Futuro do Direito

Juristas têm muito o que aprender com um físico teórico

Autor

  • Henrique Napoleão Alves

    é sócio do escritório Sacha Calmon - Misabel Derzi Consultores e Advogados doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professor universitário.

18 de outubro de 2014, 8h17

Na obra Physics of the Future — How Science will shape human destiny and our daily lives by the year 2100 (New York: Doubleday, 2011), o professor e físico teórico estadunidense Michio Kaku arrisca previsões sobre como os esperados avanços da ciência e da tecnologia modificarão as sociedades humanas nas próximas décadas.

Confira as considerações dele sobre o futuro do trabalho dos juristas em meados do século XXI (2030 a 2070):

Os profissionais envolvidos com relações humanas, como os juristas, terão emprego. Um advogado-robô será capaz de responder questões rudimentares sobre o Direito; mas, o próprio Direito está em constante mudança, a depender dos cambiantes padrões sociais e costumes. Em última análise, a interpretação do Direito resume-se a um juízo de valor, campo em que robôs são deficientes. Se o Direito fosse claro e inequívoco, com interpretações precisas e evidentes, não haveria necessidade de [existirem] tribunais, magistrados e júris. Um robô não pode substituir um júri, porque júris normalmente representam os costumes de um grupo específico, que estão em constante mudança ao longo do tempo. Isso se revelou mais aparente quando, certa vez, o ministro da Suprema Corte Potter Stewart teve de definir ‘pornografia’. Ele não conseguiu fazê-lo, mas concluiu: ‘Eu sei o que é quando me deparo com ela’. Além disso, será provavelmente ilegal que robôs substituam o sistema de justiça, já que as nossas normas têm consagrado um princípio fundamental: o de que os júris devem ser constituídos pelos nossos pares. Como robôs não podem ser nossos pares, será [provavelmente] ilegal que eles possam substituir o sistema de justiça.

Na superfície, as normas parecem ser exatas e bem definidas, com formulações linguísticas precisas e rigorosas e títulos e definições que soam solenes e arcanos. Mas trata-se de mera aparência, pois as interpretações dadas a essas definições constantemente se modificam. A Constituição dos Estados Unidos, por exemplo, parece ser um documento bem definido; ainda assim, a Suprema Corte se encontra constantemente dividida em meio a questões controversas, e está permanentemente reinterpretando cada palavra e frase do texto constitucional. A natureza cambiante dos valores humanos pode ser facilmente percebida na história. Por exemplo: a Suprema Corte decidiu, em 1857, que escravos jamais poderiam se tornar cidadãos dos Estados Unidos. Em certo sentido, foi necessária uma guerra civil e a morte de milhares de pessoas para que essa decisão fosse derrubada.

As colocações de Kaku são instigantes por várias razões. Em primeiro lugar, é bem interessante perceber a visão de um cientista, não jurista, sobre o Direito. Enquanto rios de tinta correram e correm nos debates sobre o papel dos juízos de valor e da moralidade em geral no campo jurídico, Kaku não tem nenhuma hesitação em afirmar que robôs não substituíram juristas precisamente em virtude da natureza do Direito: essencialmente cambiante, interpretativa e valorativa, associada fundamentalmente à moralidade.

Para exemplificar esse caráter do Direito, o autor lança mão de dois exemplos principais: a dificuldade de fechamento conceitual no caso da definição jurídica de “pornografia” num caso da Suprema Corte estadunidense e a mudança da jurisprudência da mesma corte em relação à escravidão. Esse segundo exemplo, aliás, é particularmente ilustrativo do caráter político do Direito, tantas vezes ocultado. No momento, vou me ater ao primeiro exemplo, que nos leva a um outro ponto de particular importância para o jurista: a velha questão dos conceitos jurídicos abstratos, de maior grau de indeterminabilidade (e, portanto, maior abertura para o trabalho interpretativo criativo dos juristas).

As democracias capitalistas contemporâneas estão associadas a sistemas jurídicos abstrusos, que têm o desafio fundamental de regular condutas em sociedades altamente complexas e em constante e célere transformação, na linha tênue entre mudança e continuidade (e continuidade na mudança, e mudanças na continuidade). Atrás do jogo de palavras existe um drama jurídico concreto — um dos muitos lugares dialéticos do Direito, como diria o professor João Baptista Villela (“Em busca dos valores transculturais do Direito”, Revista Brasileira de Estudos Políticos, 2004) —, resumido num adágio formulado pelo jurista Nathan Roscoe Pound, compatriota de Kaku: “O Direito deve ser estável, mas não pode ser estático” (Law must be stable, and yet it cannot stand still).

A fala do ministro da Suprema Corte Potter Stewart sobre o caso específico da definição jurídica de “pornografia” lembrada por Kaku nada estranhamente se assemelha ao tratamento dado pela poetisa Cecília Meireles ao conceito de “liberdade”, no seu clássico Romanceiro da Inconfidência: “Liberdade / essa palavra / que o sonho humano alimenta / que não há ninguém que explique / e ninguém que não entenda”. A ausência de fechamento conceitual pode ser, a um só tempo, insatisfatória para as expectativas de segurança e certeza, e necessária para a abertura do Direito à moralidade, à legitimidade social, ao progressismo e às mudanças sociais. Uma espada de dois fios de corte, que exige do jurista um trabalho perigoso que supera até mesmo as capacidades dos robôs das previsões do físico teórico.

Um quarto ponto que a fala de Kaku nos traz, em dois diferentes momentos, diz respeito ao próprio conceito de pessoa — outro problema clássico da filosofia política e da teoria do direito. Num primeiro momento, quando Kaku especula sobre a impossibilidade, no futuro, de que robôs possam ser escolhidos como membros de um tribunal de júri, seu argumento parte da premissa de que robôs não serão considerados “pessoas” do ponto de vista jurídico, e, logo, não poderão ser tidos como nossos “pares” (peers) para fins de julgamento. Num segundo momento, Kaku exemplifica a abertura do sistema jurídico a novas interpretações e transformações com a decisão da Suprema Corte, posteriormente revogada, que não estendia o status de cidadão às pessoas escravizadas nos Estados Unidos do século XIX.

O segundo momento ilumina o primeiro: talvez máquinas inteligentes não sejam consideradas “humanas” no início, mas, conhecendo a história da “humanidade” (enquanto conceito), não seria prudente descartar esta possibilidade, porque o conceito de “humano” felizmente já sofreu expansões no passado, como bem ilustra a revogação da decisão de 1857 da Suprema Corte mencionada pelo sr. Kaku.

A propósito, há um livro particularmente relevante sobre o assunto, escrito por Felipe Fernandez-Armesto, intitulado Então, você pensa que é humano? (editora Companhia das Letras, 2007; edição original: So You Think You’re Human? A Brief History of Humankind. Oxford University Press, 2005). A questão que pretendo aqui avançar pode ser assim resumida: num cenário onde robôs não sejam máquinas rudimentares capazes apenas de responder perguntas básicas — como hoje já pode fazê-lo com facilidade a rede mundial de computadores (ainda que a depender da habilidade de pesquisa do humano que questiona, e dos demais atores que a alimentam) —, mas máquinas capazes de razão, consciência e imaginação, pode não ser improvável a existência de demandas sociais, reconhecidas ou não, em favor do reconhecimento de sua humanidade.

É o ponto mais especulativo da minha reflexão, mas, nem por isso, de todo implausível: afinal, no meio científico há quem faça previsões acerca da existência de inteligências artificiais que superam, e muito, as capacidades dos robôs-rábulas descritos por Kaku. É o caso, e.g., da previsão de Ray Kurzweil, que defende que já em 2029 teremos máquinas com inteligência humana, e em meados do século XXI máquinas que superam nossa inteligência — capazes, portanto, de criarem, elas próprias, novas inteligências artificiais ainda mais insólitas para as mentes ordinárias do presente (nas quais me incluo) (cf. Salvador Nogueira. 2045: o ano em que os computadores assumirão o poder. Revista SuperInteressante, janeiro de 2013). Será, em suma, o início do que Kurzweil chamou de “Era da Singularidade”.

Falas de futurólogos como Kaku ou Kurzweil oferecem a nós o perigo e a tentação do deslumbramento e da especulação acerca de problemas inexistentes no presente — e isso é bastante compreensível. Os avanços tecnológicos presentes e potenciais podem mesmo ser assombrosos, mesmo para as mentes mais críticas e materialistas (no sentido filosófico). Para ilustrar, basta lembrar uma carta que Karl Marx escreveu, em 1852, para o seu amigo Joseph Weydemeyer (um dos editores da Neue Rheinische Zeitung – Nova Gazeta Renana), saudando o nascimento do filho dele: “Magnífico momento para vir ao mundo! Quando for possível ir em sete dias de Londres a Calcutá, tu e eu já estaremos decapitados ou dando urtigas. A Austrália, a Califórnia e o Oceano Pacífico! Os novos cidadãos do universo não conseguirão compreender quão pequeno era o nosso mundo” (Mehring, Franz. Carlos Marx: historia de sua vida. Mexico: Editorial Grijalbo, 1957, p.234; apudWeffort, Francisco C. “Marx: política e revolução”. In: Weffort, Francisco C. Os clássicos da política – Burke, Kant, Hegel, Tocqueville, Stuart Mill, Marx. 2º volume. 10 ed. 9 impressão. São Paulo: Editora Ática, 2005, p.227).

Uma profecia que se mostra correta: Marx se impressionava com um mundo vindouro onde se viaja de Londres a Calcutá em sete dias, viagem feita em 12 horas por voos comerciais hoje, com o custo de 327 libras. A parcela da humanidade que tem acesso a tais viagens internacionais certamente não é capaz de compreender o quão pequeno era o mundo dos europeus de meados do século XIX. Fica a impressão de que a tecnologia impõe avanços exponenciais, permanecendo atual o constrangimento do pensador alemão com as gerações futuras, afinal, se cumprida a previsão de Kurzweil, nós, em 2014, seremos incompreensíveis para as gerações da tal era da Singularidade.

Há quem, por outro lado, nos puxe de volta das nuvens. Em entrevista recente ao blog Singularity, o professor Noam Chomsky, por exemplo, afirmou que a tese da Singularidade não passa de ficção científica, e que deveríamos nos preocupar com outras questões bem mais urgentes do mundo atual (http://www.youtube.com/watch?v=0kICLG4Zg8s; acesso em 20 jan. 2014).

Diálogo entre humano e máquina
Nesta toada, quero concluir esta breve reflexão saindo das especulações para algo bastante concreto: o excerto da obra de Kaku adquire particular importância quanto à relação entre homens e máquinas no trabalho jurídico.

Para ele, robôs responderão às perguntas jurídicas mais básicas, mas serão incapazes de substituir o trabalho do jurista, porque o Direito muda o tempo todo e é resultante de processos interpretativos complexos e valorativos. Trata-se de um avanço que, se de fato ocorrer, será muito bem-vindo, pois significará o empoderamento da população que não teve treinamento ou formação no campo jurídico.

À parte disso, o futuro onde máquinas respondem às perguntas jurídicas mais básicas já existe hoje. É o que ocorre quando alguém digita uma dúvida jurídica no cursor de um site de buscas. E não é só aí que as máquinas fazem ao menos parte do trabalho jurídico. No campo da chamada “advocacia de massa” já há programas de computador capazes de gerar peças judiciais padronizadas a partir da inserção de algumas poucas informações.

Para as firmas que não contrataram tais programas, há uma alternativa muito acessível no mercado de trabalho: a mão-de-obra jurídica prosaica que abunda no Brasil. Com alguns humanos alugados e computadores com editores de texto básicos, os mesmos resultados podem ser atingidos facilmente pelo “copiar e colar”. Advocacia robótica, com engrenagens mais ou menos orgânicas, de grande desgaste, mas fácil e barata reposição. O mesmo vale para os demais atores envolvidos no sistema de justiça, de advogados públicos a magistrados, quando e enquanto geradores de peças processuais e despachos e decisões judiciais produzidos de forma massificada, por eles e (especialmente) por seus subordinados, a partir dos famigerados “modelos” e quejandos.

Ao futuro das próximas décadas anunciado por Kaku, onde robôs libertam juristas para que eles se dediquem apenas às tarefas valorativas nobres e complexas do trabalho jurídico, contrapõe-se um presente distópico, onde homens e mulheres sobem na construção do Direito como se fossem máquinas. Máquinas que, como bem disse Kaku, são deficientes em relação a tarefas valorativas…

O passado (idealizado ou não) do jurista romântico, probo e artesanal, que sobrevive no presente apenas aqui e ali, é seguramente muito mais digno e humano.

E nada disso é novidade, ou algo difícil de se notar. As pessoas percebem isso. Os usuários do sistema de justiça enxergam claramente a diferença entre o magistrado que conversa com as partes e que medita sobre cada caso e o magistrado que produz incontáveis decisões massificadas; ou, ainda, entre o advogado que fornece um serviço personalizado, moldado para as demandas particulares de cada cliente, e aquele escritório de advocacia que trata seus clientes e os problemas jurídicos que lhes apresentam como números numa planilha e fatos a se amoldarem a modelos de petições iniciais salvos num porta-arquivos qualquer.

O trabalho massificado, no gabinete ou na sala de escritório, é uma vergonha para a profissão, e seu ofício robótico é uma vergonha para a humanidade: afinal, de Immanuel Kant e Wilhelm Von Humboldt à neurociência contemporânea, sabemos de nós mesmos, como seres livres e criativos por natureza, que jamais deveriam ser treinados para funcionar como peça de uma engrenagem qualquer.

No futuro, a advocacia possivelmente sobreviverá como profissão não apenas em face de eventuais limites de máquinas na lógica informal e na retórica que fazem parte do mundo jurídico, como assevera Kaku. Serviços jurídicos têm uma dimensão humana muito particular, evidenciada na relação entre juristas e os clientes ou destinatários dos seus serviços, de modo que, se a emulação dos serviços complexos faz parte apenas do plano mais especulativo da comunidade científica, o que dizer então da aceitação social da emulação substitutiva do trabalho do jurista? Serviços jurídicos de alta qualidade se diferenciam dos demais pela combinação, dentre outros fatores, de capacidade técnica e tratamento humanizado das demandas. Não parece haver nenhum sinal de que isso mudará nas próximas décadas, e pode ser questionável a existência de um cenário em que robôs sejam capazes de preencher expectativas de tal estirpe (ao menos num futuro próximo).

O que Kaku faz, em última instância, é dar palpites; eruditos, sem dúvida, mas, ainda assim, palpites. Diante do presente da hegemonização do trabalho jurídico massificado nas mais variadas instituições e locais, só se pode torcer para que ele esteja certo, e para que a tecnologia seja usada com sabedoria: não para produzir mais e mais produtos e vidas massificados, mas para libertar os trabalhadores do direito. Quem sabe, assim, o que hoje é uma exceção poderá se tornar a regra. Mas, antes de gastarmos mais tempo refletindo sobre os possíveis impactos das tecnologias anunciadas por Kaku, que ainda parecem mais elementos saídos de um filme de ficção científica do que partes da paisagem das nossas vidas modernas, vale a pena nos questionarmos até que ponto as tecnologias atuais já não permitiriam um trabalho, no mundo jurídico e fora dele, menos ordinário.

A sabedoria que Kaku pressupõe na utilização de tecnologias do futuro (tecnologias que podem sequer existir, adverte-se) notoriamente nos faltou em relação às tecnologias que já logramos desenvolver, e que historicamente geraram menos libertação e mais desemprego ou emprego mecanizado. Por isso, antes de tal ou qual futuro, a tarefa mais urgente é a de desrobotizar a humanidade do presente.

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    é advogado sócio do escritório Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados. É também professor universitário e doutorando, mestre e bacharel em Direito pela UFMG.

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