Senso Incomum

O protótipo do estudante de direito ideal e o “fator olheiras”

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23 de outubro de 2014, 7h00

Spacca
caricatura lenio luis streck 02 [Spacca]O estudante de direito Edilson Silva do Nascimento (Faculdades Integradas de Aracruz-ES), do segundo período, mandou-me e-mail, instando-me a escrever sobre como seria o “acadêmico de direito ideal” ou o que seria um ensino jurídico adequado nestes tempos bicudos de pauperização do conhecimento. Contou que muitos de seus colegas preferem brincar no facebook ou no smartfone em vez de prestarem atenção ao que o professor fala. O que fazer? E como deve ser uma aula, pergunta. Os alunos devem ser submetidos a um regime tal qual o contado no livro de Scott Turrow, O Primeiro Ano, em que relata como tinha de estudar e pesquisar?

Quanto à essa pós-modernidade, digo que, em minhas aulas (mestrado e doutorado) não admito — a não ser sob meu comando — a utilização, concomitante às minhas falas e aos seminários dos alunos, o uso dos instrumentos pós-chatos. Isso é para início de conversa. Se não é por outra coisa, trata-se de respeito ao espaço da sala de aula. Quer telefonar ou ver msn? Sai da aula.

Mas este é apenas um dos problemas. O ensino jurídico não vai mal porque os alunos ficam grudados no feicibuqui. Também por isso. Mas vai mal porque não há pedagogia sem dor. Não há intelectual bronzeado (é uma metáfora). Nem intelectuais-periguetes (os e as). No Direito, “pireguetear” não é preciso (apesar da paráfrase, permaneço aqui no nível apofântico — e a palavra “preciso” deve ser entendida em sua ambiguidade). E, fundamentalmente, não há a mínima possibilidade de avançarmos na melhoria do ensino jurídico enquanto a literatura utilizada for composta por um produto pret-à-porter, pret-à-parler e pret-à-penser.

Se a medicina for ensinada com livros “facilitados” como no direito, a ciência hipocrática vai morro abaixo. Espero, sinceramente, que os esculápios terra brasiliensis tenham uma formação melhor na graduação que nossos bacharéis em direito. Para exercitar minha LEER, pergunto (de novo): quem se operaria com um esculápio que tivesse escrito um livro com o título de “Operação cardíaca facilitada” ou “A fibrilação atrial em palavras cruzadas”? Ou quem se submeteria a tratamento com esculápios que tivessem estudado com professores que utilizaram livros tipo resumo-do-resumo?

Rafael Tomaz de Oliveira escreveu recentemente coluna (ler aqui) falando sobre o dilema dos livros mínimos que o aluno deve ler ou que o professor deve cobrar na faculdade de Direito.  Não vou, aqui, delinear os livros que deveriam ser utilizados. Mas, por favor: hoje há professores de direito civil que não conhecem a história do direito civil alemão ou o brasileiro… Já fiz testes sobre isso, perguntando aquando surgiu — stricto sensu — o direito de propriedade em terrae brasilis. Aliás: o leitor sabe? E qual a diferença entre o tratamento da posse e da propriedade no século XIX em relação ao Código de 1916? No que isso influenciou a questão da terra?

Os alunos sabem como funcionava o controle de constitucionalidade no Império? Os alunos leram a Teoria Pura do Direito? Sabem que Kelsen não separou o direito da moral? Se seu professor diz que Kelsen separou o direito da moral, fuja enquanto é tempo. Se o seu professor de Introdução ou filosofia do direito não sabe o que é neopositivismo lógico e sua importância para a construção da TPD, tome o mesmo rumo.

Se o seu professor de processo penal acha que a livre apreciação da prova é “assim mesmo” por ser uma fatalidade ou que o tal princípio (sic) da verdade real existe mesmo ou o seu professor de processo civil não sabe quem foi Büllow… (e sua relação com as escolas instrumentalistas) é porque você deve estar cursando outra coisa que não o “direito”. Talvez administração de empresas ou outra coisa.

Seu professor de direito do trabalho trabalha o “principio da primazia da realidade”? Ele não sabe que o socialismo processual acabou há mais de cem anos?  Procure asilo na primeira embaixada (sugiro a embaixada da RECHD – República Epistêmica da Crítica Hermenêutica do Direito). E nem vou falar, aqui, da complexidade acerca do positivismo jurídico, incrivelmente simplificado nas salas de aula. É de chorar o que vem sendo ensinado sobre essa que é a mais importante temática do direito desde que o direito é direito positivo. E a tal “ponderação”? Palavra anêmica e vazia semanticamente… Do modo como vem sendo utilizada, não passa de uma fraude.

Isto só para começar a dizer para o aluno Edilson o que de mínimo um curso de Direito precisa propiciar ao aluno. O que falei é menos de um por cento. Assim como para estudar física, engenharia ou filosofia há um “kit” mínimo para começar, também no direito deveríamos fazer uma “cesta jurídico-epistêmico-básica”, algo como a garantia do mínimo existencial na cultura jurídica (MECJ). Em colunas próximas procurarei elaborar essa cesta básica.

De todo modo, o estudante ideal não deveria cursar tantas disciplinas. Muitas delas são absolutamente inúteis. Não é necessário oito ou dez semestres de direito civil. Estudar o(s) Código(s) — do modo como fazem — é mera técnica. O que o aluno deve saber é a matriz que sustenta o(s) Código(s) e a necessária matriz de interpretação da legislação. E assim por diante. Duvide desse negócio de “especialista em….”. Um jurista bem preparado — com estofo teórico — pega uma lei e faz um estudo sobre ela e dá um nó no neoespecialista.

Fico impressionado com os professores que aparecem na TV “explicando” obviedades que… estão escritas na(s) lei(s). Ora, ora. E precisa frequentar a faculdade para ter um professor lendo aquilo que ele mesmo escreveu — em uma linguagem tautológica — o que diz (n)a legislação? Mas, então, o que temos é um curso de legislação? Achei que deveríamos ter Faculdades de Direito e não meros cursinhos de leis (que repetem, pelas palavras dos professores, o que a lei diz e às vezes dela fazem uma vulgata por interesses subjetivo-ideológicos). Roberto Lyra Filho dizia: precisamos urgentemente criar faculdades… de Direito!

Por que frequentar uma disciplina onde o professor pega um resumo ou livro de facilitação para “descobrir” que agressão atual é a que está acontecendo? Ou que escalada é subir em alguma coisa? Ou discutir o assalto de Caio? Ou a solução para o problema dos gêmeos xipófagos? Ou ficar decorando verbetes (enunciados) provenientes de julgados extraídos ad hoc? Não há como aprender direito sem que os alunos leiam… livros. Sim, livros e não resumos de livros ou livros orelhados. O que se está fazendo hoje é um processo de violência simbólica, para recordar um famoso livro dos anos 80 chamado A Reprodução, de Bourdieu e Passeron. Direito não se aprende por jogral. E nem por decoreba.

Há vinte anos que, em vários artigos e livros, refiro um trabalho de um aluno de pós-graduação na Faculdade de Direito da USP, do longínquo ano de 1981 — sim, 1981 — , que já então denunciava, verbis:

“O ensino do Direito como está posto favorece o imobilismo de alunos e professores. No esforço de renovação, uns atingem o grau de doutrinadores e o prestígio da cadeira universitária. Os outros, além do mítico título de ‘doutor’, obtêm a habilitação profissional que lhes permite viver de um trabalho não braçal (white collar). A tarefa do ensino para o aluno é cumprida nestes termos: aprendido o abc do Processo e do Direito Civil, já está habilitado a viver de inventários e cobranças sem maior indagação. […]”

Diz ainda a pesquisa:

“É claro que este operário anônimo do Direito é necessário, mas por que deve ser inconsciente? […] Sua atividade passa a ser meramente formal, sem influência no processo de tomada de decisão e no planejamento.”

Mais: 

“O jurista formado por escolas, convém lembrar, não será apenas advogado: será também o juiz que fará parte, afinal de contas, de um dos poderes políticos do Estado. A alienação do jurista, deste modo, colabora também na supressão das garantias de direitos. É que o centro de equilíbrio social (ou de legitimação) é colocado na eficiência, não no bem do homem. Começa-se a falar em um bem comum que só existe nas estatísticas dos planejadores, mas que a pobreza dos centros urbanos desmente. E, em nome desse bem comum, alcançável pela eficiência, sacrificam-se alguns valores que talvez não fosse inútil preservar”.[1]

Pergunto: o que mudou de lá para cá?

De todo modo, eis algumas observações sobre o que é e como pode(ria) ser o ensino jurídico. Por exemplo:

a) reformular as grades curriculares, dando ênfase às disciplinas formativas e não às meramente informativas;

b) quando me refiro à formação, quero dizer que, inclusive nas cadeiras de processo, deve o aluno compreender os acessos filosóficos ao processo de formação da prova; e estudar os paradigmas filosóficos que estão por trás dos procedimentos;

c) disciplinas formativas — filosofia do direito, introdução, etc — devem ser ministradas por professores com formação na área e não como biqueiros (quebradores de galho), que chegam na aula dizendo: “regras é no tudo ou nada, princípios é na ponderação”, achando que sabe alguma coisa; pior é utilizar, em sala de aula, manuais que resumem Aristóteles em meia página;

d) as faculdades devem fazer um processo de seleção acerca de que tipo de bibliografia está sendo indicada pelo professor. Não estou aqui a pregar uma espécie de index sobre o que não deve ser lido; mas a coordenação ou os órgãos deliberativos do curso (colegiados de curso e núcleos docentes estruturantes) deveriam, no mínimo, estimular os professores das respectivas áreas a debater a literatura utilizada em aula. É comum, nos dias atuais, mencionar a falta de “espírito crítico” (sic) por parte dos alunos. Mas, cabe perguntar: como cobrar algum tipo de postura investigativa por parte do discente se, na maioria dos casos, os professores colocam-se passivamente diante dos conteúdos que existem na literatura standard sobre o direito? Deve haver, no mínimo, uma recomendação por parte dos órgãos deliberativos no sentido de serem evitados compêndios pequeno-gnosiológicos, resumos, resumões, plastificações, livros lato sensu “tipo” direito tal facilitado;

e) direito constitucional deve tomar maior espaço na formação, incluída no curriculum a correlação do direito constitucional com a jurisdição constitucional e com a teoria do Estado;

f) de sua parte, o acadêmico de direito precisa também operar um processo de autoanálise para colocar em questão o tipo de atitude por ele assumida com relação à própria formação. Nesse aspecto algumas questões são fundamentais:

f.1.) deve-se abandonar a postura do acadêmico-consumidor que se relaciona com a faculdade do mesmo modo que cuida de seus interesses nos supermercados ou no âmbito de uma mega store. Ora, a educação não é um bem de consumo. O que está em jogo aqui não é um produto estragado ou com mal funcionamento. É da própria formação que estamos falando.

f.2.) é preciso livrar-se das “muletas” utilizadas para apoiar algum tipo de deficiência na própria formação em algum elemento institucional. De se registrar: é claro que as demandas dos discentes por melhoras na infraestrutura do curso são salutares. Todavia, deficiências ou falhas institucionais não são motivos para, a priori, justificar gaps formativos. Exemplos: se na sua faculdade não existe pesquisa institucionalizada, procure um professor doutor que possa lhe orientar e busque financiamento de sua pesquisa em algum órgão de fomento à pesquisa; se sua faculdade não produz eventos científicos interessantes, tente viabilizá-los juntos aos órgãos de representação acadêmica (DA’s; CA’s, etc..). Não incentive showmícios pequeno-epistêmicos feitos por professores mais preocupados em vender seu “peixe” de cursinho. E incentive os alunos a, antes de frequentarem congressos, pesquisarem acerca do curriculum dos palestrantes.

f.3.) aprenda a usar a biblioteca; faça o uso devido de sua autonomia intelectual. Ali você vai descobrir um universo muito além da sala de aula e de seu professor. Faça um exercício consigo mesmo e se pergunte: quantas vezes você, desde que começou a frequentar o curso de direito, foi até a biblioteca despido de alguma obrigação institucional? Quantos livros você tomou emprestado que não foram indicados pelo professor? É importante ir a uma biblioteca e não simplesmente requerer ao bibliotecário ou a quem responda por ele o exemplar que você procura. É importante vagar pelas prateleiras à esmo e deixar que um livro caia nas suas mãos e desperte o seu interesse pelo mero acaso. Pode-se descobrir excelentes livros assim.

f.4) e por fim, mas não menos importante, leia livros de literatura. Leia aos montes… leia-os o máximo que você puder. Especialmente os romances. Neles você terá, além de um contato com a língua na sua forma mais emblemática, a possibilidade de se deparar com personagens fictícios que enfrentam dramas da vida próximos daqueles que os cientistas sociais enfrentam; próximo daqueles que os juristas enfrentam. Frustrações, paixões, um desfile de dilemas morais tudo que nos leva a sentirmos mais humanos, menos bestializados (ver aqui vídeo em que trato desse assunto). Não é a toa que as grandes utopias humanistas queriam formar uma espécie de comunidade universal de leitores. Na literatura temos a representação maior do modo com as relações humanas se desdobram e produzem sentido no mundo prático. Basta relembrar a operacionalidade geométrica do Direito [2]para percebermos que a realidade não sensibiliza os juristas; as ficções, sim. Com isso, seguimos confundindo as ficções da realidade com a realidade das ficções. Ficamos endurecidos.

Desse modo, podemos dizer, como uma palavra final, que o acadêmico ideal representa um arquétipo que só pode ser reproduzido em termos práticos se for possível observarmos duas transformações:

– uma de ordem estrutural institucional: cursos que apresentem currículos mais consistentes e que busquem um material adequado para trabalhar os conteúdos. Há coisas que necessariamente devem ser abordadas e há livros que fazem isto melhor do que outros;

– por outro lado, é necessário que os discentes deixem a passividade de lado e passem a ser mais ativos com relação à própria formação. Não para simplesmente reivindicar “os seus direitos” (sic), mas, muito além, por estar conscientes dos deveres que possuem para com a sua própria formação.

Por fim, quanto à questão relacionada a Scott Turow, a resposta é não. Em um país de modernidade tardia, os alunos não possuem tempo integral como em Harvard, a não ser os que tem paitrocínio ou que podem frequentar faculdades públicas sem trabalhar. A maioria dos acadêmicos se esfalfela trabalhando oito horas por dia e, à noite, vai à faculdade. Por isso, temos que ser darwinianos. Adaptarmo-nos às adversidades. E nos esforçarmos. Um estudante de filosofia, se tem uma prova sobre o sujeito da modernidade em Kant, não faz festa até as quatro da manhã (é uma metáfora). Em regra, os cursos de filosofia exigem olheiras dos alunos, se me entendem a alegoria (ou a brincadeira). O aluno de direito, regra geral, consegue fazer festa até as quatro e responder, no dia seguinte, a prova de direito civil objetiva e tirar sete. Até porque só chumba na faculdade de direito quem tem pistolão (é uma ironia).

Sugiro, pois, o “fator olheiras”. Como disse, não existe intelectual bronzeado. Ou, para ser mais leve, ninguém se torna um bom estudante de direito se ficar lendo resuminhos ou fazendo festa até a madrugada. A vida é bela. Mas é dura. O resto é churumela e autoajuda. Que não resolve nada. Não se pode fazer como o Barão de Münchausen: afogado no pântano com seu cavalo, puxou-se a si mesmo pelos cabelos…


[1] FARIA, José Eduardo. A reforma do ensino jurídico. Porto Alegre, Fabris, 1987.

[2] CALVO GONZÁLEZ, José. Direito curvo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013

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