Diário de Classe

Acadêmico de Direito de protagonizar
sua própria formação (parte 2)

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25 de outubro de 2014, 7h01

Spacca
Na última oportunidade em que escrevi neste Diário de Classe, lancei algumas considerações genéricas sobre o problema da formação do jurista enfatizando que a boa formação é um dever do acadêmico para consigo mesmo. Por óbvio, e acredito que isso tenha ficado claro para a maioria dos meus atentos leitores, essa afirmação não ameniza a necessidade de postularmos melhoras estruturais e institucionais para o ensino do Direito. Muito menos justifica eventuais deficiências que, em muitos casos, acometem as gestões específicas de cada um dos milhares de cursos de Direito existentes neste país.

De todo modo, penso que o falatório sobre os problemas estruturais e institucionais já está mais do que decantado em nosso espaço público. Por outro lado, acredito que a lembrança acerca da responsabilidade do acadêmico, com relação à sua própria formação, seja um tema frequentemente esquecido e nebuloso. Recentemente, em artigo publicado na coluna Senso Incomum, Lenio Streck ofereceu uma leitura sobre o protótipo de um acadêmico ideal, ressaltando a necessidade de o estudante assumir o protagonismo de sua própria formação.

O texto de Lenio foi também oportuno porque, além de adentrar nesses aspectos que ressaltei acima, atacou também alguns pontos sensíveis que levam a alguns dos dilemas ligados ao clima de suspeita em relação à qualidade do ensino jurídico praticado atualmente no Brasil. Essas reflexões foram lançadas no mesmo dia em que esta ConJur repercutiu as discussões que aconteceram na XXII Conferência dos Advogados, que aconteceu no Rio de Janeiro. Segundo a notícia, os debatedores da última terça-feira (21/10), que abordaram o tema ensino jurídico, afirmaram univocamente que, nas duas últimas décadas, a qualidade do ensino jurídico caiu na mesma proporção em que o número de faculdades aumentou. Em 18 anos, esse aumento atingiu a impressionante marca de 700% (em 1.996, tínhamos no Brasil 160 faculdades de Direito. Em 2014, temos 1.284).

Claro que esse aumento significativo no número de faculdades tem causas diversas. Nem todas elas são, necessariamente, negativas. O aumento no número de faculdades pode significar, por exemplo, que mais brasileiros estão chegando ao ensino superior e buscando maior capacitação profissional. Isso pode ser um indicativo, em algum grau, da diminuição da desigualdade histórica vivenciada ao longo de nossa história. De fato, o aumento em si não é o problema. O que causa espanto é a dimensão desse aumento. Um país de dimensões territoriais e populacionais próximas a nossa e, sabidamente, menos desigual, como é o caso dos EUA possuem em torno de 210 faculdades de Direito. E, em face do que foi noticiado nos últimos anos, a tendência por lá é de redução no número de faculdades, e não de aumento. Nessa medida, porque nós, brasileiros, continuamos a assistir um aumento contínuo no número de nossas faculdades de Direito? Em uma notícia de 2010, o Conselho Federal da OAB dava conta de que o Brasil, isoladamente, possuía um número maior de cursos de Direito do que China, Estados Unidos, Europa e África juntos. Naquele ano, tínhamos entre nós 1.240 cursos. Em um espaço de apenas quatro anos, mais 44 cursos foram autorizados a funcionar.

É cediço que boa parte desses cursos estão nas mãos da iniciativa privada. Assim, parece-me insofismável a conclusão de que abrir uma faculdade de Direito continua sendo um bom negócio. Por mais que cresça a oferta, a demanda não diminui. E o mais impressionante é que, nos termos dos últimos sensos da educação superior levados a cabo pelo próprio Ministério da Educação, em números absolutos, o curso de Direito só possui menos alunos do que o curso de Administração. Note-se, dentre todos os cursos de ensino superior, o Direito é o segundo mais procurado do país.

O curso de Direito, de fato, é uma ótima “fabrica de sonhos”. Ele pode representar a porta de entrada para os mais desejados cargos públicos da República. E, no Brasil, há um grande contingente de pessoas que sonham em ser funcionários públicos para desfrutar das benesses que um assentamento sob das asas do Estado propicia. De toda sorte, é certamente muito mais difícil conseguir manter um padrão de qualidade em um contexto tão numeroso de cursos e alunos. Estes últimos, em todo o país, já se aproximam dos 800 mil. Toda essa massificação deve mesmo preocupar. E mais uma vez, setores ligados à OAB estão novamente chamando atenção para a baixa qualidade dos cursos.

É preciso ressaltar, contudo, que a Ordem tem muita responsabilidade por esse estado d’arte. Simplesmente porque, mesmo sabedora dos problemas enfrentados pelo crescimento descontrolado do número de cursos, pouco fez para tentar colocar freios nesse processo. De fato, em tempos de ditadura do politicamente correto, ninguém parece querer bancar temas que possam soar impopulares.

Em contrapartida, sobra agora para todos nós que lidamos cotidianamente com a educação jurídica, o trabalho de Hércules que é enfrentar essa Hidra.

As dificuldades de se lidar com a massificação do ensino do Direito começa com aquilo que é o sintoma dos tempos: em uma sociedade de consumo, a educação superior não escapa da mesma lógica que preside boa parte das relações humanas. O exemplar mais comum em um curso de Direito – principalmente, mas não tão somente, nas faculdades privadas – é a figura do acadêmico-consumidor. Aquele que está sempre pronto para defender os “seus direitos” e povoam as salas de coordenação de cursos com os pedidos mais mirabolantes possíveis.

Sempre me impressiono muito com isso porque, essa “luta pelo Direito” (que nada tem haver com Ihering, veja bem, mas, não raro, alguém, que leu apenas a capa do livro provavelmente, chama-o a colação para defender o seu direito… de consumidor!), às vezes acontece visando algo que é ruim para a própria formação.

Um tema que serve de exemplo para isso que acabo de afirmar e que, volta emeia, volta à baila é o da (não) obrigatoriedade dos chamados trabalhos de curso (TC) ou, à moda antiga, trabalhos de conclusão de curso (TCC). Há casos recentes em que acadêmicos que ficaram retidos no final do curso porque não foram aprovados ou até mesmo porque não entregaram a monografia, buscaram o judiciário por meio de mandado de segurança exigindo a entrega da diploma por entender que o tecido normativo que cobre a matéria não prevê essa obrigatoriedade e não poderia a autonomia universitária autorizar uma tal imposição. Levando tal raciocínio às últimas consequências, é um direito do candidato ao bacharelado em Direito receber o título de bacharel sem demonstrar que está apto a ser… bacharel. Fantástico, pois não?!

No mais, parece-me fora de dúvidas que a experiência da monografia é fundamental para a boa formação do jurista. Mas, nesse momento, o acadêmico-consumidor prefere a tranquilidade do paternalismo da “lei” (embora, a meu ver, não exista nenhum tipo de dúvida quanto à obrigatoriedade do TC, em face do que prescreve a Resolução do Conselho Nacional de Educação número 09/2004) do que assumir as dores de levar adiante um trabalho de pesquisa. Uma sociedade de consumo, onde todos possuem muitos direitos, mas praticamente nenhum dever, observamos um fenômeno curioso que é o prolongamento da infância e da adolescência vida adulta adentro.

Esse aspecto pode ser observado no modo como uma parcela significativa de acadêmicos tratam o trabalho de curso. Ainda hoje, mesmo com todos os recursos tecnológicos disponíveis e conhecidos para descobrir cópias em trabalhos, é comum encontrarmos plágios. Inclusive totais. Também não é uma novidade encontrar nos murais das universidades, pessoas que oferecem o “serviço” de confeccionar o trabalho para outrem. Algo customizado: o aluno-cliente escolhe o tema e pode até dar as diretrizes de argumentação. Por outro lado, é também comum aqueles casos em que, embora o acadêmico faça de próprio punho o trabalho, o faz apenas para efeito de “cumprimento de tabela”. E isso continua acontecendo por mais que as faculdades procurem criar mecanismos de controle das atividades ligadas às monografias. No final, a coisa acaba mesmo assumindo um ar completamente fake.

A tal massificação do curso produz um outro efeito interessante no âmbito das monografias: a standardização dos trabalhos. Assim, o TC standard é aquele que começa com um primeiro capítulo sobre a “evolução histórica”[1] (sic) do instituto analisado. Depois segue-se uma cópia da estrutura – às vezes literal – de um manual disponível sobre o tema analisado. Assim, se o individuo resolve fazer uma monografia, por exemplo, sobre pensão alimentícia (e, no mais das vezes, os temas são mesmo desse estilo) ele, necessariamente, iniciará o seu trabalho com um capítulo sobre a evolução histórica do Direito de Família. Na sequência, o texto apresentará um elemento padrão, quase que a reproduzir o que a literatura manualesca escreve sobre o tema. Problema a ser enfrentado? Não existe. Hipóteses a serem testadas? Menos ainda. Raramente encontram-se citações de artigos científicos; raramente encontram-se discussões verdadeiramente contemporâneas sobre temas verdadeiramente contemporâneos.

Registre-se: é evidente que existem oásis de excelência; trabalhos que se singularizam em meio à essa mediocridade institucionalizada. Mas, ao final, o que predomina é a standardização. E isso não é apenas a demonstração de que a instituição de ensino ou o próprio curso não cuide adequadamente das questões ligadas à monografia. Em muitos casos, o próprio acadêmico abandonou o seu trabalho, deixando como que em stand by aquele seu dever básico para com a própria formação.

Em suma, no contexto dessa inequívoca massificação do curso de Direito, não fiquemos todos “esperando Godot”. Vale dizer, não devemos aguardar que a OAB, o MEC ou qualquer outra instituição tome alguma atitude para melhorar essa situação que já há algum tempo vem sendo anunciada. Eles, em boa parte, levaram-nos até ela. Portanto, minha “solução” para os problemas da massificação do curso de Direito e da queda na qualidade do ensino jurídico continua passando pela mesma conclusão do texto que mencionei no início desta coluna: devemos nos manter vigilantes quanto à possibilidade de oxidação dos nossos próprios talentos. A formação é um dever, acima de tudo, pessoal. E isso não pode ser alienado.

Por fim, apenas como uma mensagem para aqueles que pensam compreender a realidade melhor do que todos os demais, antecipo que não tive a pretensão de abarcar a totalidade do problema nos 15 mil toques de que disponho para redigir esta coluna. Aprendi com Martin Heidegger e Ernildo Stein que, enquanto seres humanos, somos aplacados por nossa facticidade e finitude. Por esses tortuosos mares, lanço a minha nau. Ou, como dizia Guimarães Rosa pela boca de Riobaldo, o nosso filósofo do Sertão: “existe homem humano: travessia”.


[1] Em uma outra oportunidade, pretendo escrever uma coluna para dizer o por quê de um capítulo sobre o “histórico” (sic) do instituto analisado na pesquisa não ser um elemento essencial da monografia jurídica. Hoje, uma analise pormenorizada dessa importante questão escapa aos limites daquilo que pretendi aqui analisar.

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