988 surgiu em um momento histórico em que o Brasil possuía uma dívida externa gigantesca, alegadamente em decorrência da crise do petróleo do final dos anos 70 e início dos 80, e tal preocupação refletiu fortemente nas normas que nela foram inscritas, seja nas disposições permanentes — como será visto — seja nas disposições transitórias (artigo 26), onde foi inserido um artigo que determinava a realização de auditoria na dívida externa brasileira no prazo de um ano a contar da promulgação da Constituição, o que nunca foi realizado. Atualmente a dívida externa brasileira é inferior aos créditos que o país possui em depósitos no exterior, o que faz com que, na prática, tenha deixado de existir.

Em face dessa peculiaridade, a Constituição brasileira traz em seu corpo permanente várias disposições sobre o crédito público. É necessário ver se elas garantem a sustentabilidade financeira preconizada.

Para efeitos didáticos cabe distinguir pelo menos três diferentes âmbitos de análise: 1) o da contratação dos créditos; 2) o referente a seu uso e 3) o que trata do pagamento aos credores.

Analisemos nesta coluna apenas os aspectos referentes ao pagamento de juros aos credores. Nele destaca-se um aspecto muito peculiar do sistema constitucional brasileiro, pois os credores da dívida pública possuem ampla proteção constitucional contra ingerências parlamentares na determinação orçamentária do montante a pagar.

Explica-se melhor: o Projeto de Lei Orçamentária enviado pelo Poder Executivo ao Legislativo para debate parlamentar e aprovação legislativa, contém certa previsão de gastos para pagamento de juros anuais aos credores da dívida pública brasileira, interna e externa. Ocorre que o montante que estiver previsto para pagamento desse tipo de despesa com juros no Projeto de Lei Orçamentária não pode ser modificado pelo Poder Legislativo — para usar uma expressão popular, “está blindado” contra emendas parlamentares. O texto é o seguinte:

“Artigo 166. Os projetos de lei relativos ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias, ao orçamento anual e aos créditos adicionais serão apreciados pelas duas Casas do Congresso Nacional, na forma do regimento comum.

§ 3º – As emendas ao projeto de lei do orçamento anual ou aos projetos que o modifiquem somente podem ser aprovadas caso:

I – …

II – indiquem os recursos necessários, admitidos apenas os provenientes de anulação de despesa, excluídas as que incidam sobre:

a) dotações para pessoal e seus encargos;

b) serviço da dívida;

c) transferências tributárias constitucionais para Estados, Municípios e Distrito Federal, …”

Observa-se que cada qual das alíneas desse inciso tem uma diferente característica financeira. A alínea “a” é uma espécie de gasto obrigatório, pois engloba a remuneração dos servidores públicos, que possui regras legais específicas às quais não poderiam ser alteradas através do processo orçamentário, exceto se fosse para aumento da despesa, pois se trata de um tipo de gasto extremamente rígido, incomprimível.

A alínea “c” trata de transferências intergovernamentais previstas pela própria Constituição, que não poderiam ser alteradas pelas leis orçamentárias.

A alínea “b”, por sua vez, trata de gastos contratuais para pagamento do serviço da dívida, sendo a única das três alíneas que poderia ser objeto de deliberação parlamentar, embora constitucionalmente vedada. Com esta disposição, as tratativas privadas entre o Estado brasileiro e os credores quanto ao pagamento de juros fica afastada de qualquer espécie de controle parlamentar.

Desta forma, podem ser realizadas emendas ao projeto de lei do orçamento anual caso sejam indicadas as fontes de recursos necessárias para amparar a modificação, considerando apenas anulações de receitas, porém, mesmo assim, é vedado ao Parlamento promover alterações sobre o “serviço da dívida”, ou seja, no montante estabelecido no Projeto de Lei Orçamentária Anual para pagamento do principal e dos juros aos credores. O que for estabelecido pelo Poder Executivo é o que valerá, de forma imune a qualquer deliberação parlamentar.

No mesmo sentido, o artigo 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/00) veda que haja contingenciamento desses valores, caso haja queda da receita pública estimada. É permitido ao Poder Executivo na condução da execução orçamentária, sustar o pagamento de algumas espécies de gastos programados (contingenciar), mas não os que se referem ao “serviço da dívida”. O montante que o governo brasileiro paga pelo serviço da dívida pública aos seus credores decorre de deliberação exclusiva do Poder Executivo, sem a possibilidade de qualquer interferência do Poder Legislativo — o que é, para dizer o mínimo, pouco democrático.

Tudo indica que aí reside o problema central do sistema político-financeiro brasileiro, que é o da autonomia do Banco Central. Ele deve ser autônomo para assegurar o pagamento do serviço da dívida, blindado a qualquer controle parlamentar e popular.

No final do século passado, olhando para os Estados Unidos, o economista canadense John Galbraith advertia que “o déficit orçamentário está sendo usado como um instrumento contra políticas socialmente necessárias, mas que são objeto de resistência política. À maior expansão da ação social se interpõe o argumento de que aumentaria o déficit e a carga fiscal sobre nossos netos. Isso, como ficará evidente, é uma tolice erradia e egoísta. Se enfocado corretamente, o déficit pode ser uma fonte de apoio e de benefício para as gerações futuras — uma ampliação de sua prosperidade geral e da capacidade de pagar. Assim foi no passado; assim deveria ser no futuro.”[1]

Esta parece ser a situação brasileira. Segundo Gilberto Bercovici e Fernando Massonetto[2], a Constituição Financeira, que deveria dar amparo à implementação dos direitos econômicos e sociais, acabou drenando para o pagamento dos juros da dívida pública grande parte da capacidade do Estado intervir na economia em prol dos desvalidos, sem qualquer controle parlamentar (artigo 166, parágrafo 2º, II, Constituição Federal). Um dos objetivos fundamentais da República brasileira, que é o da redução das desigualdades sociais e regionais (artigo 3º, III, Constituição Federal), ficou relegado a segundo plano. Ou como dizem esses autores, “o déficit público defendido por autores como John Maynard Keynes e Michal Kalecki era o déficit público do pleno emprego. Hoje é o déficit público que garante a remuneração para o capital.”[3]

A Constituição Financeira brasileira vem sendo usada para reduzir o ritmo da ampliação dos direitos econômicos e sociais em favor do pagamento da dívida pública para os rentistas.

O Senado Federal criou normas de controle para que o Estado brasileiro não se endivide em demasia, comprometendo sua capacidade de pagamento. Porém, o valor de quanto se paga de juros pela dívida pública interna e externa não tem nenhum controle parlamentar.

A sistemática brasileira faz com que o valor a ser pago de juros decorra do que se chama em economia de superávit primário, ou seja, quanto o governo economiza nas despesas públicas para que o balanço seja superavitário antes do cômputo do pagamento dos juros. O valor do superávit primário é o valor a ser pago de juros. Só após o pagamento dos juros é que se verificará se ocorreu ou não superávit operacional nas contas públicas.

Notícias dão conta que para 2015 a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) prevê que o Estado brasileiro deverá economizar 2,5% do PIB, ou seja, R$ 143 bilhões (aproximadamente 65 bilhões de dólares norte-americanos), sendo 2% a cargo do governo federal e o saldo a cargo de estados e municípios.

É possível manter indefinidamente esta situação? Infelizmente penso que sim e por longo prazo, como já ocorre, porém a custa do ritmo de ampliação dos direitos sociais que flagelam o povo brasileiro.

Existe fórmula alternativa? Sim. O orçamento público poderia determinar em valores exatos quanto o Brasil pagará de juros a cada ano ou período de quatro anos (para ser compatível com o Plano Plurianual), e não, como é feito, orçar pelo “saldo” apurado, comprimindo todas as despesas através do sistema de contingenciamento, para que o superávit primário corresponda ao serviço da dívida pública a pagar. Este singelo procedimento transformaria uma fórmula opaca em algo transparente, o que cumpre uma interminável série de normas acerca da matéria. A sociedade ficaria esclarecida sobre o valor do serviço da dívida e a contração que deve ser feita para cumprir os compromissos creditícios assumidos. E a blindagem do serviço da dívida à deliberação e ao controle parlamentar, tal qual hoje existe, deveria ser afastada de nossa Constituição, pois contrária aos princípios democrático e ao republicano.

É necessário que o homem volte a ser o centro das preocupações financeiras, e não o pagamento da remuneração do capital. Isso deve ser espelhado na sistemática orçamentária, acarretando a construção de um orçamento que coloque como preocupação central a redução das desigualdades regionais e sociais, ao invés da remuneração do capital financeiro, o qual deve ser pago, mas não deve ser o centro da sistemática orçamentária e das preocupações financeiras da intervenção do Estado na economia. O ritmo da redução das desigualdades socioeconômicas seria ampliado e, ao invés de sermos um país financeiramente mais seguro por sermos bons pagadores de juros, nos tornaríamos um país financeiramente seguro por termos uma população com menor desigualdade socioeconômica. Isso certamente garantiria menor taxa de juros no futuro, em face da estabilidade que teríamos alcançado.

Desta forma, a dívida pública, tal qual organizada no sistema orçamentário brasileiro, atrasa o ritmo de ampliação dos direitos fundamentais no Brasil, em especial os que necessitam de maior gasto público, como os que devem ser realizados com saúde, educação, mobilidade urbana, moradia e outros que tais. E, como corolário disso, o investimento público permanece minguado: 4% do PIB em 2012 e 6,3% em 2013[4]. Existem candidatos presidenciais que prometem aumentar este percentual para 24% do PIB, mesmo reduzindo a carga tributária — só não disse como essa conta vai fechar.

O problema não está na dívida pública em si, que é necessária, mas em seu equacionamento blindado por força da blindagem parlamentar a que está submetida em face da sistemática orçamentária constitucional. É necessário que a redução das desigualdades socioeconômicas seja realizada mais rapidamente do que já vem ocorrendo. Parodiando a frase do hino nacional brasileiro, constata-se que os “filhos deste solo” têm pressa nas ações de sua “mãe gentil”.


[1] John Kenneth Galbraith, A Sociedade Justa. Uma Perspectiva Humana. RJ: Campus, 1996, pág. 65/66.
[2] Gilberto Bercovici e Fernando Massonetto. A Constituição Dirigente Invertida: A blindagem da Constituição Financeira e a Agonia da Constituição Econômica. (Boletim de Ciências Econômicas XLIX, págs. 2/23. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2006)
[3] Gilberto Bercovici e Fernando Massonetto. A Constituição Dirigente Invertida, pág. 15
[4] http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/02/1418619-investimento-reage-e-e-destaque-do-pib-em-2013.shtml

Autores

  • é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e livre docente em Direito pela mesma Universidade.

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