Segunda Leitura

Peculiaridades da rotina e ambiente da Justiça Federal em 1980

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

26 de outubro de 2014, 7h01

Spacca
Desde 1970 eu pertencia ao Ministério Público de São Paulo. Carreira consolidada, muitos amigos, três filhos pequenos, morava à beira-mar (Itanhaém) e desfrutava do reconhecimento que se dá às autoridade nas pequenas localidades. Por inquietude de espírito, inscrevi-me e fui aprovado no 3º concurso para juiz federal. Em abril de 1980, ganhando 20% a menos do que recebia no MP, algo em torno de CR$ 94 mil, que equivaliam a menos de US$ 2 mil, tomei posse em Porto Alegre.

A Justiça Federal ficava no Edifício Protetora, um velho e maltratado prédio no centro da cidade. Apresentei-me ao juiz federal diretor do foro, Hervandil Fagundes, homem de fino trato, que me introduziu aos demais. Eram apenas oito para todo o Rio Grande do Sul: Hermilo Galant, Eli Goaraieb, João Cesar Leitão Krieger, Ari Pargendler, Osvaldo Moacir Alvarez, Célia Leite Salibe e Jirair Megheriam.

Poucos sabiam o que era um juiz federal. No Banco do Brasil, onde precisava abrir uma conta para receber os vencimentos, fiquei na fila e, habituado ao cheque especial, recebi um talão comum. Ao procurar moradia, exigiam-me carteira de identidade para entregar-me as chaves. Após conseguir um apartamento, tendo João Cesar L. Krieger como fiador, passei a viver sem telefone, empregada doméstica, plano de saúde ou outras comodidades.

Naquele tempo, os juízes federais dividiam-se em dois grupos, os nomeados pelo regime militar e os concursados. Os nomeados eram pessoas de confiança do regime militar. Indicados pelo presidente da República, tinham que ser aprovados pelo Senado. Os concursados submetiam-se a exames nacionais. O número de candidatos era menor que hoje, mas as dificuldades eram as mesmas. A prova oral era em Brasília e, regra geral, não se conhecia nenhum examinador. Predominava uma visão conservadora e se privilegiavam candidatos mais velhos. Os examinadores eram delicados e não havia qualquer discriminação contra mulheres.

As seções judiciárias eram pequenas e somente nas capitais. Nos estados menores, atuavam apenas dois juízes. No Rio Grande do Norte, Araken Mariz (nomeado) e José Augusto Delgado (concursado). São Paulo e Rio de Janeiro eram os maiores, com nove varas cada um. O Brasil inteiro tinha menos de 120 juízes federais. Praticamente todos se conheciam e uma pequena Associação dos Juízes Federais (Ajufe), presidida por João Gomes Martins Filho, juiz federal da 7ª Vara de São Paulo e ex-deputado federal, era um remoto ponto de ligação.

Na Seção Judiciária do RS o volume de serviço era grande. Eram cinco varas, quatro cíveis e apenas uma criminal (a 3ª), cada uma com dois magistrados. Somente a 1ª Vara Federal, cujo titular era o juiz Ari Pargendler estava em dia. Assumi a 2ª Vara, cujo titular, Hermilo Galant, homem trabalhador, mas que não gozava de boa saúde, estava em vias de tomar posse no cargo de ministro do Tribunal Federal de Recursos. Recebi de uma vez 442 processos conclusos para sentença e coloquei na cabeça a meta de zerar o acervo.

O ambiente entre os juízes federais era muito bom. No chá da tarde todos se encontravam para conversar, discutir os problemas comuns e reclamar dos vencimentos. Os nomeados eram pessoas experientes, de fácil trato. Galant, homem calmo e torcedor do Internacional, fora advogado no interior; Krieger, promotor Militar, amigo de Mário Quintana era de uma simpatia contagiante; Hervandil era um cavalheiro e Goraieb, homem experiente, era o único que não era gaúcho.

As secretarias tinham servidores concursados, alguns cedidos por outros órgãos (como a Caixa Econômica Federal) e também alguns ex-combatentes da FEB na 2ª Guerra Mundial. Eram pessoas diferentes entre si, os da FEB mais simples. Mas todos trabalhavam muito. O ambiente, regra geral, era muito bom. Aniversários eram comemorados e, vez por outra, havia um churrasco no fim de semana, ruidoso e alegre.

As condições de trabalho eram péssimas. Fiquei desapontado e pus em dúvida minha escolha ao constatar que a 2ª Vara, que assumi, tinha as cortinas rasgadas, a tampa do assento sanitário quebrada e uma máquina de escrever digna de um museu. Porém, se o orçamento era pequeno, a motivação minha e dos funcionários era grande.

Os processos, em uma vara cível, eram bem variados. Muitas ações de natureza tributária, para mim as mais difíceis. Algumas ações penais que estavam para sentença e não foram redistribuídas à Vara Criminal. Lembro-me de um réu, auditor fiscal da Fazenda, que me procurou e pediu que, pelo amor de Deus, sentenciasse, mesmo que fosse para condenar, pois não aguentava mais esperar a sentença que já tardava quatro anos. Senti o drama do infeliz e, em poucos dias, dei a solução.

As reclamações trabalhistas contra órgãos federais tramitavam na Justiça Federal. Os reclamantes vinham de todo o território gaúcho. Certa feita chegaram uns 10 homens altos, faces rosadas, trajes campeiros, vindo de Uruguaiana. Tinham uma ação contra o DNER e contaram que viajaram à noite e ficaram rodando pela cidade, esperando a audiência. Vendo o sacrifício daquelas criaturas, não hesitei. Ao fim da audiência proferi sentença no ato. Procedência parcial. As ações previdenciárias, pedidos de usucapião, desapropriações indiretas, questões indígenas, também faziam parte daquele universo. Não eram muitas.

Vivia-se o regime militar, inclusive com o AI-5 em vigor. Todavia, em momento algum sofri qualquer tipo de insinuação ou cobrança por parte de autoridades das Forças Armadas. Nem ouvi qualquer colega fazer referências a respeito.

Alguns juízes, como Hervandil Fagundes, usavam toga nas audiências. João Cesar Leitão Krieger usava bonitas camisas da América Central (guayaberas) e colocava a toga por cima. Ninguém patrulhava ninguém. O relacionamento com o TFR era muito bom. Os ministros tratavam os juízes federais com muito respeito. A Corregedoria era distante e não era hábito reclamar-se ao Ministro Corregedor. Só mesmo em casos extremos.

Naquele tempo, o Ministério Público Federal cumulava as funções de autor da ação penal com as de advogado da União. O clima entre magistrados e procuradores era bom, salvo exceções. Trabalhava comigo Pedro Paim Falcão, que depois assumiu como juiz federal e foi presidente do TRF-4. Ellen Northfleet, mais tarde ministra do STF, Luisa Cassales e Amir Sarti, depois desembargadores do TRF-4, Lucindo Bertoletti também pertenciam ao MPF.

Não havia cursos de capacitação para juízes e servidores. Nenhum juiz era professor, sendo a dedicação absoluta. Cada magistrado tinha direito a um carro oficial, à época elegantes Opalas pretos, única mordomia. Os telefones eram controlados, ninguém cogitava de dar um telefonema interurbano usando telefone da Justiça.

O relacionamento com a Justiça estadual era praticamente inexistente. Eu só conhecia o então juiz diretor do foro, Guilherme Engler porque ele constantemente tomava meu depoimento em precatórias. A Polícia Federal era pequena, vivíamos distantes. Defensoria Pública não existia. Os pobres eram defendidos por advogados dativos e os irmãos Hindeburgo Fetter eram ativos colaboradores.

A distribuição era alternada, um mês cada juiz. A rotina era chegar à Justiça às 13h, passar na distribuição, onde a diretora, Wanda Ilha, aguardava com um café passado na hora e muita simpatia. Feita a distribuição, com bolas numeradas, subia-se para a vara. O plantão também era alternado e raramente surgia algum requerimento. Lembro-me apenas de ter dado uma decisão contra a Federação Gaúcha de Futebol, que saiu com alarde na imprensa, porque envolvia interesses do Grêmio.

Em julho de 1981 fui removido para a Seção Judiciária do Paraná, com sede em Curitiba, três varas federais e seis juízes. Ao sair da 2ª Vara da Seção Judiciária do RS ela estava zerada, nenhum processo para sentença. Com tristeza deixei a cidade, sem saber que a ela voltaria anos depois. As dificuldades financeiras não me tiraram o gosto pela profissão e pela vida. Fica aqui o registro histórico.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Vice-presidente para a América Latina da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É presidente do Ibrajus.

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