Papel prestigiado

Lei 13.019 abre janela de oportunidades para a advocacia pública

Autor

  • Márcia Maria Barreta Fernandes Semer

    é procuradora do Estado de São Paulo. Especialista e mestre em Direito do Estado pela Fadusp. Presidente do Conselho Consultivo da Associação Nacional dos Procuradores integra ainda a Comissão de Controle Social dos Gastos Públicos da OAB-SP.

8 de setembro de 2014, 6h33

Sancionado em julho, o chamado Marco Regulatório da Sociedade Civil (Lei 13.019/2014) entrará em vigor para todo o território nacional no final de outubro próximo, depois de 90 dias de vacatio legis.

Tratando-se de instrumento jurídico que alterará de modo significativo o procedimento segundo o qual se estabelecem as parcerias entre o Poder Público e as entidades civis sem fins lucrativos no Brasil, o Marco Regulatório da Sociedade Civil, ao prestigiar o papel da advocacia pública nacional, impõe-lhe desafios e abre oportunidades.

A Lei 13.019/2014 constitui-se em mais um dos importantes diplomas legais editados nos últimos anos para combate à corrupção que se opera dentro e no entorno do Estado; os outros dois são a Lei de Acesso à Informação Pública (2011) e a Lei Anticorrupção (2013).

Ao (i) limitar a figura dos convênios às relações entre entes federados, (ii) instituir os novos Termo de Colaboração (para as parcerias propostas pela Administração) e Termo de Fomento (para as parcerias de iniciativa das entidades da sociedade civil) como instrumentos de formalização das parcerias, (iii) impor o Chamamento Público prévio para escolha da entidade parceira, (iv) exigir experiência, capacidade técnica, operacional e tempo de existência da entidade que postula a parceria, (v) dispensar a contrapartida financeira como requisito para celebração de parceria, (vi) além de determinar a publicação anual dos valores orçamentários destinados às parcerias entre Estado e entidades da sociedade civil sem fins lucrativos, a legislação em comento inaugura um capítulo promissor, porquanto mais transparente e democrático, na história, tão comprometida, das parcerias no Brasil.

O reconhecimento das entidades civis sem fins lucrativos como parceiras legítimas para o desenvolvimento de políticas públicas país afora é aspecto central dessa legislação. O resgate da credibilidade da sociedade na importância ou seriedade desse tipo de parceria é fruto que dela tende a advir, mercê exatamente (i) da fixação de requisitos objetivos para a celebração das parcerias e (ii) da introdução de outras disposições nitidamente moralizadoras, como a que confere atribuições materialmente saneadoras à advocacia pública.

Com efeito, o Marco Regulatório da Sociedade Civil, em seu artigo 35, impõe como requisito indispensável para a celebração e formalização do Termo de Colaboração ou do Termo de Fomento, “a emissão de parecer jurídico do órgão de assessoria ou consultoria jurídica da administração pública acerca da possibilidade de celebração da parceria, com observância desta lei e da legislação específica” (inciso VI).

Trata-se, até aí, de norma que praticamente reproduz o parágrafo único, do artigo 38, da Lei 8.666/93, sem maiores novidades. No entanto, a legislação em comento não se restringe à mera exigência de emissão de parecer jurídico prévio à pactuação a ser firmada entre Estado e entidade da sociedade civil. A Lei 13.019/2014, em seu artigo 35, parágrafo 2º vai além, e dispõe que caso “o parecer jurídico conclua pela possibilidade de celebração da parceria com ressalvas, deverá o administrador público cumprir o que houver sido ressalvado ou, mediante ato formal, justificar as razões pelas quais deixou de fazê-lo” (artigo 35, parágrafo 2º).

Confere, nesse passo, a Lei 13.019/2014 ao parecer jurídico o que denominamos acima “atribuição materialmente saneadora”, na medida em que a avaliação que emergir da análise efetivada pelo órgão de consultoria ou assessoramento da advocacia pública deverá, necessariamente, ser integralmente observada pelo administrador. Para não atender alguma orientação constante do parecer jurídico, o administrador, obrigatoriamente, deverá, por ato formal, justificar sua decisão.

Respeitado, desse modo, o poder decisório do administrador, a legislação em comento confia à advocacia pública responsabilidade definida no processo de controle da legalidade dos negócios públicos. E ao fazê-lo de modo expresso- e pioneiro, diga-se- resgata e consolida nessa função essencial à Justiça papel efetivo de órgão responsável pelo controle interno da legalidade no âmbito da administração pública brasileira.

É de fato alvissareiro o caminho que essa legislação abre para a advocacia pública, notadamente a partir da explicitação ao administrador, e a toda a sociedade, do caráter obrigatório e impositivo — embora não de todo vinculativo[1], dos pareceres emitidos pelo órgão.      

Também paradigmática a decisão legal de estabelecer como obrigatória a participação da Advocacia-Geral da União na indispensável prévia tentativa de solução administrativa das questões ou dúvidas advindas da execução das parcerias. Afinal, além de impor ao Estado-Administração mecanismo para desjudicialização de suas lides, atribui esse diploma legislativo ao órgão de Advocacia Pública Federal participação necessária e destacada nesse processo, no que revela outra faceta da referida “atribuição materialmente saneadora”.

Aqui, vale registrar, a legislação poderia ter avançado e desde logo firmado essa mesma obrigação de participação em tentativa prévia de solução administrativa de conflito para as procuradorias gerais dos estados, pois, assim como a Advocacia-Geral da União, as procuradorias gerais dos estados são, constitucionalmente, os órgãos exclusivos de advocacia das unidades federadas. Não obstante, entendemos que esse modelo deva ser reproduzido pelos estados nas regulamentações a seu encargo, sem prejuízo do recomendável aperfeiçoamento da própria Lei 13.019/2014 neste particular.

É certo que o desempenho proficiente do mister que o Marco Regulatório da Sociedade Civil muito adequadamente confia à advocacia pública exigirá forte estruturação do setor consultivo e de atuação extrajudicial tanto da Advocacia-Geral da União, como das procuradorias dos estados e também das procuradorias dos municípios por todo o país. Afinal, o “órgão de assessoria ou consultoria jurídica da administração” a que se refere o inciso VI do artigo 25 da lei 13.019/2014 não é e nem pode ser outro senão o órgão de consultoria jurídica da AGU, das PGEs e das PGMs, pelo menos no que se refere à Administração Direta, e em muitos casos também autárquica, da União, estados e municípios. 

Nessa perspectiva, a nova legislação das parcerias constitui-se em verdadeira janela de oportunidades para a advocacia pública. Oxalá seja assim compreendida e possamos advogados públicos e governantes aproveitá-la em prol da sociedade brasileira, trabalhando para bem estruturar a advocacia pública em todo território nacional tanto material quanto institucionalmente, e neste último aspecto garantindo, dentre outras demandas, o reconhecimento constitucional das procuradorias municipais e da autonomia administrativa e financeira, nos mesmos moldes já atribuídos pela Constituição às demais funções essenciais à Justiça (PEC 82). É assim que vamos de fato tirar a lei do papel e colocá-la na rua.


[1] Anote-se que embora a lei não seja expressa no específico aspecto que passo a comentar, a leitura de seu comando inscrito no § 2º do artigo 35 permite a conclusão de que o parecer jurídico que concluir pela impossibilidade jurídica da parceria será, este sim, vinculativo, na medida em que nessa hipótese não será dado ao Administrador decidir pela celebração do pacto mediante justificativa. A nosso juízo esta a compreensão que logicamente exsurge do texto legal, o que reforça a relevância do papel a ser desempenhado pela Advocacia Pública na análise de todas as futuras parcerias celebradas pelo Poder Público no Brasil.

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