"Jurisimprudência"

Um exemplo emblemático de como a nossa jurisprudência é tratada

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5 de setembro de 2014, 6h36

"Jurisimprudência": o trocadilho é infame, bem sei. Mas não achei expressão melhor, ainda que seja um neologismo, para retratar a situação em que se encontra a jurisprudência de nossos Tribunais.

Aviso, desde logo, que, a despeito disso, sou a favor da tendência de dar força vinculante à nossa jurisprudência. Particularmente, gosto muito do tratamento dado pelo Projeto do novo CPC ao precedente judicial. Nosso Judiciário, que tem por volta de 90 milhões de ações em curso, não mais pode ser instado a se pronunciar sobre teses já solucionadas pela jurisprudência. Mais que isso, jurisprudência respeitada serve à sociedade, que precisa ter certeza e previsibilidade do que será a resposta judicial.

Não estou sendo contraditório ao reconhecer que nossa jurisprudência não é segura e, ao mesmo tempo, defender que ela ganhe mais força vinculante. Acredito que, somente quando dermos à jurisprudência um papel de destaque no sistema processual, os tribunais se preocuparão mais em mantê-la uniforme, estável e íntegra. Sei que há quem discorde, mas é como vejo as coisas.

Porém, no cenário atual, a jurisprudência ainda gera mais inseguranças do que certezas. Exemplo emblemático do que estou afirmando ocorreu, recentemente, no Superior Tribunal de Justiça.

A 2ª Seção do STJ, em fevereiro de 2011, nos embargos de divergência 857.758/RS, julgou se o devedor precisaria ser intimado para cumprir a sentença condenatória de obrigação de fazer. Estavam em disputa a tese de que o prazo para cumprir a sentença fluiria a partir do mero trânsito e a tese de que esse prazo somente correria a contar da intimação. Ressalte-se que a questão posta a julgamento não se referia à forma como a intimação deveria ser feita, se pessoal ou por advogado, mas apenas se deveria haver intimação ou não.

Os ministros, por unanimidade, decidiram que a execução do artigo 461 do CPC começa com a intimação do devedor. Entretanto, ao redigir o acórdão, a relatora ministra Nancy Andrighi escreveu que essa intimação deveria ser feita na pessoa do advogado. Para a relatora, como a Corte Especial decidira que a execução do artigo 475-J se inicia com a intimação do advogado, a execução do artigo 461 do CPC deveria se adaptar a essa solução, uniformizando-se o começo de todos os modelos de execução de sentença[1].

Além de contrariar a Súmula 410 do STJ, essa questão não tinha sido enfrentada pelo colegiado da 2ª Seção, configurando-se entendimento pessoal da Relatora, mas posto por ela no acórdão sem nenhuma ressalva.

Depois desse julgado, algumas turmas passaram a acompanhar o “novo entendimento” do STJ[2].

Dois anos mais tarde, a mesma 2ª Seção, ao perceber o equívoco da ministra Nancy Andrighi, proferiu outro julgado, no recurso especial 1.349.790/RJ, no qual decidiu, por unanimidade, que na execução do artigo 461 do CPC a intimação é pessoal, e não do advogado. Nesse acórdão, a 2ª Seção fez um esclarecimento sobre a decisão de 2011, para dizer que aquele julgado não tinha decidido que a intimação na execução do artigo 461 do CPC é do advogado, deixando claro que sempre prevaleceu o entendimento de que a intimação é pessoal[3].

A própria ministra Nancy Andrighi estava presente nesse último julgamento e, de forma surpreendente, votou no mesmo sentido dos demais, contrariando sua posição anterior.

Nesse novo acórdão da 2ª Seção, a relatora, ministra Isabel Galotti, cobrou da ministra Nancy Andrighi o fato de esta última ter incluído na decisão anterior seu entendimento pessoal como se tivesse sido uma questão enfrentada pela colegiado. A ministra Nancy Andrighi explicou-se, alegando que compreendeu mal o que foi debatido pelos ministros[4].

Em suma, por falha de compreensão, uma ministra pôs num acórdão da 2ª Seção seu entendimento pessoal como se a questão tivesse sido apreciada, esse julgado foi seguido por outros e, agora, houve novo acórdão da 2ª Seção corrigindo o engano.

Esse ocorrido dá a dimensão de como nossa jurisprudência é tratada pelos tribunais. Por essas e outras, ainda segue atual a advertência feita pelo ministro Humberto Gomes de Barros:

“Nas praias de Turismo, pelo mundo afora, existe um brinquedo em que uma enorme boia, cheia de pessoas é arrastada por uma lancha. A função do piloto dessa lancha é fazer derrubar as pessoas montadas no dorso da boia. Para tanto, a lancha desloca-se em linha reta e, de repente, descreve curvas de quase noventa graus. O jogo só termina, quando todos os passageiros da boia estão dentro do mar. Pois bem, o STJ parece ter assumido o papel do piloto dessa lancha. Nosso papel tem sido derrubar os jurisdicionados”[5].

Não obstante esses problemas, o fortalecimento da jurisprudência constitui, a meu ver, uma das principais soluções para reduzir o problema das ações repetitivas e gerar segurança jurídica à sociedade. Como disse acima, talvez no momento em que a jurisprudência tiver de ser observada, passaremos a olhá-la com mais cuidado e responsabilidade.


[1] “PROCESSO CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. ACÓRDÃO QUE APRECIA O MÉRITO DO RECURSO ESPECIAL. SÚMULA 315⁄STJ. NÃO INCIDÊNCIA. OBRIGAÇÃO DE FAZER OU DE NÃO FAZER. ASTREINTES. EXECUÇÃO. INTIMAÇÃO DO DEVEDOR. NECESSIDADE. INTIMAÇÃO POR INTERMÉDIO DO ADVOGADO. POSSIBILIDADE.

1. Os embargos de divergência em agravo de instrumento, apresentados contra acórdão que ingressa na apreciação do mérito do recurso especial, não encontram óbice na Súmula 315⁄STJ. Precedentes.

2. A intimação do devedor acerca da imposição da multa do art. 461, § 4º, do CPC, para o caso de descumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, pode ser feita via advogado porque: (i) guarda consonância com o espírito condutor das reformas que vêm sendo imprimidas ao CPC, em especial a busca por uma prestação jurisdicional mais célere e menos burocrática, bem como a antecipação da satisfação do direito reconhecido judicialmente; (ii) em que pese o fato de receberem tratamento legal diferenciado, não há distinção ontológica entre o ato de fazer ou de pagar, sendo certo que, para este último, consoante entendimento da Corte Especial no julgamento do REsp 940.274⁄MS, admite-se a intimação, via advogado, acerca da multa do art. 475-J, do CPC; (iii) eventual resistência ou impossibilidade do réu dar cumprimento específico à obrigação terá, como consequência final, a transformação da obrigação numa dívida pecuniária, sujeita, pois, à multa do art. 475-J do CPC que, como visto, pode ser comunicada ao devedor por intermédio de seu patrono; (iv) a exigência de intimação pessoal privilegia a execução inespecífica das obrigações, tratada como exceção pelo próprio art. 461 do CPC; (v) uniformiza os procedimentos, simplificando a ação e evitando o surgimento de verdadeiras ‘arapucas’ processuais que confundem e dificultam a atuação em juízo, transformando-a em terreno incerto.

3. Assim, após a baixa dos autos à Comarca de origem e a aposição do ‘cumpra-se’ pelo Juiz, o devedor poderá ser intimado na pessoa do seu advogado, por publicação na imprensa oficial, acerca do dever de cumprir a obrigação, sob pena de multa. Não tendo o devedor recorrido da sentença ou se a execução for provisória, a intimação obviamente não será acerca do ‘cumpra-se’, mas, conforme o caso, acerca do trânsito em julgado da própria sentença ou da intenção do credor de executar provisoriamente o julgado. Em suma, o cômputo das astreintes terá início após: (i) a intimação do devedor, por intermédio do seu patrono, acerca do resultado final da ação ou acerca da execução provisória; e (ii) o decurso do prazo fixado para o cumprimento voluntário da obrigação.

4. Embargos de divergência providos”. (STJ, 2ª Seção, embargos de divergência em agravo nº 875.758/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 23.02.2011. DJe em 25.08.2011).

[2] Vide, por exemplo, AgRg no REsp 1113627/RS.

[3] “RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. OBRIGAÇÃO DE FAZER. DESCUMPRIMENTO. MULTA DIÁRIA. INTIMAÇÃO PESSOAL. AUSÊNCIA. SÚMULA N. 410-STJ. EXCLUSÃO DA PENA. PROVIMENTO.

1. ‘A prévia intimação pessoal do devedor constitui condição necessária para a cobrança de multa pelo descumprimento de obrigação de fazer ou não fazer.’ Entendimento compendiado na Súmula n. 410, editada em 25.11.2009, anos após a entrada em vigor da Lei 11.232/2005, o qual continua válido em face do ordenamento jurídico em vigor. Esclarecimento do decidido pela 2ª Seção no EAg 857.758-RS.

2. Hipótese em que não houve intimação específica para o cumprimento da obrigação de fazer sequer em nome do advogado. A intimação do conteúdo da sentença, em nome do advogado, para o cumprimento da obrigação de pagar, realizada na forma do art. 475-J do CPC, não é suficiente para o início da fluência da multa cominatória voltada ao cumprimento da obrigação de fazer.

3. Recurso especial provido.” (STJ, 2ª Seção, recurso especial nº 1349790/RJ, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 25.09.2013, DJe 27.02.2014).

[4] Leia-se o que disse a Min. Isabel Galotti:

“A pretendida revisão do referido verbete, aprovado em sessão de 25.11.2009, não foi aceita pelo Colegiado, o qual somente acompanhou a relatora, unanimemente, quanto à conclusão de seu voto a respeito do caso concreto em julgamento.

Explico. No caso julgado no mencionado EAG 857.758⁄RS, o Tribunal de origem entendeu que a fluência da multa cominatória para cumprimento da obrigação de fazer inicia-se após o decurso do prazo de 30 dias fixado na sentença, contados a partir do trânsito em julgado do acórdão que a confirmou, sem necessidade de intimação do devedor, sequer na pessoa de seu advogado.

Diante da confirmação do acórdão pela 4ª Turma, foram opostos embargos de divergência, buscando a exclusão da multa sob a alegação de que somente incidiria depois do decurso do prazo para cumprimento da obrigação de fazer, contado da intimação pessoal do devedor. E, no caso, argumentou a UNIMED que a obrigação fora cumprida espontaneamente, antes de qualquer intimação para tal fim.

A relatora, Ministra Nancy Andrighi, em longo e elaborado voto, expôs seu entendimento de que a reforma processual levada a efeito pelas Leis 11.323⁄05 e 11.382⁄06, entre outras, justificaria a revisão da Súmula 410, para igualar o rito do cumprimento de sentença condenatória a obrigação de fazer e não fazer ao rito da execução de sentença condenatória ao pagamento de quantia certa.

[…]

A certidão do julgamento registrou o resultado unânime, com a adesão, inclusive, dos votos dos Ministros Aldir Passarinho Junior e Luís Felipe Salomão, que expressamente haviam se manifestado contra a tese exposta na ementa do acórdão, a qual não fez, contudo, referência à peculiaridade do caso concreto (cumprimento da obrigação antes da intimação do devedor), a despeito de ter sido justamente esta que ensejou a adesão unânime dos membros da Seção.

Entendo, portanto, que o julgamento do EAG 857.758⁄RS – a despeito do contido em sua ementa, que externou entendimento pessoal da relatora, contra o qual se manifestaram expressamente três membros da Seção – não alterou a orientação consolidada na Súmula 410 (‘A prévia intimação pessoal do devedor constitui condição necessária para a cobrança de multa pelo descumprimento de obrigação de fazer ou não fazer’). A propósito, esta também é a compreensão que se extrai do resumo do julgamento do EAg 857.758-RS divulgado no Informativo 464⁄STJ, período de 21 a 25 de fevereiro de 2011”.

Veja-se a resposta da Min. Nancy Adrighi:

“Contudo, tendo a i. Min. Isabel Gallotti optado por submeter este debate ao colegiado, focando a análise no teor dos EAg 857.758⁄RS, do qual fui relatora, com ilações quanto à supostas discrepâncias entre o resultado do julgamento e a respectiva ementa, que conteria minha opinião pessoal e divergente, vejo-me na obrigação de, preliminarmente, salientar que nunca opus resistência ao fato de ser voto vencido, ainda que de forma isolada, pois sempre me pautei pela íntima convicção, jamais sucumbindo ao orgulho ou à vaidade de perder a relatoria de um processo ou de não estar filiada à corrente vencedora.

[…]

Constata-se, pois, pelo menos em relação aos Ministros que inicialmente divergiram do voto condutor, uma falha na comunicação ou na interpretação do aditamento feito por mim, restrito à retirada da proposta de revisão do enunciado nº 410 da Súmula/STJ, não tendo, em momento algum, alterado minha convicção quanto a possibilidade de intimação via advogado.

[…]

Na minha longa carreira de Juíza, repito, nunca tive a pretensão de que minhas decisões ou teses prevalecessem, mas sempre assumi o compromisso de votar com total imparcialidade e isenção, filiando-me apenas e tão somente às minhas convicções, ainda que isso implique a reforma dos meus julgados, a prolação de voto vencido ou a perda da relatoria dos processos”.

E, agora, observe-se o arremate da Min. Isabel Galotti:

“Sr. Presidente, gostaria de deixar bem claro a esta Seção que jamais pretendi afirmar que a eminente Ministra Nancy Andrighi pudesse manipular resultado de julgamento ou ocultar pensamento aqui predominante.

A iniciativa, sob minha relatoria, da Quarta Turma, de trazer a questão à Seção teve o propósito de desfazer essa falha de comunicação reconhecida por Sua Excelência e de deixar bem claro que o entendimento da Seção, no julgamento do EAG 857.758⁄RS, foi no sentido da manutenção da Súmula 410 após a reforma processual promovida pelas Leis 11.323⁄05 e 11.382⁄06.

Reitero o meu voto”.

[5] AgRg no REsp 382.736/SC.

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