Atitudes abolicionistas

Tobias Barreto e a questão racial no Brasil pré-republicano

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5 de setembro de 2014, 6h22

O mês de junho de 1889 remete a dois acontecimentos plenos de simbolismo para a vida jurídica e social nacional: a colocação da pedra fundamental do atual Palácio da Faculdade de Direito do Recife pelo Conde D’Eu e a morte de Tobias Barreto de Menezes. A Faculdade de Direito do Recife é comumente chamada de Casa de Tobias, em homenagem ao aluno e professor ilustre; mas nem sempre foi assim. Por outro lado, a persona histórica do Conde D’Eu é alvo de diversas controvérsias na historiografia contemporânea, e terminou relegado a um papel secundário no panorama político do Segundo Reinado.

Mas, naquele fatídico mês de junho de 1889, os jornais do Norte do Império noticiavam a passagem do Conde D’Eu na Província de Pernambuco. Até então ele era aclamado como herói da Guerra do Paraguai. Por isso, não somente nomearam uma importante praça no centro da Capital da Província em homenagem ao outrora “ilustre” combatente e consorte da Princesa Isabel (a redentora), como também coube a ele a honra de assentar a pedra fundamental do Palácio da Faculdade de Direito do Recife. Aos 26 dias do mês de junho de 1889, falece Tobias Barreto. O óbito do ilustre jurista e filósofo brasileiro não despertou grande atenção da imprensa local, nem muito menos dos periódicos da Corte. Graziela Bacchi Hora, em lapidar estudo sobre a Escola do Recife, diz que nem o próprio Tobias Barreto conceberia chamar a Faculdade de Direito de “Casa de Tobias”, designação atualmente consolidada. Apesar de admirado por seus discípulos e por muitos alunos da Faculdade de Direito do Recife, Tobias Barreto era “odiado pela congregação da Faculdade de Direito”.[1]

Depois de sua morte, Tobias Barreto alcançou uma notável projeção no cenário político e cultural brasileiro. É patrono da cadeira 38 da Academia Brasileira de Letras, atualmente ocupada por José Sarney, e outrora ocupada por Graça Aranha, Santos Dumont, José Américo de Almeida, etc. Já a viagem do Conde D’Eu terminou por apressar o fim do regime monárquico. O republicano Silva Jardim também viajou a bordo do paquete “Alagoas”. Assim, Silva Jardim terminou por cobrir o mesmo trajeto percorrido por Gaston D’Orleans, o Conde D’Eu. Em Recife, o príncipe francês pronunciou discurso no qual aludia ao perigo da queda da Monarquia e da continuidade da linha de sucessão.

Os republicanos passaram a disseminar nas Províncias do Norte e do restante do país — estimulados pelos discursos inflamados de Silva Jardim —, que a viagem do Conde D’Eu destinava-se a apresentá-lo como sucessor de fato de Dom Pedro II. A propaganda republicana alimentou (e ainda alimenta) alguns mitos em torno do Príncipe Marechal Gaston D’Orleans, que sucedeu o Duque de Caxias no comando das tropas brasileiras na fase final da Guerra do Paraguai. Apesar da evidente responsabilidade dele pela morte de cidadãos paraguaios durante a mencionada Guerra, não se pode olvidar que também coube a ele a prerrogativa de proclamar abolida a escravidão em território paraguaio mais de uma década antes da adoção de similar medida no Brasil.

Por sua vez, Tobias Barreto era muito mais abolicionista do que propriamente republicano. Apesar de haver colocado sua pena ao serviço daqueles que procuravam ridicularizar o Imperador Dom Pedro II, parece que mudou de atitude depois que foi alçado ao cargo de lente substituto na Faculdade de Direito do Recife, em 1882; depois que foi aprovado em primeiro lugar por unanimidade no concurso.[2] Contudo, diante do fato de haver escrito vários textos em tom de galhofa quanto a figura do Imperador, chegando ao ponto de compará-lo a um porco em um deles, era natural que Tobias Barreto temesse que o Imperador não o nomeasse para o cargo. Em atitude “republicana”, o Imperador Dom Pedro II terminou por nomeá-lo para o cargo, o que talvez explique o fato de Tobias Barreto não haver publicado mais nenhum tipo de texto que desabonasse a pessoa do Imperador daí em diante.

As atitudes abolicionistas de Tobias Barreto e do Conde D’Eu terminam por evidenciar as conexões entre a questão racial e a noção de cidadania no Brasil. O discurso abolicionista disseminado em certos setores da elite estava dissociado de uma visão de cidadania que compreenda a igualdade racial. Raymundo Nina Rodrigues, um dos pioneiros da medicina legal no Brasil, nega enfaticamente a possibilidade das diversas raças alcançarem o mesmo patamar evolutivo, ou grau de inteligência; tendo sempre em mira os “conhecimentos científicos modernos”.[3] Em sentido similar, Sílvio Romero constrói uma interpretação darwinista das raças, que também considera os climas em que elas surgiram.[4] Interessante é notar que esta interpretação de Sílvio Romero o levará à defesa da mestiçagem em terras brasileiras.[5]

Clóvis Bevilaqua também trilhará o mesmo caminho em defesa da desigualdade “científica” das raças, chegando a concluir por uma correlação entre a preponderância do elemento negro na inclinação para o crime.[6] Tais concepções corroboram a acomodação de concepções racistas ao lado dos ideais abolicionistas da elite nacional. Sílvio Romero e Clóvis Bevilaqua, destacados membros da chamada Escola do Recife, foram partidários do racismo científico, que contribuiu sobremaneira para a dispensa de tratamento discriminatório aos negros e mestiços.

Por outro lado, Tobias Barreto foi um dos primeiros juristas brasileiros a manifestar-se contrariamente a tal determinismo biológico na seara jurídica, a partir da publicação de Menores e loucos, em 1884; o que demonstra sua opção por um naturalismo moderado. Da pena de Tobias Barreto procede a crítica pioneira a Cesare Lombroso e seu criminalismo. Para ele, a tese de Lombroso corresponderia a uma generalização indevida, de modo que não seria possível reduzi-lo a uma lei.[7] Pois, a ideia de Lombroso radicaria em uma utilização indevida de pressupostos da biologia e de outras ciências para o campo jurídico-social. Ademais, considera também que a conclusão por uma predeterminação biológica do agir humano importaria na absoluta impossibilidade da realização da missão do direito de influir ou dirigir o comportamento social. Tal conclusão não pode ser interpretada, contudo, como uma negação absoluta da argumentação tipicamente causal no pensamento de Tobias Barreto; mas sim como uma admissão da existência de outras possibilidades de explicação da realidade.[8]

Apesar da inteligência notável, Tobias Barreto terminou por falecer na residência de um amigo, que se apiedou da situação de miséria daquele que já ocupava a Cátedra de Teoria e Prática do Processo na Faculdade de Direito do Recife. Com o fito de prestar um último auxílio à família do falecido, a Faculdade de Direito do Recife adquiriu a valiosa biblioteca de Tobias Barreto, pagando uma “soma insignificante” somente em 1890.[9] Assim, em junho de 1889, o príncipe consorte termina por estimular os republicanos a enterrarem a monarquia, assim como ele enterrou no solo a pedra fundamental do atual Palácio da Faculdade de Direito do Recife.

Por outro lado, pode-se dizer que Tobias Barreto não morreu; mas sim que foi plantado em solo fértil, tendo em vista os notáveis frutos gerados a partir da vida e da obra do jusfilósofo sergipano. O então aclamado príncipe passou à obscuridade com a proclamação da república. Coincidentemente, o paquete “Alagoas” transportou a Família Real brasileira para o exílio, em virtude do banimento decretado pelo governo republicano.

A praça recifense que levava o nome dele foi renomeada com a ascensão do governo republicano. Passou a se chamar de praça Maciel Pinheiro, em homenagem ao republicano e abolicionista Luís Ferreira Maciel Pinheiro, que foi contemporâneo de Tobias Barreto na Faculdade de Direito e também falecido no ano de 1889. Maciel Pinheiro ganhou notoriedade como voluntário na Guerra do Paraguai, tanto que foi homenageado com alguns versos de Castro Alves, que o chamava de “peregrino audaz”.[10]

Em suma, a citada praça continuava a homenagear um dos combatentes na Guerra do Paraguai. Entretanto, substitui-se o príncipe marechal por alguém que, nas palavras imortais de Castro Alves, “se improvisou soldado”. Por fim, até mesmo a pedra fundamental que marcava o breve momento de glória do príncipe francês desapareceu recentemente dos jardins da Faculdade de Direito do Recife, após as obras de ampliação do estacionamento concluídas neste ano.


[1] HORA, Graziela Bacchi. A escola do recife como expressão dos movimentos intelectuais do século XIX. In: BRANDÃO, Cláudio; SALDANHA, Nelson; FREITAS, Ricardo (coords.). História do direito e do pensamento jurídico em perspectiva. São Paulo: Atlas, 2012, p. 291-292.

[2] BEVILAQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 3 ed. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012, p. 239.

[3] RODRIGUES, Raymundo Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. Rio de Janeiro: Guanabara Waissman Koogan, 1984, p. 30.

[4] ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Tomo primeiro. 5 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953, p. 85.

[5] ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Tomo primeiro. 5 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953, p. 133.

[6] BEVILAQUA, Clovis. Criminologia e direito. Bahia: Livraria Magalhães, 1896, p. 94.

[7] BARRETO, Tobias. Menores e loucos. In: MERCADANTE, Paulo; PAIM, Antonio (org.). Tobias Barreto: estudos de direito II. 2 ed. Rio de Janeiro/Aracaju: Record/Governo de Sergipe, 1991, p. 72.

[8] HORA, Graziela Bacchi. A escola do recife como expressão dos movimentos intelectuais do século XIX. In: BRANDÃO, Cláudio; SALDANHA, Nelson; FREITAS, Ricardo (coords.). História do direito e do pensamento jurídico em perspectiva. São Paulo: Atlas, 2012, p. 295.

[9] BEVILAQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 3 ed. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012, p. 296-297.

[10] BEVILAQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 3 ed. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012, p. 440.

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