"Judiciário está sobrecarregado, mas não está sendo usado por quem mais precisa"
26 de outubro de 2014, 9h00
De acordo com ela, a grande maioria dos processos em tramitação tem como autor ou réu o poder público, os bancos e as empresas de telefonia e energia elétrica. À revista eletrônica Consultor Jurídico, Andréa explicou que muitos conflitos sequer precisariam ter chegado aos tribunais se os órgãos de fiscalização e regulação funcionassem corretamente. “Mais de 80% dessa demanda está concentrada em quatro setores. Então, temos uma mega estrutura judiciária para atendermos uma demanda concentrada e que comporta soluções de conflito fora da Justiça”, diagnostica.
Segundo Andréa, o aumento da cultura da litigiosidade tem como resultado direto a insatisfação. Há um pouco mais de um ano à frente da Ouvidoria do TJ-RJ, a juíza convive com o número constantemente alto de reclamações. De janeiro a setembro deste ano, foram 19.838 segundo o levantamento do órgão. “A Ouvidoria é um escoadouro de insatisfações”, conta.
A surpresa da juíza, no entanto, foi verificar que as queixas tinham um alvo: a morosidade. “Pensava eu que a demanda que fosse chegar à Ouvidoria seria de acesso à Justiça, por pessoas que não conhecem o Judiciário ou que não sabem como chegar até ele. Então, tive essa surpresa”, disse ela, referindo-se ao índice de 87% de reclamações registradas nos nove meses de 2014, relacionadas à demora nos julgamentos.
No item lentidão, o relatório da Ouvidoria do TJ-RJ mostra que as reclamações abrangem praticamente todas as etapas do processo: abertura de conclusão (32% das queixas), juntada (27%), trâmite processual (13%), atendimento e despachos (8%), pedidos de informações (5%), devolução dos autos ao cartório (5%) e digitação de documentos (2%). Apesar do caráter individual das manifestações, Andréa conta que o trabalho que vem desenvolvendo no órgão visa a não deixar o cidadão sem resposta. “É importante que aquele que vem à Ouvidora não saia com a sensação de que nada pode ser feito”, afirma.
Na entrevista, ela defende a criação de meios para a melhor gestão dos processos judiciais. Ela também fala sobre a implantação da Lei de Acesso à Informação no TJ-RJ e a criação do Portal da Transparência, ambos pela Ouvidoria. A juíza sempre atuou em espaços de interlocução. Em associações da magistrados, por exemplo, defendia a execução de iniciativas que aproximassem o Judiciário da sociedade. E como conselheira do CNJ, entre 2007 e 2009, atuou em diversos programas de promoção ao acesso à Justiça.
Atualmente, além do trabalho na Ouvidoria do TJ-RJ e como titular da 4ª Vara de Órfãos e Sucessões da capital, Andréa se dedica a um projeto pessoal — e também muito especial: o seu segundo livro, Segredo de Justiça. A obra será lançada no próximo dia 6 de novembro, na livraria da Travessa, em Ipanema.
Leia a entrevista:
ConJur — Que balanço a senhora faz desse primeiro ano no comando da Ouvidoria do TJ-RJ?
Andréa Pachá — A Ouvidoria é um espaço desafiador. Nunca tinha tido essa experiência, embora eu já tivesse atuado em espaços de interlocução e diálogo com a sociedade. A Ouvidoria é um escoadouro de insatisfações. O que percebi, para a minha surpresa, é que ela acaba funcionando como um espaço onde as pessoas se socorrem para acelerar o trâmite dos seus processos, por causa da lentidão. Mais de 90% da demanda que chega à Ouvidoria diz respeito à morosidade no processamento: a lentidão na juntada de petições, no envio da conclusão, na digitação. Isso aponta para a necessidade de melhorarmos a gestão. Vivemos um momento de massificação dos direitos e o número de pessoas que temos não consegue enfrentar essa quantidade de processos. A insatisfação, então, é muito grande. Pensava eu que a demanda que fosse chegar à Ouvidoria seria de acesso à Justiça, por pessoas que não conhecem o Judiciário ou que não sabem como chegar até ele. Então, tive essa surpresa. Outro ponto fundamental, que consegui implantar nesse último ano, foi a Lei de Acesso à Informação, por meio do portal. Ampliamos a transparência e isso é muito importante. A lei é de 2011. Não estava funcionando ainda em boa parte dos lugares. Estamos ainda em um momento de aprimorar a comunicação, mas foi importantíssimo criar, junto a Ouvidoria, esse espaço de acesso à Lei da Informação.
ConJur — A demora na tramitação dos processos é uma reclamação em praticamente todas as ouvidorias do Poder Judiciário. Há algum consenso com relação à maneira de se lidar com essa questão?
Andréa Pachá — É importante ouvir, ainda que não seja a demanda que esperávamos, pois há uniformidade, em quase todos os tribunais, quanto à insatisfação com o funcionamento do Poder Judiciário. Passados praticamente 10 anos após a instalação do CNJ, temos de enfrentar o mesmo problema, agravado pelo volume, da massificação e da judicialização. Ou seja, continuamos enfrentando dificuldades de gestão. O que percebo, pela natureza das demandas e a dificuldade de responder a sociedade com a rapidez que ela quer e precisa, é que precisamos buscar outros mecanismos de gestão, que não passem pela massificação do processo. Não há ainda consenso [sobre o que fazer]. Vivemos um momento novo. Em muitas esferas, fala-se da solução de conflitos por meios alternativos ao Poder Judiciário. Ainda assim, o que parece, pelo volume da demanda e o grau de insatisfação, é que o uso do Judiciário não está sendo feito por quem mais precisa do Poder Judiciário, pois continuamos a ver o problema grave da dificuldade de acesso à Justiça por quem mais precisa. Então, é como se o Poder Judiciário estivesse sobrecarregado de uma demanda que não precisaria chegar aos tribunais para ter solução. As agências reguladoras, se funcionassem adequadamente, poupariam um volume enorme de demandas relacionadas à telefonia, iluminação pública e serviço bancário, por exemplo. Então, parece que essa deficiência no funcionamento regular das outras esferas de solução de conflitos faz desaguar no Judiciário uma expectativa que, com a estrutura atual, não temos condições de responder.
ConJur — Falta comprometimento das esferas administrativas para atender ao cidadão?
Andréa Pachá — Temos buscado, junto às empresas que são as grandes demandadas e demandantes, alternativas para resolver esse excesso de processos, mas isso é algo muito difícil. Os números da Ouvidoria mostram o tamanho da insatisfação com a lentidão.
ConJur — Como a Ouvidoria tem respondido às demandas sobre morosidade?
Andréa Pachá — É importante que aquele que vem à Ouvidora não saia com a sensação de que nada pode ser feito. Esse não é canal de execução, mas um importante meio de informação. Muitas vezes, as pessoas não sabem como funciona o Judiciário no cotidiano. É claro: quem tem um processo na Justiça quer logo a solução. É natural isso. Então, trabalhamos com a ansiedade individual e natural de cada cidadão. Com relação ao funcionamento de um cartório, por exemplo, os processos são milhares e é preciso haver uma ordem. Então, esclarecemos essas fases de tramitação. Trabalhamos também sempre para melhorar o atendimento, pois procuramos não apenas dar a informação acerca daquilo que não está funcionando, mas também ajudamos a resolver. Os dados são ferramentas úteis. Por meio deles é possível identificar que determinada serventia, temporariamente, pode estar com deficiência de servidores. Quando encaminho esses dados para a Corregedoria e para a Presidência, a administração tem uma belíssima ferramenta de gestão para poder combater os problemas os mais graves.
ConJur — Algum órgão interno no TJ já sofreu intervenção por conta das reclamações recebidas pela Ouvidoria?
Andréa Pachá — Já ocorreram ingerências junto ao Banco do Brasil, pois havia muitas reclamações com relação aos alvarás e à dificuldade para receber. Também houve um trabalho importante junto à Ouvidoria da OAB. Não adianta trabalharmos como se estivéssemos em campos antagônicos.
ConJur — Em que estágio está o Judiciário fluminense em relação à Lei de Acesso à Informação?
Andréa Pachá — A lei foi implantada há quase um ano, por meio de resolução do Órgão Especial. Hoje, quando o cidadão entra no site do tribunal, encontra o link com as informações. No entanto, ainda estamos trabalhando para melhorar a visibilidade das informações existentes. Talvez esse seja um dos maiores problemas de quase todo o setor público. A Lei de Acesso à Informação garante a qualquer cidadão fazer o controle dos órgãos públicos, por meio do acesso às informações relacionadas ao orçamento, ao pessoal, enfim, de tudo. Na Justiça não há nada sigiloso, exceto aquilo que diga respeito à vida pessoal dos servidores e dos magistrados. Quando começamos a processar as informações — e são muitas, pois o Judiciário é um mundo —, notamos que os pedidos de informações acabam se concentrando em concursos, ou seja, pessoas que querem saber o seu lugar na classificação. Acho que ainda não dimensionaram essa lei para o exercício da cidadania. Quando sabemos como as instituições funcionam, temos condição de participar de maneira mais efetiva, até propondo alternativas para melhorar a vida institucional.
ConJur — Ao longo dos anos, uma série de instrumentos foram criados para dar celeridade às ações judiciais. O que falta?
Andréa Pachá — Sou juíza há 20 anos. Nesse tempo, pude acompanhar algumas transformações do Poder Judiciário. Quando ingressei na magistratura, o juiz mal participava de administração. Essa atividade era completamente alheia à função jurisdicional. Mas a demanda começou a crescer. E hoje faz parte da formação do magistrado, até pelo que a Constituição lhe impôs, que seja ele também um administrador. Essa foi uma mudança muito grande. O número de processos que chegava à Justiça era muito pequeno. Hoje, falamos em 90 milhões de processos, um número surreal se imaginarmos que a cada dois brasileiros, um tem ação na Justiça. Essa demanda não é real, especialmente quando a confrontamos com os dados do relatório Justiça em Números, do CNJ. Cruzando esses dados, concluímos que grande parte da demanda, mais de 80% dela está concentrada em quatro setores: no próprio Estado, na telefonia, na eletricidade e no setor bancário. Então, temos uma mega estrutura judiciária para atendermos uma demanda concentrada e que comporta soluções de conflito fora da Justiça. Quando isso começar a funcionar, diminuiremos o volume de trabalho da Justiça e conseguiremos garantir o acesso à Justiça para as questões que são fundamentais e que necessitam da atuação do Estado, como o Direito Criminal, o Direito de Família, ou seja, esses direitos que dizem respeito à afirmação da pessoa, ao indivíduo e ao social, e pelos quais trabalhamos ainda forma tímida. As ações coletivas também ainda são usadas timidamente. Mecanismos, então, nós temos. O que talvez precisemos é mudar a cultura de judicialização da vida. Hoje, tudo vira um conflito e vai para a Justiça. Há uma história que contamos como sendo uma piada, mas que é real e lamentável: em uma festa infantil, em um playground, duas crianças brigavam para ver quem ocupava um lugar na fila do pula-pula. E uma disse para a outra: “se você passar na minha frente, eu te processo”. Isso é contado como piada, mas é um fato. As pessoas estão acostumando a lidar com os conflitos naturais da vida como se tivesse que haver uma intervenção estatal que não é necessária. Então, mudar essa cultura é um trabalho lento, mas fundamental.
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