Segunda Leitura

Novo mundo e nova realidade
exigem um novo Poder Judiciário

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

7 de setembro de 2014, 10h43

Spacca
Fatos novos demonstram claramente que estamos vivendo novos tempos. Para o bem e para o mal. As estruturas governamentais não exercem mais o poder sozinhas e vão se adaptando à nova realidade. Porém, dos três Poderes de Estado, o Judiciário é o que se adapta mais lentamente, o mais conservador. Por todas as razões, inclusive porque juízes incorporam em seu modo de ser a prudência. Faz parte da função só decidir depois de analisar todos os aspectos da discussão. Isto acaba sendo uma rotina de agir que é adotada quando se julga, quando se atua como administrador e até mesmo na vida pessoal e familiar.

Neste novo mundo a soberania dos Estados não é mais a do século XX, cada país com o seu território, símbolos e leis. A comunicação virtual tudo igualou, inclusive introduzindo palavras que são incorporadas a diferentes línguas. Crianças estudam em escolas internacionais, onde são preparadas para ser cidadãs do mundo e não de seu país. As companhias multinacionais espalham-se por diferentes continentes e, por seu poderio econômico, em alguns casos exercem um poder de fato superior ao do próprio Estado que as acolhe.

O crime organizado atualmente exerce uma parcela de poder do Estado. Não só nos morros do Rio de Janeiro, mas também na periferia das grandes cidades. A ausência do Estado gerou um poder paralelo que decide não apenas questões ligadas ao tráfico, mas também conflitos entre as pessoas (pagamento de dívidas, por exemplo), e ainda fornece serviços de previdência privada. Este poder dita, discretamente, decisões governamentais de grande relevância.

A população não aceita mais, passivamente, as regras postas, e não raramente exercem o que consideram justo pelas próprias mãos. Bom exemplo disto foi o ocorrido em São Roque, SP, em  18 de outubro de 2013, quando cerca de 100 ativistas na defesa dos animais invadiram as dependências do Instituto Royal e libertaram quase 200 cães da raça beagle, que se destinavam a experiências científicas.

Outro exemplo. Em terras indígenas do Alto Turiaçu, no nordeste do Maranhão, índios da etnia kaapor, cansados de esperar providências da Funai e de outros órgãos da administração federal, no dia 7 de agosto de 2014  atacaram madeireiros que atuavam ilegalmente na região, agredindo-os e queimando cinco caminhões e três tratores.

Conflitos deixam de ser individuais e por isso exigem decisões uniformes e coletivas. Em São José dos Pinhais, região metropolitana de Curitiba,  recentemente, dezenas de pessoas que haviam comprado lotes de terra acamparam em frente ao Fórum, pedindo providências porque estavam sendo-lhes movidas ações de rescisão contratual e reintegração de posse, resultando o descumprimento na perda do imóvel em que vivem. A discussão central gira em torno da rescisão de contratos, afirmando os compradores que são vítimas da cobrança de juros extorsivos e que ao redor de mil pessoas ficarão sem moradia.

A estes exemplos somam-se muitos outros. Os movimentos sociais, estimulados pela comunicação em tempo real através das redes sociais, possibilitam a reunião de milhares de pessoas em minutos, pondo em sobressalto as autoridades. Em alguns casos o Direito não tem solução a dar.

O Poder Judiciário não pode ficar impassível diante deste novo mundo. Vejamos algumas ideias para que possa exercer o seu papel no mundo contemporâneo. Evidentemente, a estas outras tantas podem ser adicionadas. Mas, uma preliminar se faz necessária: o Judiciário deve ser respeitado e fazer-se respeitar.

Não respeitar o Judiciário pode levar ao caos social. Fazer justiça pelas próprias mãos, por mais que existam justificativas, é um retrocesso social. Assim, todos que pretendem viver em um país democrático, aos que se preocupam com as futuras gerações, cumpre prestigiar o Judiciário como Poder de Estado. E no outro lado da moeda, a ele cabe procurar aproximar-se da população, compreender os seus anseios e adaptar-se à nova realidade social. Para tanto é preciso transparência nos seus atos, cortesia no trato com os usuários, eficiência máxima dentro do possível e pouca tolerância  com desvios de seus integrantes.

Mas isto tudo não basta. Há realidades novas que não se amoldam ao velho figurino. O melhor exemplo é o do princípio do juiz natural, tão caro a todos nós mas que tem que sofrer limitações. As ações de massa não podem ser diluídas em juízos diversos e receber soluções diferentes. Veja-se o exemplo mencionado de São José dos Pinhais, onde dezenas de contratos geraram processos com cerca de mil pessoas envolvidas. Se divididos em diversas varas, as decisões judiciais serão diferentes. Um juiz pode dizer que o pactuado deve ser cumprido e outro, ao contrário, concluir que ao contrato deve ser dada uma interpretação social. Os mesmos fatos, tendo soluções diversas, criam incompreensão e desconfiança entre os envolvidos.

Nos Estados Unidos, em 2010, ocorreu no Golfo do México  o maior vazamento de exploração de petróleo no mar da história da humanidade. O fato atingiu diversos Estados e originou enorme número de ações. Foi designado o juiz federal Carl Barbier de Nova Orleans para examinar todas, dando-se a ele total estrutura, inclusive uma juíza para atuar como assistente. No último dia 4 de setembro o juiz proferiu sentença na ação principal (MDL 219-BP Deepwater Horizon) e, segundo o especialista Alexandre Machado (Grupo Lex Petroleum, Facebook) a BP foi condenada a pagar uma indenização de US$ 18 bilhões por negligência grave. Se um caso semelhante ocorresse no Brasil, uma série de juízes federais e estaduais receberiam as petições iniciais e dariam decisões diferentes, eventualmente conflitantes e daí surgiriam dezenas de recursos. Tal tipo de conflito, pela relevância dos interesses e complexidade da matéria discutida, deve ser conduzido por uma só pessoa.

Do ponto de vista da flexibilização da soberania, nada pode ser mais superado do que as cartas rogatórias. Instrumentos formais ao extremo, com tramitação envolvendo autoridades diversas, elas sabidamente não têm efetividade. Em sendo assim, é preciso dar-se-lhes interpretação histórico-evolutiva, permitindo que assuntos de menor relevo sejam tratados diretamente entre juízes de primeira instância, mediante simples e direto pedido. Por exemplo, citação ou a ouvida de testemunhas  em cidades fronteiriças. Para que isto se torne realidade é preciso que os juízes se aproximem de seus colegas do outro lado da rua ou do rio e façam os primeiros contatos. E que o Supremo ou outros tribunais não anulem tal tipo de prova, dando menor valor à forma e maior valor à busca da verdade real.

Sob a ótica da ineficiência dos órgãos do Poder Executivo (exemplo dos índios kaapor), a situação é mais complexa. Realmente, o juiz até pode condenar o ente público ou seu administrador por improbidade administrativa. Mas será que isto resolverá o problema? Mais razoável é, assim que proposta ação, buscar a conciliação em audiência, nem que tenha que marcar cinco ou seis audiências ou mesmo realizá-las no local dos fatos.

Com relação ao poder de organizações criminosas, cabe ao Judiciário — além do Executivo, que é o principal ator — prover as comunidades das necessidades mínimas. Isto significa, entre outras coisas, colocar juizados especiais nos bairros periféricos dos grandes centros, juizados avançados nas cidades interioranas distantes, estimular e facilitar a prestação de serviço voluntário nos cartórios e secretárias, promover mutirões com  a utilização de barcos em cidades longínquas, como faz a Justiça do Amapá, Amazonas e Mato Grosso, dar especial atenção e prioridade de tratamento às cidades apontadas nas estatísticas como de PIB mais baixo (como em Doutor Ulisses, PR, o menor PIB da região Sul).

Em suma, tudo é válido no sentido de adaptar-se a um mundo cada vez mais complexo e uma sociedade mais participativa. Perceber as tendências, ajustar-se e evoluir, é para o Poder Judiciário não só uma questão de inteligência mas também de sobrevivência. Mãos à obra.

Autores

  • é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Vice-presidente para a América Latina da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É presidente do Ibrajus.

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