Estado de Direito

Deve-se evitar leis dúbias que retiram direitos por outorgas constitucionais

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4 de setembro de 2014, 9h00

Em 15 de maio, foi publicada a Lei Complementar 144/14 que vinha, conforme sua ementa, para o escopo de alterar o artigo 1º da Lei Complementar 51 de 20 de dezembro de 1985 e regulamentar a aposentadoria da mulher servidora policial. Na esteira de tal nobre objeto, citada Lei Complementar, em seu bojo, houve por bem também e, sem aviso, promover compulsoriamente a aposentadoria do servidor público policial, indistintamente, aos 65 anos de idade.

O leitor desavisado deste breve ensaio poderá pensar que se trata de mera questiúncula jurídica que só atinge aquela restrita classe de servidores públicos e, ainda sim, somente aos que se encontram em fim de carreira.

Mas não é este o moto de tal trabalho. O fato é que, escondido realmente numa questão muito localizada, emerge toda uma discussão, digna de um Estado de Direito, sobre a constitucionalidade ou não do diploma legal e traz subsídios a inúmeros outros questionamentos que fatalmente surgirão na esteira dos limites, formais e materiais, do poder de legislar.

Por óbvio que o texto constitucional não é imutável, como provam as inúmeras Emendas Constitucionais as quais, por seu turno, tramitaram como PEC com todos os seus requisitos e, por suas necessidades ou justificações prementes, culminaram em ser aprovadas.

Mas como os interesses em questão não farão mover uma PEC e, muito menos, terão robustez suficiente para se tornar uma Emenda Constitucional, de maneira repentina, substancializaram-se em uma Lei Complementar para num escopo, fazerem da Lei novamente objeto de estudo do desiderato de seus constituintes.

Com a sua edição, inúmeros servidores que tinham 65 anos de idade e se encontravam no exercício de suas funções foram, de um dia para o outro, afastados e proibidos de desempenharem seus cargos. Claro que, para tais servidores, citada situação constituiu-se numa constrangedora realidade vez que, no mínimo, contrariava seus planejamentos de, quiçá, remanescerem nos cargos até seus septuagésimos aniversários. Mas, evidentemente, de qualquer forma, fora uma surpresa e muitos deles, ao cotejar o texto da lei apontada com a Constituição Federal, verificaram claramente que o inciso II do parágrafo 1º do artigo 40 contempla a possibilidade de os servidores ali indicados aposentarem, "compulsoriamente, aos setenta anos de idade, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição". Entendendo que o texto da lei era inconstitucional e como tal, muitos policiais e órgãos de classe acorreram ao Poder Judiciário para impetrarem os mandados de segurança para que não fossem citados funcionários públicos aposentados compulsoriamente se tinham mais de 65 anos e menos de 70 anos.

Citado entendimento encontrou amplo eco junto a diversos magistrados e, sob diferentes alegações, todas muito próximas, julgaram liminarmente que aquela lei complementar, no objeto de regular matéria distinta, tinha extrapolado seus limites e contrariado a Lei Maior. Concedidas as inúmeras liminares, aguardava-se o édito dessas impetrações no sentido confirmatório de decretação da inconstitucionalidade daquela parte da lei.

Entretanto, no estado de São Paulo, a Fazenda Pública, claramente verificando que haveria um ônus maior estando aquelas pessoas em exercício do que aposentadas compulsoriamente, apresentou as razões que entendia devidas para o cumprimento imediato dos termos da Lei Complementar 144/14 e requereu, com fundamento no artigo 15, “caput” da Lei 12.016/09, diretamente ao Presidente do Tribunal de Justiça, a suspensão de execução de liminar, notadamente, no que tange à aposentadoria compulsória para aqueles com mais de 65 anos.

O Presidente daquele Tribunal de Justiça, após juntadas todas os demais requerimentos de extensões para as inúmeras liminares concedidas em todo o estado, houve por bem deferir aquela inicial e suspender os efeitos das liminares concedidas e, ainda posteriormente, estender tais efeitos a todos as demais que teve notícia posteriormente.

O âmago de tal decisão é ora transcrito:

"No caso em exame, as decisões determinaram que a autoridade impetrada se abstivesse da prática de todo e qualquer ato tendente ao regular processamento da aposentadoria compulsória dos impetrantes aos 65 anos de idade com base na Lei Complementar 144/14. O principal fundamento exposto nas decisões recorridas concentra-se no artigo 40, 1º, II da Constituição Federal sob a premissa, a meu ver equivocada, de exaurimento de toda e qualquer possibilidade de aposentadoria compulsória distinta do paradigma eleito de 70 anos de idade. Sem dúvida, a norma constitucional mencionada impõe uma restrição à alternativa ao legislador ordinário de aumentar o limite da aposentadoria compulsória. Mas não significa dizer que não seja possível, sob outro fundamento — no caso, o artigo 40, parágrafo 4º, II —, haver hipótese de redução da idade em aposentadoria compulsória por exercerem os policiais civis uma atividade de risco.

Entender que as normas constitucionais esgotam toda e qualquer alternativa de regramento legal das matérias por elas tragadas implicaria sustentar uma pretensão não desejada pela Constituição Federal de 1988, a de ser norma totalizante, suficiente por si, sem vez ou voz ao legislador ordinário integrá-la com outras regras e princípios. Decerto, não é o que se espera de nenhuma Constituição, pois a eficácia plena de suas normas não pode ser confundida com a interpretação literal, recurso hermenêutico, sabe-se bem, insuficiente em si à escorreita intelecção do ápice normativo do ordenamento jurídico. A propósito, é pertinente a advertência de Celso Ribeiro Bastos: "O método literal, em seu caráter absoluto, é que se torna totalmente não operativo".

Não se pode, portanto, partir do pressuposto de que a previsão de uma hipótese de aposentadoria compulsória sirva, além do alcance legítimo tópico-sistemático, de impor o limite máximo de idade no exercício da função pública, ainda chegar ao ponto de excluir o exercício da competência legislativa — constitucionalmente assegurada — de ponderar, por outros fundamentos (a exemplo do exercício de atividades de risco), a alternativa de distinto limite etário — desde que abaixo dos 70 anos de idade. Nestes termos, a Lei Complementar Federal 144/14, ao que parece, é fruto de uma ponderação feita pelo legislador ordinário em seara não interditada pela Constituição Federal, e a negativa a priori desta opção legislativa comprometeria o regular exercício da competência de um dos Poderes do Estado, o Legislativo, o que conduziria, em última análise, à não observância do princípio formal de competência que se define pelo reconhecimento da primazia a quem foi investido, por normas de competência, à prerrogativa — leia-se: ao dever — de disciplinar situações jurídicas não encerradas no texto constitucional. Em outras palavras, sempre que houver razoável conflito normativo entre princípios materiais, toda vez que for possível encontrar uma equivalência entre os direitos em conflito, não se pode desconsiderar a hipótese — tal como se apresenta — de a Constituição ter atribuída uma preferência a um órgão público de definir o equilíbrio da balança. Posto isto, no caso em análise, respeitar a opção do legislador significa expressar deferência à própria Constituição Federal." (Des. DR. RENATO NALINI, Presidente do TJSP, 25.06.14 – Proc. nº 2098355-26.2014.8.26.0000).

Citadas razões são bem fundamentadas e claras, mas não exaurem toda a questão. A citada Lei Complementar 144/14 dá nova redação à Lei Complementar 51 de 20 de dezembro de 1985 que dispunha sobre a aposentadoria do funcionário policial. Ali, no artigo 1º constava que o funcionário policial era aposentado, "compulsoriamente, com proventos proporcionais ao tempo de serviço, aos 65 (sessenta e cinco) anos de idade". Ora, então é permitido se supor que o legislador ordinário já pensava na aposentadoria compulsória do policial aos 65 anos, mas com o advento da Constituição Federal, citado édito não era observado e assim o foi até a publicação da Lei Complementar 144/14.

Então se assim o foi, ou houve liberalidade das autoridades de não aposentarem compulsoriamente aqueles servidores ou então entenderam que a Constituição Federal, com sua redação do artigo 40, obrigou que tal aposentação se desse somente aos 70 anos.

Agora nova lei complementar ressuscita a questão.

Entretanto, interessante exegese das leis e da Constituição Federal surge nos termos da sentença proferida nos autos do mandado de segurança 1022463-66.2014.8.26.0053 em que o Juiz de Direito sentenciante, Dr. Adriano Marcos Laroca, de maneira muito clara, decidiu pela inconstitucionalidade da lei e concedeu a segurança e ratificou seu entendimento com julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que muito bem sintetiza a questão:

"MANDADO DE SEGURANÇA. REDUÇÃO DE IDADE PARA APOSENTADORIA COMPULSÓRIA. DIREITO LÍQUIDO E CERTO DE PERMANÊNCIA ATÉ 70 ANOS. Conforme a jurisprudência do Órgão Especial, a aposentadoria compulsória do policial civil, aos 65 anos de idade, com base única e exclusivamente na implementação da idade vai de encontro ao disposto no artigo 40, § 1º, II da Constituição Federal, que prevê a compulsoriedade da aposentadoria aos 70 anos de idade, sem qualquer exceção. A possibilidade de adoção de requisitos diferenciados para a concessão da aposentadoria, prevista no § 4º do artigo 40 da Lei Maior, especificamente no inciso II, para os servidores que exerçam atividades de risco, diz respeito tão-somente à aposentadoria voluntária. (Mandado de Segurança nº 70054196936, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Dr. ARNO WERLANG, J. EM 17.06.13). Aposentar-se cinco anos antes constituiu um prêmio ao policial que assume riscos na sua atividade, na situação em que a aposentadoria é voluntariamente requerida. A prerrogativa que premia não pode ser convertida em ônus, a partir da imposição da aposentadoria compulsória e não desejada do policial antes do tempo regular. Concederam. Unânime." (Mandado de Segurança nº 7005516226, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: DES. DR. CARLOS CINI MARCHIONATTI, j. 14.10.2013). " Ora, então, por tal raciocínio, a Fazenda do Estado de São Paulo e de outros estados pretende transformar um prêmio num ônus, desnaturando a essência do dispositivo legal.

Entretanto, sem querer adentrar no mérito ou valor dessa mutação, a matéria que é nosso cerne é sobre a constitucionalidade da Lei Complementar 144/14.

A matéria se torna assim deveras tênue, pois todo o entendimento da questão se cingirá à interpretação do objeto a que visavam os constituintes ao escolherem a palavra "concessão" que consta no parágrafo 4º do artigo 40 da Lei Maior.

Como há entendimentos conflitantes da extensão de tais termos por parte de Tribunais de Justiça Estaduais, fatalmente teremos uma necessária decisão por parte do Supremo Tribunal Federal, em sede de recurso extremo.

Tudo isso mostra a riqueza do Direito como ciência e dos perigos que cercam os legisladores e também aos cidadãos. Mas o que se pretende, além de que tal discussão dê frutos positivos e construtivos nesta importante ciência, é também que vença o bom direito e evite, de uma vez por todas, legislações atravessadas, dúbias e que retiram direitos em nome de supostas outorgas constitucionais apoiados em arrevesados tirocínios que, no fundo, tornam ainda mais instável um Estado de Direito apoiado em interesses múltiplos e de aparência mais política que social e cujo maior prejudicado é, como sempre, o simples cidadão.

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