Terras em disputa

Aniversário de morte de quilombola serve para lembrar falhas da Justiça

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30 de outubro de 2014, 17h29

30 de outubro de 2010. Flaviano Pinto Neto entra no carro de um conhecido e vai até um estabelecimento na beira da estrada (a MA 014), perto da comunidade onde mora. O conhecido lhe paga uma bebida e vai embora, deixando Flaviano conversando com a dona do local. Algum tempo depois, um homem entra no estabelecimento e dispara pelo menos sete tiros contra Flaviano, à queima-roupa.

Difícil escolher o ponto exato a partir do qual devemos começar a contar essa história e o que levou ao assassinato. Poderíamos recuar até aos tempos da escravidão no Brasil, já que Flaviano era de uma comunidade quilombola no Maranhão. Depois, passaríamos por décadas de conflito agrário, e chegaríamos então aos anos mais recentes de ameaças e ataques diretos sofridos pela comunidade do Charco, anos que foram também marcados pela intensificação de sua luta pelo direito à terra. Quanto maior o recuo no tempo, maior a sensação de injustiça.

A comunidade quilombola do Charco fica na região conhecida como “Baixada” no interior do Maranhão, a pouco menos de 300 km da capital São Luís. Lá vivem, hoje, em torno de 90 famílias. A paisagem seca no mês de outubro não reflete a realidade que dá nome ao local — “Charco” — uma referência ao alagamento da região durante o período das chuvas. A falta de chuvas e de infraestrutura para uma eventual irrigação não permitem o plantio de quase nada nesta época, mas as palmeiras de babaçu enfeitam a paisagem.

Naquela terra, quando a chuva permite, plantam mandioca, arroz, milho, batata e criam alguns animais. Também coletam coco de babaçu. Mas até uns 6 anos atrás, a maior parte da produção não ficava com eles. Um fazendeiro local alegava que aquela terra que a comunidade ocupa era de propriedade dele e por isso exigia o pagamento de um “foro”, um valor pelo uso da terra.

Apesar de achar injusto, as famílias pagavam. O que sobrava para eles era quase nada. Seu Davi, que hoje já passou de seus 60 anos, lembra que na infância sobrava pouca coisa do que cultivavam para a família. Era duro plantar, colher, e ver o fruto do trabalho ser entregue assim para o fazendeiro. Restava para a família muito pouco, em geral apenas o cultivo da “soca” (o rebrote do arroz após o corte da colheita principal), o que não era suficiente para sua alimentação.

Indignados com essa situação que se perpetuava há décadas, alguns moradores começaram a questionar a legalidade dessa exigência do fazendeiro. Se as famílias eram nascidas e criadas ali, como poderia aquela terra pertencer a outra pessoa? Flaviano era o presidente da Associação de Moradores do Charco e exigiu então que o fazendeiro apresentasse o título de propriedade provando que era o dono da terra e só assim fariam o próximo pagamento.

No dia marcado, em janeiro de 2008, a comunidade estava disposta a pagar o “foro”, desde que visse o documento. O fazendeiro, no entanto, não tinha documento nenhum a apresentar e, assim, o pagamento não foi feito. Desde então, a comunidade fica com aquilo que planta, colhe os frutos de seu trabalho. Mas, dizem também que foi ali que Flaviano Pinto Mendes assinou sua sentença de morte.

Os anos que se seguiram foram marcados por ameaças e ataques do fazendeiro e sua família à comunidade do Charco.

Raimundo Silva tem 56 anos e é filho de Dona Antônia que, com 90 anos, é a moradora mais velha da comunidade. Raimundo é nascido e criado no Charco, assim como sua mãe. Diz que ali “não é invadido"."Nós somos nascidos e criados aqui”. Ele conta que os fazendeiros “falavam sempre que iam vir de trator e derrubar tudo”. Uma noite, em agosto de 2008, ele e outros moradores acordaram com um incêndio. Correram lá e só viram o fogo que destruía a sede da Associação de Moradores. Raimundo disse que sentiram medo, mas completa: “Na mesma hora que a gente criava medo, a gente criava coragem”.

Foi essa coragem que manteve as famílias mobilizadas na luta pelo seu direito à terra e pela sua sobrevivência. Eles resistiram ao incêndio da associação, a homens armados, ameaças de morte e até a ordem de despejo. Mas a coragem sempre falou mais forte.

A área da comunidade do Charco é de ocupação antiga. Os moradores da são nascidos e criados lá, assim como seus pais e seus avós. Dona Antônia, a moradora mais velha, é nascida e criada lá. O fazendeiro chegou a abordá-la oferecendo-lhe uma casa, desde que ela desistisse da comunidade. Mas ela respondeu que não iria desistir do que é dela. E, ao contar essa história, faz questão de dizer que só sai da comunidade quando morrer, “no dia que Deus quiser”.

Diz o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias que "aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Mas o direito que está garantido no papel, no entanto, não se concretiza na prática.

Em outubro de 2009 a Fundação Palmares emitiu certificação reconhecendo o quilombo do Charco. Ali se iniciou um longo — e ainda inconcluso — processo para a titulação da comunidade. O Relatório Territorial de Identificação e Demarcação (RTID), elaborado pelo Incra, só foi finalizado em 2012. Só em março de 2014 foi publicada a portaria que reconhece e declara o Charco como terras de remanescentes de quilombo.

Mas a saga pela titulação não acaba aí. A fase técnica do processo de reconhecimento e titulação já foi superada. Agora, faltam os passos administrativos que dependem, em grande medida, de vontade política e priorização por parte das autoridades competentes.

A lentidão no processo de titulação do quilombo do Charco teve algumas consequências bastante negativas para a comunidade. A insegurança jurídica a respeito de sua permanência resulta em uma precariedade na lavoura, afinal como investir na terra quando se está sujeito a despejos e ataques de fazendeiros? Alguns moradores dizem que isso é “lavoura de risco” pois correm o risco de plantar, investir, mas perder tudo depois. Para essas famílias, a terra é o local de moradia e de trabalho, é meio de vida, fonte de alimentos e de renda. Sem a terra, não se tem nada disso.

Mas essa lentidão também apresenta outros riscos: o risco proveniente do conflito agrário a que ficam expostos em decorrência desta insegurança jurídica. Fazendeiros que querem tomar à força sua terra e, assim, ameaçam, atacam e até matam. E assim foi com a comunidade do Charco.

Infelizmente, essa realidade não é uma exceção. O processo de identificação e titulação de comunidades quilombolas no estado do Maranhão é bastante lento. São cerca de mil comunidades quilombolas no Estado, das quais pouco mais de 400 já tiveram o certificado emitido pela Fundação Palmares. Mas o número de comunidades que teve o RTID concluído não chega a dez. O Charco é uma delas.

O estado do Maranhão é marcado, também, por um histórico de conflitos por terra e violência contra trabalhadores rurais e comunidades quilombolas. Os dados divulgados pela Comissão Pastoral da Terra indicam que 34 pessoas foram assassinadas em decorrência de conflitos por terra no Brasil em 2013, sendo três delas no estado do Maranhão. Em 2014 — até outubro — já foram cinco lideranças rurais mortas no contexto da luta pela terra no estado.

No Brasil, esse tipo de crime tende a permanecer na impunidade. A CPT também documentou que dos mais de 1,6 mil casos de mortes em decorrência de conflitos no campo entre 1985 e 2009, apenas pouco mais de 90 foram julgados. Os dados revelam um quadro chocante de impunidade.

O assassinato de Flaviano Pinto Neto parece estar se encaminhando para fazer parte desta estatística de impunidade. Neste dia 30 de outubro faz quatro anos que ele foi morto e até hoje o caso não foi a julgamento. Deveria ser diferente. E poderia.

O inquérito policial foi concluído em abril de 2011. Advogados que acompanham o caso dizem que a investigação foi bastante completa e tem todos os elementos necessários para que o caso seja julgado, conseguiu produzir evidências e identificar mandantes, intermediário e executor. Mas, desde então, o processo criminal não avançou. Não houve ainda a decisão de pronunciar os réus, levando-os a julgamento.

Parece que nada avança sem muita luta. Como disse Zilmar Mendes, sobrinha de Flaviano e atual presidente da Associação de Moradores, o “governo é que nem feijão, só vai na pressão”. Se, na época, o inquérito policial avançou foi também devido a pressão local e internacional para que o caso não permanecesse no esquecimento. Até para garantir a exumação do corpo de Flaviano para realização de perícia foi preciso que a comunidade fizesse vigília no cemitério onde ele estava enterrado. Havia a ameaça de que o corpo seria roubado antes da exumação, impedindo assim a produção de mais provas acerca do crime. Por duas semanas os moradores do Charco guardaram o túmulo até que a exumação fosse feita.

Agora, a comunidade luta para que o caso vá a julgamento. Dona Ana, irmã de Flaviano, diz que “a justiça é mais do lado de quem tem dinheiro do que de quem não tem nada”. Parece que não há justiça sem muita luta. E, às vezes, nem assim.

Em 1994 o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, lançou a Carta da Terra, um texto-manifesto em defesa da Reforma Agrária, onde dizia que  “No Brasil a terra, também cercada, está no centro da história. Os pedaços que foram democratizados custaram muito sangue, dor e sofrimento.”

Os moradores do Charco sabem disso. Afinal, Flaviano foi morto na luta pela terra. Terra que é do Charco por direito, mas que, na prática, lhe é negada.   

Não é possível contar o fim dessa história. Ela só acaba quando a comunidade do Charco receber o título de suas terras e quando os assassinos de Flaviano forem devidamente julgados e responsabilizados. Enquanto isso não acontece, a história que se escreve é a da perpetuação da injustiça e da impunidade.

Ainda bem que há pessoas dispostas a lutar a vida inteira para mudar o rumo dessa história. Mas que essa mudança venha logo, porque já se esperou demais, já se sofreu demais, já sangrou demais.

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