Observatório Constitucional

A televisão não é o grande
eleitor brasileiro de 2014

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6 de setembro de 2014, 8h00

Spacca
Televisão, o grande eleitor americano é o título de excelente artigo de Paulo Francis publicado pela Folha de S.Paulo em 20 de janeiro de 1976. O texto foi pautado pela constatação de que, em qualquer debate eleitoral ou ato público de confronto entre figuras públicas, o que importava realmente não era quem efetivamente tinha vencido a discussão, mas quem a imprensa televisiva interpretava como vencedor. Francis afirmou textualmente: a TV havia se transformado no principal eleitor norte-americano. A esmagadora maioria da população dos Estados Unidos formava a sua opinião sobre o mundo a partir do que era transmitido no jornal das sete. A pauta editorial e a maneira de apresentação dos conteúdos televisivos jornalísticos definiam a maneira como o povo em geral compreendia os principais acontecimentos políticos. Teria a melhor aceitação junto à população norte-americana, assim, o candidato que melhor se adaptasse à novidade.

Exemplo do poder da televisão à época é o fato de que, em pesquisa de 1971, Walter Cronkite, editor-chefe e âncora do jornal CBS Evening News, foi apontado como o indivíduo que gozava da confiança da esmagadora maioria dos cidadãos norte-americanos, superando em 75% o patamar atingido pelo então presidente Richard Nixon, segundo colocado na enquete, no momento em que gozava da maior popularidade que atingiu à frente do cargo.

Aliás, a própria vitória subsequente de Nixon na disputa pela reeleição presidencial de 1972 nos Estados Unidos foi o exemplo escolhido pelos cientistas políticos Thomas Patterson e Robert McClure para afirmar que foi a qualidade da propaganda política televisiva produzida por Nixon que o diferenciou positivamente de George McGovern para o público em geral. À luz dessa constatação, na renomada obra The unseeing eye: the myth of television power in national politics, publicada em 1976, Patterson e McClure defenderam a importância da televisão em si, especialmente do chamado horário eleitoral, como mecanismo facilitador da fixação da imagem dos candidatos para a população. Diferentemente de Francis, contudo, questionaram duramente a capacidade dos noticiários televisivos em efetivamente formar a convicção dos eleitores sobre quais candidatos devem ser escolhidos. Afirmaram que os jornais televisivos apenas se preocupavam com questões triviais, ao passo que os horários eleitorais efetivamente contribuíam para aumentar o conhecimento do eleitor a respeito das qualidades do candidato. Sem discordar de Francis quanto ao poder da televisão em si, o importante, para Patterson e McClure, era apenas a televisão-como-veículo e não a televisão-como-agente.

No artigo mencionado inicialmente, Francis adotou abordagem radicalmente distinta daquela de Patterson e McClure com relação ao que realmente importava na televisão para fins eleitorais e de formação da própria identidade cultural norte-americana. A existência de cobertura jornalística televisiva, para Francis, teria sido o caminho para o surgimento de autocrítica nos Estados Unidos a partir da guerra do Vietnã. Os “horrores do conflito penetraram em todos os lares americanos pela televisão em cores, [chocando] profundamente o povo americano”, disse Francis em artigo de 04 de julho de 1976. Mais do que isso, a cobertura diária de Watergate em todos os noticiários e a linha editorial adotada pelos principais veículos televisivos teriam sido os fatores responsáveis pela queda de Nixon em agosto de 1974. Nixon não teria resistido à televisão e ao videoteipe: “Nixon declarava, em Washington: ‘eu jamais disse que respeitaria a neutralidade do Camboja’. Pausa. Em seguida vinha o videoteipe de Nixon, com a mesma cara, o olhar furtivo de quem foi pilhado em flagrante, declarando: ‘juro solenemente que respeitaremos a neutralidade do Camboja’. Ler sobre essas coisas não se compara nem de leve a vê-las”. No entendimento de Francis, a televisão não representava mero veículo de difusão de informações eleitoralmente relevantes. Era um porta-voz parcial potentíssimo.

De um jeito ou de outro, duas variáveis eleitorais relevantes emergem do espaço de centralidade alcançado pela televisão naquele período: como e por quem eram definidas as pautas e as linhas editoriais dos principais jornais televisivos (televisão-como-agente) e como os candidatos se adaptavam às mudanças ocasionadas pela massificação da televisão sobre os pleitos eletivos (televisão-como-veículo). O impacto da novidade com relação à essência dos governos representativos foi inquestionável e jamais despareceu completamente desde então. O eleitor-televisão drasticamente redimensionou o papel dos partidos políticos, a importância da figura pessoal dos candidatos aos cargos eletivos e a capacidade de escolha dos eleitores.

A melhor análise teórica sobre o tema foi realizada pelo cientista político Bernard Manin na obra The Principles of Representative Government. Manin defende que a democracia tal como concebida hoje não possui qualquer relação com o que preconizavam os principais teóricos das revoluções liberais. Teria sido apenas a partir de metamorfoses indesejadas e inesperadas que os governos representativos do final do século XVIII se transformaram nas democracias contemporâneas. O autor deixa claro, assim, que “o que hoje se entende por democracia representativa tem as suas origens em sistemas de instituições (estabelecidos no despertar das revoluções inglesa, americana e francesa) que, de maneira alguma, foram inicialmente concebidos como formas de democracia ou de governo pelo povo” (2002:1). Retira essa conclusão não apenas dos modelos institucionais ou consuetudinários de distinção aristocrática entre eleitos e eleitores existentes na França, na Inglaterra ou nos Estados Unidos no final do século XVIII, mas também dos próprios ensinamentos de teóricos clássicos do governo representativo, como Rousseau, Madison e Siéyès. O fundamento da representação, tal como foi inicialmente concebida nesses países, era justamente selecionar os mais ricos e virtuosos como governantes.

Foram necessárias, assim, metamorfoses inesperadas e indesejadas pela teoria política clássica para que o governo representativo se aproximasse da democracia atual, tais como o surgimento do sufrágio universal e de partidos políticos. Com relação aos últimos, Manin afirma que, diferentemente do que sustentavam teóricos como Hamilton, Madison e Hume, “os partidos aproximaram os representantes das suas comunidades, fazendo com que fosse possível a indicação de candidatos cuja posição social, estilo de vida e preocupações fossem próximos aos daqueles pertencentes às camadas mais pobres da sociedade” (2002:195-196).

A metamorfose mais recente dos governos representativos foi caracterizada por Manin com expressão democracia de audiência. Esse momento, identificado pelo autor como fenômeno iniciado a partir da década de 1970, teria representado retrocesso democrático por transformar indivíduos em instituições mais importantes do que os partidos políticos. A partir de então, as campanhas políticas e os próprios partidos políticos teriam voltado suas atenções à figura de um determinado líder. Os partidos políticos, assim, teriam se transformado em meros instrumentos a serviço de um líder.

Duas causas foram apontadas como determinantes para a ocorrência dessa metamorfose: (i) o incremento da comunicação política por intermédio da televisão, o que conferiu maior destaque à individualidade dos candidatos do que às particularidades da sua plataforma política; e (ii) o aumento da complexidade da atividade política, que fez com que os representantes eleitos tivessem que lidar diariamente com uma série de decisões a respeito de questões que não poderiam ser previstas com antecedência, tornando literalmente impossível, para o eleitor, escolher um candidato a partir de critérios seguros com relação ao mérito das preferências deste. Ambas as características fizeram com que as peculiaridades individuais dos candidatos predominassem sobre as distinções ideológicas dos partidos políticos. Por consequência, a confiança pessoal inspirada por cada candidato e a sua habilidade para lidar com exposições públicas teriam se tornado o principal fator de desequilíbrio eleitoral desde então.

O problema dessa metamorfose, que é o que qualifica a democracia como de audiência, é o fato de que, nesse cenário, os eleitores tendem a responder a estímulos que surgem no curso dos processos eleitorais, no lugar de expressar as suas reais preferências. O voto passaria a ser reativo à iniciativa dos próprios candidatos, fazendo com que o “eleitorado apareça, acima de tudo, como uma audiência que responde aos termos daquilo que foi apresentado no palco político” (2002:223).

A televisão, portanto, teria trazido uma nova elite midiática para o comando das democracias, em substituição aos burocratas partidários. Com isso, o rumo positivo dos governos representativos também teria sido alterado. Segundo Manin, quando os “ativistas políticos e os burocratas tomaram o lugar dos notáveis, a história pareceu diminuir o espaço existente entre as elites governantes e os cidadãos ordinários”. Contudo, “não há razão para se pensar que as elites políticas e midiáticas atuais são mais próximas dos eleitores do que os antigos burocratas partidários”. Assim, ao invés de representar apenas a substituição de uma elite por outra, a democracia de audiência poderia significar o agravamento da distância entre os governados e os representantes. Portanto, ainda que o governo representativo tenha inquestionavelmente se democratizado desde o seu surgimento, “a diminuição da distância entre governantes e governados e o aumento da influência dos governados sobre os governantes se revelaram fenômenos menos duradouros do que o esperado” (2002:234).

No Brasil, não são poucos os teóricos que afirmam que o papel da televisão foi decisivo em todos os pleitos eleitorais presidenciais realizados sob a égide da Constituição Federal de 1988. Foram substanciais as mudanças ocorridas na indústria televisiva entre 1960 – última eleição presidencial direta realizada no Brasil antes do regime militar – e 1989. No Brasil de 1960, as transmissões televisivas restringiam-se a oito capitais, nas quais existiam 18 emissoras e 760 mil receptores; em 1989, havia 235 emissoras, 25 milhões de receptores, cinco redes nacionais e 94% da população potencialmente atingida pela televisão (Mídia e Política no Brasil, Antônio Rubim).

O exemplo das propagandas políticas no segundo turno das eleições presidenciais de 1989 é o mais correntemente citado quando a discussão envolve o poder da televisão-como-veículo no Brasil pós-1988. A propaganda política de então foi levada ao ar entre setembro e dezembro de 1989, com transmissões diárias de duas horas, simultaneamente em rede nacional de rádio e de televisão. A lógica das alianças partidárias voltou-se ao alcance do maior tempo de horário eleitoral gratuito possível e as equipes especializadas na construção da propaganda tornaram-se ativo fundamental dos candidatos.

Também há relativo consenso acadêmico no sentido de que a televisão seguiu como “palco privilegiado da luta eleitoral e ator político relevante” nos pleitos eleitorais presidenciais de 1994, 1998 e 2002 (Os estudos sobre mídia e eleições no Brasil. Antônio Albino Canelas Rubim e outros).

Assim, após as pequenas incursões teórica e histórica, a pergunta que se coloca no presente artigo é a seguinte: é correto afirmar que a televisão segue como a principal eleitora presidencial do Brasil em 2014?

Embora não seja possível antecipar conclusões no momento atual da campanha política, alguns elementos factuais indicam claramente que a resposta tende a ser negativa, ao menos em termos de intensidade da importância eleitoral da televisão-como-agente e da televisão-como-veículo. O incremento da comunicação através das mídias sociais e da internet e a diminuição da relevância da televisão aberta na vida cotidiana da população brasileira apontam para o início de uma nova fase em que o eixo de desequilíbrio será a internet-como-veículo e a internet-como-agente.

Essa conclusão já se afigurava plausível em 2010, quando a candidata Marina Silva obteve 19,3% dos votos válidos nas eleições presidenciais, alcançando o maior percentual de votos de um terceiro colocado em todos os pleitos pós-1988, mesmo com “míseros 83 segundos de propaganda eleitoral na TV e no rádio” (O papel da internet na conquista dos votos de Marina Silva, Caio Túlio Costa). Em 2014, a mesma constatação fica ainda mais nítida quando se analisa a situação momentânea de Marina Silva na disputa eleitoral.

Nada permite antever, contudo, se a diminuição do papel da televisão permitirá que os problemas ocasionados pela democracia de audiência no Brasil sejam efetivamente superados. A condição reativa dos candidatos com relação aos eleitores não necessariamente será alterada pela internet, a despeito da maior possibilidade de interação com o usuário que é permitida pelo meio virtual. A difusão cada vez mais célere e desordenada de informações nas redes sociais tende a potencializar as vicissitudes verificadas nas democracias-de-eleitores-de-audiência, especialmente em razão da maior dificuldade de rastreabilidade da origem das informações propagadas em meio virtual.

Assim, a distorção do processo eleitoral tende a se manter, mesmo com a provável alteração na lógica de acumulação do tempo de televisão como critério principal de coligação eleitoral. A tendência de substituição do principal eleitor brasileiro é real, mas não necessariamente propicia efetiva melhora na qualidade da democracia do país.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio). 

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