Observatório Constitucional

Supremo pode deixar de aplicar lei
sem fazer jurisdição constitucional?

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25 de outubro de 2014, 7h00

Spacca
Compreendida stricto sensu, a hermenêutica como a discutimos hoje é um produto da modernidade, ou seja, nasce com a revolução provocada pelo nascimento do sujeito. A crise que atravessa a hermenêutica jurídica possui uma relação direta com a discussão acerca da crise do conhecimento e do problema da fundamentação, própria do início do século XX. Veja-se que as várias tentativas de estabelecer regras ou cânones para o processo interpretativo a partir do predomínio da objetividade ou da subjetividade ou, até mesmo, de conjugar a subjetividade do intérprete com a objetividade do texto, não resistiram às teses da viragem ontológico-linguística, superadoras do esquema sujeito-objeto, sobre a qual escrevo amiúde em Hermenêutica Jurídica e(m) crise.

O positivismo — compreendido lato sensu (ou seja, as diversas facetas do positivismo) – não conseguiu aceitar a viragem interpretativa ocorrida na filosofia do direito e suas consequências no plano da doutrina e da jurisprudência. Daí que, quando falamos em positivismos e pós-positivismos, torna-se necessário, já de início, deixar claro o “lugar da fala”, isto é, de onde estamos falando. Com efeito, de há muito minhas críticas são dirigidas primordialmente ao positivismo normativista pós-kelseniano, isto é, ao positivismo que admite discricionariedades (ou decisionismos e protagonismos judiciais). Isto porque considero, no âmbito destas reflexões e em obras como Verdade e Consenso, superado o velho positivismo exegético. Ou seja, não é (mais) necessário dizer que o “juiz não é a boca da lei”, etc., enfim, podemos ser poupados, nesta quadra da história, dessas “descobertas da pólvora”. Até porque essa “descoberta” também não pode implicar um império de decisões solipsistas, das quais são exemplos as posturas caudatárias das jurisprudências de interesses e de valores com as suas ponderações (“importadas” de forma equivocada da Alemanha e graças as quais o juiz acaba se vinculando o juiz aos princípios que ele mesmo elegeu prima facie), os diversos axiologismos, o realismo jurídico (que não passa de um “positivismo fático”) etc.

Como bem diz Garcia Amado, o velho positivismo e as posturas axiologistas (sedizentes pós-positivistas) em geral (onde se enquadra o neoconstitucionalismo, principalmente o “à brasileira”) se tocam: no primeiro, acredita-se no legislador racional como onipotente; no segundo caso, acredita no juiz racional-onipotente.

É preciso, assim, estar alerta em terrae brasilis. Em tempos de (alegada) indeterminação do direito e de proliferação de teses que se advogam pós-positivistas, corremos o risco de fragilizar a autonomia do direito (ou seu acentuado grau de autonomia conquistado nesta quadra da história). É preciso estar atento porque, no mais das vezes, o discurso que se afigura com a aparência do novo, carrega consigo o código genético do velho, reafirmando, no fundo, aquilo que alhures nomeei de “vitória de Pirro” do positivismo jurídico.

Por certo, a principal preocupação da teoria do direito deve ser o controle da interpretação a partir de lugares que se afastem da “consciência”, missão agravada pelo crescimento da jurisdição em relação à legislação. Nesse sentido, não se pode olvidar que o novo texto constitucional estabeleceu um novo paradigma. Vejamos como fica essa questão a partir de um exemplo privilegiado como o artigo 212 do CPP.

Com efeito, parece não haver dúvida de que um Juiz imparcial e um Promotor de Justiça independente são os requisitos indispensáveis à implantação de um sistema processual-penal democrático. O corolário disto deveria ser a plena aplicação do sistema acusatório, sepultando-se, de uma vez por todas, o inquisitorialismo do velho Código de Processo Penal, ainda assentado no mito da verdade real. Frise-se, de todo modo, que tanto o “sistema” inquisitório como o “sistema” instrumentalista (do campo processual civil) têm, no protagonismo judicial e na discricionariedade (livre convencimento), o seu “elo”, isto é, o seu DNA. Com isso, a discussão relacionada ao art. 212 do CPP possui um elevado grau de transcendência.

Para ficar dentro do exemplo, é preciso compreender que o sistema acusatório constitui uma conquista da democracia. O inquisitório deveria já estar revogado. Ora, ao juiz cabe julgar; ao promotor cabe deduzir a pretensão acusatória (se for o caso de fazê-lo) e produzir provas, detendo, para tanto, parcela da soberania estatal (nesse sentido, diferencia-se do advogado, porque não está vinculado à pretensão acusatória); ao advogado, cabe efetuar a defesa e garantir os direitos do réu; ao legislador, cabe produzir legislação adequada ao sistema jurídico.

Pois bem. Em face do novo artigo 212 do CPP, pergunta-se: de que adianta avançar no texto legal, se as práticas judiciárias continuam sendo as mesmas de antes da alteração? Explicando: a Lei 11.690/2008 introduziu no art. 212 do CPP importante inovação que pode(ria) colocar o Processo Penal brasileiro nos trilhos de um sistema acusatório – o que, aliás, é um princípio (no sentido hermenêutico da palavra) que compõe nossa história institucional desde 1988. Todavia, a velha tradição insiste na prevalência do modelo presidencial-inquisitório. Neste caso, a questão toma ares de dramaticidade uma vez que, dessa vez, a alteração não se deu pela via do Direito Constitucional, mas, sim, incluída pelo legislador ordinário. Dito de outro modo, boa parte da doutrina e jurisprudência estão operando no sentido contrário do apontado pela própria legislação.

Os primeiros sinais de “revolta” contra (ess)a semântica vieram da doutrina de Guilherme Nucci (Código de Processo Penal Comentado. SP, RT, p. 479/480) e Luis Flávio Gomes, Rogerio Sanches Cunha e Ronaldo Pinto (Comentários às Reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito. São Paulo: RT, p. 302), logo citada pelo STJ no HC 121215/DF DJ 22/02/2010. Para a referida doutrina, o novo texto nada trouxe de novo. Ou seja, é o novo que não produz nada de novo…

Logo depois, também o Supremo Tribunal Federal aderiu à armada e, sem convocar a jurisdição constitucional, fulminou a semântica do artigo 212, conforme podemos perceber do julgamento dos HC’ 103.525, 114789, 114.787, 114512 e RHC 122467 e 199439. E essa é a posição dominante neste momento. Onde reside a perplexidade? Vejamos: o artigo 212 diz que

“as perguntas serão formuladas pelas partes, diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.”

No parágrafo único fica claro que “sobre pontos não esclarecidos, é lícito ao magistrado complementar a inquirição”.

Consequentemente, parece evidente que, respeitados os limites semânticos (chamo a isso, a partir da hermenêutica, de “mínimo é”) do que quer dizer cada expressão jurídica posta pelo legislador, houve uma alteração substancial no modo de produção da prova testemunhal. Repito: isso até nem decorre somente do “texto como texto”, mas de toda a história institucional que o envolve, marcada pela opção do constituinte pelo modelo acusatório (embora autores como Nucci insistam em dizer que há dois modelos: o inquisitório do CPP e o acusatório da CF; daí a minha pergunta: e o da Constituição não prevalece?). Peço desculpas pela minha insistência em invocar essa coisa chamada “Constituição”.

Por isso, é extremamente preocupante que setores da comunidade jurídica, por vezes tão arraigados aos textos legais, neste caso específico ignorem até mesmo a semanticidade mínima que sustenta a alteração. Pergunto, então: em nome de que e com base em que é possível ignorar ou “passar por cima” de uma inovação legislativa aprovada democraticamente? É possível fazer isso sem lançar mão da jurisdição constitucional?

Parece que, no Brasil, compreendemos de forma inadequada o sentido da produção democrática do direito e o papel da jurisdição constitucional. Tenho ouvido em palestras e seminários que “hoje possuímos dois tipos de juízes: aquele que se ‘apega’ à letra fria (sic) da lei” (e esse deve “desaparecer”, segundo alguns juristas) e “aquele que julga conforme os princípios” (esse é o juiz que traduziria os “valores” – sic – da sociedade, que estariam “por baixo” da “letra fria da lei”). Indago: cumprir princípios significa descumprir a lei? Cumprir a lei significa descumprir princípios? Existem regras (leis ou dispositivos legais) desindexados de princípios? Cumprir a “letra da lei” é dar mostras de positivismo? Mas, o que é ser um positivista?[1]

Examinando o (novo) artigo 212 do CPP, chega-se a conclusão de que se está diante simplesmente do dever – inerente ao Estado Democrático de Direito – de cumprir a lei (constitucional), pois este, como se sabe, é um dos preços impostos pelo direito e, sobretudo, pela democracia! E, permitam-me insistir: por vezes, cumprir a “letra da lei” (sic) é um avanço considerável. Lutamos tanto pela democracia e por leis mais democráticas…! Quando elas são aprovadas — e passarem pelo filtro das seis hipóteses de que falo na sequência — aplicá-la é nosso dever. Levemos o texto jurídico a sério, pois! Prova disso que Friedrich Müller, o teorizador do pós-positivismo e quem primeiramente sistematizou com profundidade a diferenciação entre texto normativo e norma decisória, sempre afirmou que o resultado da interpretação deve sempre ser comportável pelo próprio texto. Ou seja, a norma deve caber no programa normativo que a originou.

Portanto, não devemos confundir “alhos” com “bugalhos”. Obedecer “à risca o texto da lei” democraticamente construído (já superada a questão da distinção entre direito e moral) não tem nada a ver com a “exegese” à moda antiga (positivismo primitivo). No primeiro caso, a moral ficava de fora; agora, no Estado Democrático de Direito, ela é co-originária. Portanto, estamos falando, hoje, de uma outra legalidade, uma legalidade constituída a partir dos princípios que são o marco da história institucional do direito; uma legalidade, enfim, que se forma no horizonte daquilo que foi, prospectivamente, estabelecido pelo texto constitucional (não esqueçamos que o direito deve ser visto a partir da revolução copernicana que o atravessou depois do segundo pós-guerra). Afinal — e me recordo aqui de Elias Dias —, não seríamos capazes, nesta quadra da história, de admitir uma legalidade inconstitucional. Isso deveria ser evidente.

Repito: “cumprir a letra [sic] da lei” significa, sim, um avanço considerável. A isso, deve-se agregar a seguinte conseqüência: é positivista tanto aquele que diz que texto e norma (ou vigência e validade) são a mesma coisa, como aquele que diz que “texto e norma estão descolados” (no caso, as posturas axiologistas, realistas, pragmaticistas, etc.). Para ser mais simples: Kelsen, Hart e Ross foram todos positivistas, cada um ao seu modo. Do mesmo modo que os neoconstitucionalistas, que acreditam na discricionariedade e na ponderação, também o são. E disso todos sabemos as conseqüências. Ou seja: apegar-se à letra da lei pode ser uma atitude positivista ou pode não ser. Do mesmo modo, não apegar-se à letra da lei pode caracterizar uma atitude positivista ou antipositivista. Por vezes, “trabalhar” com princípios (lembremos do pamprincipiologismo) pode representar uma atitude (deveras) positivista. Utilizar os princípios para contornar a Constituição ou ignorar dispositivos legais — sem lançar mão da jurisdição constitucional (difusa ou concentrada) — é uma forma de prestigiar a irracionalidade constante no oitavo capítulo da TPD de Kelsen. Não é desse modo, pois, que escapamos do positivismo (sobre o que é positivismo, ver o meu Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, RT, 2014). O caso do artigo 212 é, pois, sintomático. Invocando um princípio geral do direito (veja-se, não é um princípio constitucional), o STF deixou de cumprir uma lei produzida democraticamente.

Em suma: não podemos cumprir a lei só quando nos interessa. Explicitando isso de outra maneira, quero dizer que o acentuado grau de autonomia alcançado pelo direito e o respeito à produção democrática das normas faz com que se possa afirmar que o Poder Judiciário somente pode deixar de aplicar uma lei ou dispositivo de lei nas seguintes hipóteses: a) quando se tratar de inconstitucionalidade; b) quando for o caso de aplicação dos critérios de resolução de antinomias; c) quando aplicar a interpretação conforme à Constituição (verfassungskonforme Auslegung); d) quando aplicar a nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung); e) quando for o caso de declaração de inconstitucionalidade com redução de texto; f) quando for o caso de deixar de aplicar uma regra em face de um princípio, entendidos estes não como standards retóricos ou enunciados performativos.

Portanto, deve haver um cuidado com o manejo da teoria do direito e da hermenêutica jurídica. Olhando para as decisões do STF antes elencadas, é de se pensar em que momento o direito legislado deve ser obedecido e quais as razões pelas quais fica tão fácil afastar até mesmo — quando interessa — a assim denominada “literalidade da lei”, mormente quando isso é feito com base em princípios ultrapassados como o de que “não há nulidade sem prejuízo” (sei que, em francês, é bem charmoso: pas de nullité sans grief), axioma do século XIX incorporado pelo nosso velho CPP e que hoje deveria ser olhado com os olhos garantidores e não inquisitoriais. Como exigir a comprovação do prejuízo dos réus que foram condenados exatamente porque foi o juiz quem fez a prova, negando validade à – desculpem a insistência – literalidade do artigo 212 do CPP. Por si só uma pena de mais de oito anos (caso do HC 103.525) já não é a prova do prejuízo? Não se torna vazio de semanticidade a alegação de um princípio (sic) como o de que não há nulidade sem prejuízo? Mas, não houve prejuízo exatamente pela negação de um procedimento? Isso já não basta? Não cumprir uma lei já não é um prejuízo?

Neste ponto, aliás, uma reflexão se impõe, para evitar mal entendidos: nem há que se falar em “literalidade da lei”. Explico: desde o início do século XX a filosofia da linguagem e o neopositivismo lógico do círculo de Viena (que está na origem de teóricos do direito como Hans Kelsen), já havia apontado para o problema da polissemia das palavras. Isso nos leva a uma outra questão: o mínimo é, isto é, o conteúdo minimamente compreensível de um texto em uma dada tradição, é algo que está à disposição do intérprete? Se as palavras são polissêmicas; se não há a possibilidade de cobrir completamente o sentido das afirmações contidas em um texto, quando é que se pode dizer que estamos diante de uma interpretação à qual se poderia epitetar de “literal”? Esse conteúdo minimamente compreensível é muito mais uma questão da compreensão e da inserção do intérprete no mundo, do que uma característica, por assim dizer, natural dos textos jurídicos. Numa palavra final, não podemos admitir, que ainda nessa quadra da história, sejamos levados por argumentos que afastam o conteúdo de uma lei – democraticamente legitimada – com base numa suposta “superação” desse mínimo é do texto legal, como se aplicar uma sinonímia fosse “uma coisa feia”.

Em outras palavras e repetindo o que digo em Verdade e Consenso: o texto sempre já traz um compromisso, que é a compreensão que antecipa esse sentido e que é o regulador de qualquer enunciado que façamos a partir daquele texto (quem quer compreender um texto deve deixar que este lhe diga algo, dirá Gadamer). Trata‑se de “um mínimo é” existente em cada texto, princípio que pode ser retirado da applicatio. A questão, portanto, será: o que desse texto — desse “mínimo é” do fenômeno levado à representação pela linguagem —, que, confrontado com a tradição, integrará/conformará as possibilidades de atribuição do sentido da norma que se seguirá? Por isso, a escolha de um nível (ou grau) apropriado de generalização não pode ser arbitrário, como, aliás, não pode ser arbitrária a interpretação em nenhum momento. Insisto: interpretação e relativismo são coisas incompatíveis. Ainda: o sentido de um texto compreendido segundo uma dada tradição e a ambiguidade inerente aos textos são conceitos intercambiáveis que não são esclarecidos numa dimensão simplesmente abstrata de análise dos signos que compõem um enunciado. Tais questões sempre remetem a um plano de profundidade que carrega consigo o contexto no qual a enunciação tem sua origem. Esse é o problema hermenêutico que devemos enfrentar! Problema esse que, argumentos despistadores como esse só fazem esconder e, o que é mais grave, com riscos de macular o pacto democrático

Como se viu, é necessário compreender os limites e os compromissos hermenêuticos que exsurgem do paradigma do Estado Democrático de Direito. O positivismo é bem mais complexo do que a antiga discussão “lei versus direito”… E a jurisdição constitucional é uma garantia para que, tanto as leis inconstitucionais não sejam validadas, quanto às que forem constitucionais sejam efetivamente aplicadas. Simples assim!

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).


[1] Como única nota deste texto, antes que me acusem de ser positivista, permito-me remeter o leitor para vários livros ou colunas aqui do ConJur em que explicito isso nos mínimos detalhes. Se fosse colocar no twitter, seria: #aplicar a “letra da lei” não é, necessariamente, uma atitude positivista.

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