Passado a Limpo

O caso da isenção fiscal na importação de latrinas em 1918

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

23 de outubro de 2014, 7h00

Spacca
Arnaldo Godoy [Spacca]Uma determinada empresa do Rio de Janeiro o Governo havia concedido isenção de impostos de importação de latrinas. Havia algum compromisso de que a isenção atingiria a média de uma latrina por casa, se térrea, ou duas, se assobrada. No entanto, um servidor da Alfândega constatara que o número de latrinas importadas — e detentoras do benefício fiscal — parecia exceder sobremaneira a expectativa de importação.

Havia, no entanto, um dado que suscitava certa confusão. É que várias famílias poderiam dividir casas térreas, bem como outras ainda poderiam dividir casas assobradadas. O Consultor-Geral  da República verificou que se alterou contrato originário, excluindo-se louças sanitárias de luxo, pelo que somente material efetivamente de esgoto deteria a não incidência prevista nos ajustes. Segue o parecer:

Gabinete do Consultor-Geral da República.  – Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 1918.

Exmo. Sr. Ministro de Estado dos Negócios da Fazenda. – Com o Aviso n. 36, de 16 do corrente, me transmitiu V.Exa. para dar parecer o processo em que se  levanta a dúvida sobre a extensão do favor de isenção de impostos aduaneiros de que goza The Rio de Janeiro City Improvements Company.

Motivou o processo a representação feita ao Sr. Inspetor da Alfândega pelo Sr. Álvaro Augusto de Souza Menezes, digno 4º escriturário daquela repartição, e na qual, com proficiente estudo, em face da estatística da construção de prédios nesta cidade nos últimos anos e do numero de aparelhos sanitários importados pela referida Companhia com isenção de direitos, se procura demonstrar a quanto monta o excesso de aparelhos em relação ao numero daqueles que a Companhia tem obrigação contratual de colocar, e que são, apenas um, nas casas térreas, e dois, nas casas de sobrado.

Apesar de minucioso e bem deduzido o trabalho em questão, não pode apresentar, como observa o Sr. Dr. Procurador-Geral da Fazenda, senão uma estimativa, tanto mais quanto é certo que, de acordo com a interpretação autorizada pela anterior direção da fiscalização da City, foi admitida a colocação obrigatória de número muito maior de aparelhos nos prédios em que, por suas condições materiais, apresentando diversas economias separadas, se prestam para habitação de várias famílias, ou para estabelecimento de diversas casas de comércio. Dessa interpretação, já posta em prática desde muitos anos, e que, aumentando consideravelmente o numero de aparelhos que a Companhia tem obrigação de colocar, prejudica os cálculos do trabalho do Sr. Escriturário Menezes, pois consiste num elemento com o qual ele não contou, dessa interpretação nasceu ultimamente uma controvérsia administrativa, sobre a qual já tive a honra de ser consultado várias vezes, e que se acha em termos de ser solvida por juízo arbitral.

Parece-me, entretanto, que, nos termos expressos dos contratos da City com o Governo Federal, a presente questão encontra sua solução natural. Já o Sr. Dr. Diretor da Inspetoria de Esgotos, no oficio em que deu ao Sr. Inspetor da Alfândega informações sobre a representação que originou este processo, colocou a questão nos seus verdadeiros termos. Pode haver uma contradição entre o espírito e a letra dos contratos, mas é indubitável que, em face de seus termos expressos, não há o que se arguir contra o modo por que tem a City procedido neste particular.

Pelo despacho ministerial de 21 de janeiro de 1900, em representação de diversos negociantes, foi declarado que “os contratos não davam à Companhia privilégio de vender ‘louça sanitária’ (Consolidação das Leis Relativas aos Esgotos na Capital Federal, pág. 43) e isso mesmo foi posteriormente consignado no termo de acordo celebrado com a Companhia, de 21 de fevereiro de 1900, autorizado pelo Decreto n. 3.603, de 20 do mesmo mês e ano.

Esses atos esclareceram que em relação a venda de louça sanitária havia liberdade comercial, como é  expresso na parte final daquele despacho.

Isso não quer dizer, porém, que se tenha imposto á City qualquer modificação nos dispositivos de seus contratos relativos a isenção de direitos.

Em isenção, que havia sido concedida ampla e geral nos contratos primitivos (§§  9º e 10 da cláusula 3ª do contrato aprovado pelo Decreto n. 6.089, de 18 de dezembro de 1875), foi modificada pela cláusula 17ª do termo de revisão, autorizada pelo Decreto n. 3.540, de 29 de dezembro de 1899, para excluir do favor “as latrinas de luxo, caixa de lavagens e seus acessórios, ventiladores e mais material que não seja propriamente do esgoto, uma vez que tiver de ser pago por particulares”.

Como se vê, na nomenclatura dessa exclusão, em matéria de aparelhos sanitários, apenas se trata de latrinas de luxo, e não se pode entender que as latrinas comuns estejam compreendidas nas expressões gerais, “material que não seja propriamente de esgoto”, porque, se tais expressões também se referissem a latrinas, a cláusula não teria feito expressa menção das latrinas de luxo.

Em vista destas considerações não me parece, Sr. Ministro, que haja providência a tomar em consequência da representação do Sr. Escriturário Menezes.

Devolvo os papeis e tenho a honra de reiterar a V.Exa. as seguranças de minha elevada estima e mui distinta consideração. – Rodrigo Octavio.

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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