Constituição e Poder

Democracia de slogans empobrece a cidadania e o sentido dos direitos políticos

Autor

  • Marco Aurélio Marrafon

    é advogado professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

20 de outubro de 2014, 10h24

Nas eleições gerais do ano em que se celebra o 25º aniversário da Constituição, o empobrecimento do debate e a difusão de falsas informações enfraquecem os fundamentos da cidadania e do sentido dos direitos políticos. Em tempos de guerra virtual, a profusão de slogans e mensagens rápidas tentam incutir preconceitos e falsas ideias na mente do eleitor, encobrindo o debate sério e profundo. Isso em todos os níveis desde a eleição majoritária nacional até as eleições regionais, sem distinção de partidos.

Não que se imagine que os candidatos sejam anjos e o debate seja exclusivamente pautado pela troca de gentilezas e apresentação de belas propostas abstratas. O confronto é importante, os questionamentos da biografia e atitudes pessoais dos candidatos fazem parte do jogo político e cada um tem o direito/dever de responder pela própria trajetória.

É certo que um dos maiores dilemas da democracia surge exatamente das dificuldades em equilibrar a especialização funcional de cada tema em debate e a busca de legitimidade popular, o que impõe o dever de clareza na comunicação de assuntos complexos, para que sejam melhor compreendidos pela população.

O problema é que, a menos de uma semana para a eleição presidencial de segundo turno, nada parece ter escapado do falseamento eleitoreiro: economia, políticas sociais, educação, saúde, infraestrutura, inserção internacional, meio ambiente, estratégias de desenvolvimento econômico e planejamento sobre o futuro do país são tratados de maneira leviana. Parece que falar a verdade está proibido. É feio, imoral ou engorda.

Muito conteúdo está disponível e de fácil acesso público, mas o que salta aos olhos é o predomínio da má informação acerca de temas essenciais para a nação. O preço a se pagar é justamente o aumento da intolerância, a profusão da ausência de questionamento crítico e da acefalia, o esvaziamento da cidadania e o empobrecimento do próprio sentido dos direitos políticos. No fundo, perde a democracia e fica pavimentado o terreno para o autoritarismo.

Assim, para que a anestesia do presente não nos impeça de compreender a importância da participação política, é preciso rememorar alguns aspectos históricos das lutas pela cidadania e pelos direitos políticos.

Cidadania e participação
A partir do ponto de vista europeu-ocidental, considera-se que a reflexão política surge na Grécia antiga, especialmente após o rompimento com as explicações mitológicas sobre o mundo e o nascimento da filosofia, em torno do séc. VI a.c.

O exemplo privilegiado do processo de formação e consolidação da democracia ateniense demonstra que a cidadania e a conquista dos direitos políticos se deu progressivamente, com a fragmentação e distribuição do poder em um movimento que parte do topo (monarquia), passa pelos altos escalões sociais (aristocracia) até alcançar a base da pirâmide social (democracia).

Nas linhas que seguem, me valerei das lições de Arnaldo Miglino em sua obra A cor da democracia, para quem esse processo durou alguns séculos, quando, desde o auge da civilização micênica (1.200 a.c.), houve a invasão pelos dórios que, organizados em tribos e divididos em clãs, promoveram a formação de conglomerados urbanos independentes[1].

No caso específico de Atenas, a luta pela oportunidade de participar politicamente nas decisões da Polis fica mais evidente no Sécuclo VI a.C., com a morte de Codro — último rei que, segundo a lenda, deixou-se matar pelos dórios para que não mais houvesse o regime monárquico.

Instaurou-se o governo dos Arcontes, eleitos anualmente no Areópago. Esse regime permitiu que o comando do exército, assim como a administração da justiça e das cerimônias religiosas nas quatro tribos atenienses estivessem sujeitas ao poder aristocrático, a elite composta pelos nobres da época.

Ainda no Séc. VI a.C., em um ambiente de crise econômica no qual as classes proprietárias emergentes reclamam parte do poder político, Sólon — mercador aristocrática eleito arconte em 594 a.C. — põe fim à escravidão por dívidas, ato que ataca a concentração de renda e faz com que todo ateniense seja considerado um homem livre. Além disso, ele reforma o sistema de participação da vida pública, de modo que os direitos políticos não mais dependessem do aristocrático critério do nascimento, mas sim das riquezas amealhadas.

Essa mudança, ainda que inadmissível hoje em dia, por instaurar uma espécie de voto censitário, à época foi muito importante, já que instaurava a possibilidade de mobilidade na pirâmide social e política, fomentando a ideia de que, mesmo diferentes, os cidadãos teriam chance de ascensão sem depender do nascimento.

Sólon também divide a população em quatro classes, de acordo com o critério econômico. Dentre elas, os thetes, que formavam a base da escala social, passaram a ter direitos de participar da Ecclesia (assembleia que deliberava sobre a guerra e realizava a eleição do arconte) e da Heliéia (Tribunal popular). Outro ponto importante, é que ele cria a Boulè, (instância deliberativa) com 400 membros, sendo cem de cada tribo que compunha a Cidade-Estado.

As lutas por maior participação política não param por aí e prosseguem durante as chamadas “tiranias” posteriores a Sólon.

Dentre elas, destaca-se a de Clístenes, que diminui a concentração de poder ao esvaziar a importância política das antigas quatro tribos e redividi-las em dez novas tribos menores, organizadas em distritos (demos) cujo líder era chamado demarco. Clístenes também estabelece que todo cidadão do sexo masculino tem direito de participação das discussões na Ecclesia — agora órgão supremo de deliberação — e no Boulè — conselho executivo da polis, nesta época contando com 500 membros.

Por fim, é preciso ressaltar que, apesar da crise econômica e social que atingiu Atenas e da democracia de facções (stasis) durante a tirania de Péricles[2], foi nesse período que os thetes conquistaram o direito de exercer o cargo de Arconte[3].

Assim, ainda que paradoxalmente a democracia ateniense tenha se consolidado com a adoção do sistema escravista e imperial, implantou-se — mesmo que formalmente e dentro dos estreitos limites da classe de cidadão — a busca da isonomia no direito de participação (votar as leis e exercer cargos públicos) e a isegoria relativa ao direito de manifestação[4]. Eis algumas lições dos gregos para a contemporaneidade.

Estado de Direito
Passados os anos e superado o ocaso medieval, os debates em torno da cidadania são retomados no humanismo cívico italiano a partir do resgate dos valores republicanos da Antiguidade, já nos séculos XIV-XV da era cristã.

O discurso humanista buscou reforçar a importância da liberdade e da participação política, a necessidade de ação para transformar a sociedade, além de exaltar o exercício da cidadania como antídoto ao sistema de privilégios e laços de fidelidade do antigo regime feudal.

Inspirado nos ideais republicanos que remontam a Cícero, os humanistas italianos compreendiam a cidade como o lugar no qual homens livres e iguais — obedientes à lei e unidos pela Constituição — deveriam participar da administração pública e exercer o poder[5].

Apesar desse influxo, a era do homem-cidadão apenas veio a se consolidar com o advento das revoluções demo-liberais-burguesas, já que os séculos XV e XVI assistiram ao predomínio da vontade do Rei e da figura do súdito. Por isso, apenas com os movimentos constitucionalistas (Inglaterra, EUA e França) e a vitória das garantias de liberdade e do primado da Lei é que na primeira época do Estado de Direito (período liberal) forma-se o laço cidadão-Estado baseado no sentimento de pertencimento à nação aliado ao vínculo legal.

Com base em estudos sociológicos do constitucionalismo inglês — de índole costumeira e construtivista, isto é, sem grandes rupturas —, Marshal apresenta três dimensões da cidadania: cidadania civil, cidadania política e cidadania social como dimensões integradas mas diferenciáveis do mesmo fenômeno[6].

Esse autor procura demonstrar que cada uma dessas dimensões reflete a conquista dos direitos civis (séc. XVIII), políticos (XIX) e sociais (XX), na qual se parte da afirmação da cidadania a partir da afirmação da personalidade, depois possibilidade de participação política e conquista do poder e, enfim, da igualdade material[7].

Conforme explica José Murilo de Carvalho, essa sequencia é lógica e não apenas histórica, já que:

Foi com base no exercício dos direitos civis, nas liberdades civis, que os ingleses reivindicaram o direito de votar, de participar do governo de seu país. A participação permitiu a eleição de operários e a criação do Partido Trabalhista, que foram os responsáveis pela introdução dos direitos sociais[8].

Fica claro, assim, que a garantia e proteção dos direitos da cidadania se afirma no interior do chamado Estado de Direito. Este, por sua vez, se caracteriza pelo controle e previsibilidade da intervenção estatal por meio da limitação jurídica do poder[9]. Essa limitação demanda, em sentido geral, a atenção ao “Império da Lei”, isto é, ao primado legal sobre a ordem política operada pela Constituição, da qual deriva o princípio da legalidade — em sede judicial e administrativa (controle dos atos do Executivo) — e a exigência de mecanismos de controle de constitucionalidade.

O direito à participação na administração e formação da vontade do governo se alia, então, a mecanismos de “imunização política” dos direitos fundamentais, dentre eles os próprios direitos políticos.

A democracia se qualifica enquanto democracia constitucional, assentada — como bem destaca Néviton Guedes — na relação de implicação e tensão entre jurisdição e soberania popular[10].

Implicação porque a garantia dos direitos fundamentais é necessária para evitar uma “ditadura das maiorias”, de modo que esses direitos formam a estrutura essencial que sustenta a democracia constitucional; tensão porque a soberania popular se vê confrontadas com limites passíveis de controle judicial, vinculando não apenas o administrador público, mas também o legislador[11].

Certamente há uma grande distância entre os direitos de participação política enquanto direitos fundamentais e a democracia dos antigos anteriormente retratada, até porque nesta não há que se falar em representação, direito subjetivo oponível à coletividade e nem mesmo na moderna noção de Estado.

Todavia, o itinerário ora proposto, em tempos de democracia de slogans, pode contribuir para nos mostrar quão importante foram a lutas democráticas até que fosse reconhecida a fundamentalidade dos direitos políticos. Esse patrimônio da civilização não merece ser desprezado e submetido a disputas eleitoreiras, guiadas por estratégias de puro marketing e sem o menor compromisso republicano.


[1] Por se tratar de coluna, não farei a referência página a página, mas o leitor poderá pesquisar e encontrar de maneira mais aprofundada o conteúdo ora sintetizado em: MIGLINO, Arnaldo. A cor da democracia. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010. p. 15-24 (coleção Jacinto Nelson de Miranda Coutinho n. 03).

[2] Sobre o tema, conferir: FIORAVANTI, Maurizio. Constitución: de la antiguedad a nuestros dias. Trad. Manuel Martinez Neira. Madrid: Editorial Trotta, 2001.

[3] MIGLINO, Arnaldo. A cor da democracia. Op. cit., p. 34.

[4] Ibidem, p. 41 e ss.

[5] Para aprofundamento: BIGNOTTO, Newton. Republicanismo. In: BARRETO, Vicente de Paulo (coord). Dicionário de Filosofia do Direito. Rio de Janeiro-São Leopoldo: Editora Renovar-Editora Unisinos, 2006, p. 716-720.

[6] MARSHAL, T. Cidadania, Classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.

[7] Idem.

[8] CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil: longo caminho. 10 ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2008, p. 11.

[9] Cf. COSTA, Pietro. ZOLO, Danilo (orgs). O Estado de Direito: história, teoria, crítica. Trad. Carlos Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

[10] GUEDES, Néviton. Comentário ao art. 14, § 1º. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STREK, Lênio L. Comentários à constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 657-658

[11] Idem.

Autores

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    é presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst, Professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e Advogado.

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