Direito Comparado

Crise do europeismo leva tribunais britânicos de volta ao common law

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

3 de setembro de 2014, 8h02

Spacca
A clássica distinção entre common law e civil law sempre foi objeto de seções ou capítulos especiais em livros de Direito Constitucional, Teoria do Direito, Direito Internacional ou de Direito Comparado.

É necessário, no entanto, estudar essa dicotomia de sistemas jurídicos sob as luzes de uma orientação contemporânea. Existem muitos textos ultrapassados sobre a visão do common law em nossa literatura, ainda profundamente marcada por textos da primeira metade do século XX e que não mais refletem o estado da arte dessa matéria.

A esse propósito, é importante reproduzir as ideias de Gary Slapper e David Kelly, quando esses autores informam que “a distinção usual a ser feita entre estes dois sistemas está no fato de que o common law tende a ser centrado em precedentes, e, portanto, centrado no juiz, permitindo então uma abordagem discricionária, ad hoc, pragmática dos problemas específicos que são trazidos à Justiça”. Ao passo em que, “o civil law, por outro lado, tende a ser um corpo codificado de princípios gerais abstratos que controlam o exercício da discricionariedade judicial”. No entanto, para Slapper e Kelly, essas distinções pecam por seu extremismo, porque há uma tendência contemporânea dos tribunais de common law em invocar a lei ao tempo em que seus homólogos de civil law, especificamente o Tribunal de Justiça Europeu, têm reconhecido “cada vez mais os benefícios de estabelecer um corpo de jurisprudência”.[1] É possível identificar também um incremento significativo na atividade legisferante no Reino Unido, apesar de Slapper e Kelly ressalvarem que embora tenha havido ampliação relevante “no Direito Legislado nos séculos XX e XXI, os juízes ainda exercem um importante papel na criação e aplicação do Direito em termos gerais e na determinação da aplicação da legislação em temos específicos”.[2] O controle dos dados da elaboração legislativa no Reino Unido é bastante rigoroso e permite testar empiricamente a hipótese do avanço do direito legislado na prática do common law.

Considerando-se apenas os acts baixados pelo Parlamento britânico em matéria legislativa afeta a todo o Reino Unido (e não apenas à Inglaterra e ao País de Gales, à Escócia e à Irlanda — posteriormente Irlanda do Norte), é possível expor os seguintes dados:[3]

a)Período de 1900-1909: 69 acts.
b) Período de 1910-1919: 83 acts.
c) Período de 1920-1929: 129 acts.
d) Período de 1930-1939: 130 acts.
e) Período de 1940-1949: 170 acts.
f) Período de 1950-1959: 204 acts.
g) Período de 1960-1969: 325 acts.
h) Período de 1970-1979: 444 acts.
i) Período de 1980-1989: 536 acts.
j) Período de 1990-1999: 540 acts.
k) Período de 2000-2009: 367 acts.
l) Período de 2010-2014: 148 acts.

 

Esses números podem ser examinados considerando-se diversos fatores que permitem interpretá-los de modo não linear. Exemplo disso são as décadas de 1910-1929 e 1940-1949, nas quais transcorreram duas guerras mundiais, o que deve ser levando em conta por haver elementos perturbadores da normalidade econômica e uma maior intervenção estatal no mundo privado. No entanto, mesmo nesses intervalos, não é perceptível uma alteração relevante no padrão legisferativo.

Outra possibilidade seria comparar os números com o período de governo dos conservadores ou dos trabalhistas. Mesmo com todos esses fatores, que influenciam na leitura dos dados, uma conclusão é relevante: à exceção do período de 2000-2009, nos últimos 110 anos o incremento da atividade legislativa no Reino Unido foi uma constante. A queda na década de 2000-2009 não pode ser definida como tendencial, pois seria necessário aguardar o término da década de 2010-2019, a fim de se concluir que houve uma inflexão nessa tendência de crescimento da atuação parlamentar.

No ano de 2014, que pode ser tomado para fins de análise do conteúdo dos novos acts, encontram-se informações relevantes sobre em que áreas o Parlamento britânico tem exercido sua prerrogativa de legisferação. Neste ano, por exemplo, aprovaram-se acts sob as seguintes rubricas: 1) retenção de dados e poderes de investigação; 2) reforma da House of Lords; 3) reforma da legislação de imigração; 4) legislação sobre águas; 5) mudança na lei de pensões; 6) alteração na lei de propriedade industrial; 7) modificação nas normas sobre a Irlanda do Norte; 8) igualdade de gênero; 9) reforma na legislação das forças armadas; 10) alteração na lei de seguridade social; 11) reforma do estatuto da família e da criança; 12) legislação sobre lobby.

A criação legislativa do Direito no sistema de common law do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte ampliou-se ao mesmo tempo em que se tornou mais democrática, multirracial e igualitária a sociedade britânica. Em paralelo a isso, houve também uma significativa perda de legitimidade e de prestígio da Câmara dos Comuns e da Câmara dos Lordes, como já se teve a oportunidade de anunciar em colunas anteriores (clique aqui e aqui para ler). 

Outro ponto que deve ser destacado na aproximação do direito de common law com o direito continental está na adesão do Reino Unido ao Tratado Europeu de Direitos Humanos e a submissão de seus órgãos à jurisdição da Corte Europeia de Direitos Humanos. Em 1998, com a aprovação Human Rights Act completou-se o processo de vinculação judicial britânica a um modelo inteiramente novo de revisão e de controle de sua própria justiça. Os padrões, as formalidades e a estrutura da Corte Europeia de Direitos Humanos, apesar de sempre buscar a preservação das especificidades locais, são mais próximos do direito de civil law.

Para além disso, a reforma constitucional de 2005 também ampliou o nível de intervenção judicial em atos políticos e administrativos do Gabinete e do Parlamento:

A tensão inerente na relação entre a Justiça e o Executivo assumiu um aspecto constitucional fundamental com a aprovação da Lei de Direitos Humanos de 1998. Por tal lei, a Justiça passou a poder sujeitar as ações e o funcionamento do Executivo e, certamente, de todas as autoridades públicas à fiscalização e controle do Direito, de forma a impedir que o Executivo abusasse de seu poder. Se a Lei de Direitos Humanos representou uma mudança no poder constitucional em direção ao Judiciário, a Lei foi de qualquer forma sensata ao manter a teoria da soberania parlamentar.”[4]

As tensões entre a Justiça, o Gabinete e o Parlamento do Reino Unido com a jurisdição da Corte Europeia e com os efeitos do Human Rights Act 1998 não se demoraram a sentir na sociedade britânica. Especialmente após a retomada do poder pelo Partido Conservador, em aliança com o Partido Liberal-Democrático, tem crescido o movimento em favor da denúncia do Tratado Europeu de Direitos Humanos e do fim da submissão dos atos judiciais britânicos à Corte Europeia. Sobre isso já se cuidou em outra coluna, cuja leitura é também recomendada.

As críticas à Lei de Direitos Humanos e à Corte Europeia são de variegada ordem. As restrições passam pela contestação da qualidade dos juízes da Corte Europeia, que, segundo alguns juristas do Reino Unido, não chegariam a escreventes se fossem britânicos. Outro foco de conflitos têm sido as decisões de Estrasburgo sobre a extradição de presos acusados de terrorismo e que eram recambiados para o Reino Hachemita da Jordânia.

No último dia 11 de agosto de 2014, em uma matéria publicada no jornal The Guardian, Lady Hale, atual vice-presidente da Suprema Corte do Reino Unido, a questão dos vínculos dos juízes ingleses com a tradição de common law foi analisada com extrema atualidade.[5] Brenda, baronesa Hale, explica que os juízes britânicos, após anos de estudo e interesse na legislação e na jurisprudência europeia, voltam-se agora com “renovada ênfase” para os princípios constitucionais britânicos. Ela identificou uma “crescente onda de sentimento anti-europeu”.

A matéria reproduz os principais pontos da conferência de Lady Hale, proferida no encontro da Administrative Law Bar Association, que, em tom jocoso, segundo ela mesma, poderia ser definida como “O Império contra-ataca”, mas que ela prefere dizer que é o “constitucionalismo britânico em marcha”.

É conveniente resenhar os principais pontos da conferência de Lady Hale:[6] a) O common law pode até não oferecer uma relação prescritiva de direitos, mas isso não significa que ele não seja uma fonte riquíssima de direitos e valores fundamentais, nem que sua existência para o direito interno seja dependente de sua incorporação ao texto da Convenção Europeia de Direitos Humanos.

b) Questões como a tortura e a obtenção de provas por meio dela são abominadas no common law há cerca de 500 anos. O respeito a esses direitos humanos não decorreu de uma verdade revelada da Convenção Europeia.

c) A jurisprudência da Suprema Corte do Reino Unido tem salientado que, desde a entrada em vigor do Human Rights Act 1998, houve uma tendência a se considerar que o Direito se reconduziria às áreas de incidência da Convenção Europeia e a seu catálogo de direitos fundamentais. No entanto, ainda conforme trecho de decisão da Suprema Corte, esses direitos fundamentais representam uma proteção limiar. Em algumas matérias, o direito nascido do common law pode ir muito mais longe que aquele assegurado pela Convenção Europeia, sem esquecer de que muitos dos dispositivos convencionais podem ter sido inspirados em preceitos de common law.

d) Na atualidade, cresce a noção de que os princípios constitucionais do Reino Unido devem estar na linha de frente da análise dos casos pelas cortes internas. Em termos práticos, a eventual revogação da Lei de Direitos Humanos não implicaria necessariamente um retrocesso para os direitos fundamentais na nação.

As palavras de Lady Hale são importantes para se conhecer o estado atual dos debates sobre o constitucionalismo britânico em face das últimas reformas, especialmente a de 1998 e a de 2005, em seu sistema jurídico.

Se o caminho em direção a um direito estatutário pode ser observado pelo incremento da atividade legislativa, ao menos em termos de Direito Constitucional o direito de common law no Reino Unido parece iniciar uma marcha em sentido contrário, na direção de suas raízes históricas. Para os juristas de civil law, esse é um debate relevante sob três aspectos:

a)O primeiro está em se confrontar certos chavões sobre o direito de common law, que deixaram de ter sentido nas últimas décadas, ao passo em que chama a atenção para que não se sedimentem ideias novas, que proclamam o puro e simples fim daquele velho sistema. Pode-se dizer, com Lady Hale, que o constitucionalismo do Reino Unido está “em marcha”.

b) O segundo aspecto é relativo a uma pretensão muito comum de se reconhecer nas normas constitucionais uma supremacia axiológica em relação ao direito ordinário. Na conferência de Lady Hale, guardadas as devidas proporções, encontra-se a defesa de que os costumes, as decisões e outras fontes de direito de common law podem ter preeminência axiológica sobre os direitos fundamentais da Convenção Europeia. Esse é um debate muito importante que pode ser levado a efeito em diversas áreas, especialmente no Direito Civil.

c) A rejeição britânica à Convenção Europeia de Direitos Humanos não se limita aos parlamentares, aos meios de comunicação e a parte do povo. Os juízes britânicos tentam agora revalorizar uma tradição que granjeou ao Reino Unido sua fama internacional de pátria dos direitos civis e das liberdades individuais.


[1] SLAPPER, Gary; KELLY, David. O sistema jurídico inglês. Tradução de Marcílio Moreira de Castro; revisão técnica: Francisco Bilac M. Pinto Filho (capítulos 1 a 8), Monique Geller Moszkowicz (capítulos 9 a 15). 1 ed. brasileira. Rio de Janeiro: Gen, Forense, 2011. p. 3.
 [2] SLAPPER, Gary; KELLY, David. Op. cit. loc. cit.
[3] Fonte: Her Majesty’s Stationery Office.
[4] SLAPPER, Gary; KELLY, David. Op. cit. loc. p.31.
[6] A íntegra da conferência está disponível aqui: http://supremecourt.uk/docs/speech-140712.pdf. Acesso em 29-8-2014.

Autores

  • é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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