Retratação de sentença

Declaratórios devem ser acolhidos em caso de erro sobre fato

Autor

  • Guilherme Lucci

    é juiz federal em Campinas(SP) especialista em Direito Processual Civil pela Escola Paulista da Magistratura e mestrando em Efetividade da Jurisdição pela PUC-SP.

16 de outubro de 2014, 6h32

A elevação do volume da demanda jurisdicional e da correspondente resposta apresentada pelo Poder Judiciário é fato notório, além de formalmente identificado pelo relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça.

Tal acréscimo da produtividade dos já sobrecarregados magistrados brasileiros — os quais, a propósito, situam-se entre os mais produtivos do mundo —, traz consigo a elevação do risco de prolação, em um ou outro caso dentre os numerosos feitos mensalmente sentenciados, de provimento excepcionalmente prolatado com base em fato essencial equivocadamente considerado pelo julgador.

Identificando o erro sobre fato, o parágrafo 1º do artigo 485 Código de Processo Civil delimita que há “há erro, quando a sentença admitir um fato inexistente, ou quando considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido”, conclusão adotada a partir de “atos ou de documentos da causa” (inciso IX do mesmo artigo).

Em princípio, a oposição de embargos de declaração em casos que tais não estaria permitida pela redação restritiva dos incisos I e II do artigo 535 do Código de Processo Civil. Tal oposição estaria franqueada apenas aos casos de omissão jurisdicional na análise de pedido expresso da parte ou às hipóteses de obscuridade ou de contradição observadas internamente ao ato jurisdicional embargado.

Qual expediente processual deve o procurador, então, adotar ao observar que a sentença restou prolatada com base em pressuposto de fato equivocado? Deve opor os aparentemente descabidos embargos de declaração? Ou deve desde logo interpor o recurso de apelação, partindo da premissa de que o magistrado sentenciante não poderá retificar a sentença, pois ela não conta precisamente com os vícios da omissão, contradição ou obscuridade em sua conceituação precisa?

Ao deslinde da questão, é relevante ter em mente a premissa de que o processo é instrumento eminentemente público, por meio do qual se dá a exteriorização e a eficácia de uma das três funções do poder do Estado: a função ou o poder jurisdicional. Pela atuação dessa importante função de poder implementa-se um particular e grave serviço público: a prestação jurisdicional. É por esse serviço que o Estado age para analisar e afirmar a existência de direitos e para garantir os parâmetros de seu exercício, pacificando conflitos de interesses.

Princípios constitucionais como o da efetividade da jurisdição e da tutela jurisdicional, da eficiência, da razoável duração dos processos e da justiça, interpretados em conjunto com princípios processuais como da instrumentalidade, impõem uma proveitosa mudança de paradigmas interpretativos sobre os limites da atuação do julgador no momento posterior à prolação de sentença. Há que se repesarem os valores que informam a existência tanto do processo em si considerado quanto do modelo processual adotado, redefinindo-se a técnica processual para que as justas expectativas que se depositam sobre a existência e finalidade do processo sejam adequadamente atendidas.

Sobre o tema, vale a lição de Michele Taruffo: “Um modelo processual — e isso vale para todos os modelos de processo — nasce assim da combinação de escolhas ideológicas e de instrumentações técnicas. Combinações variáveis sobretudo em função da variedade das escolhas ideológicas, dado que a técnica, em si considerada, é neutra e vazia. Isso implica que a análise de um modelo processual deve ter em consideração primeiramente a sua dimensão ideológica, sendo a dimensão técnica importante, mas não decisiva. (Cultura e processo. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano, v. 63, n. 1, p. 63-92, Mar. 2009, tradução nossa, p. 71-72).

O processo civil, pois, deve ser instrumento justo e ético de obter a tutela jurisdicional. O respeito à justiça e à ética impõe aos atores do processo e, portanto, a esse próprio instrumento, a irrestrita observância dos princípios constitucionais que lhe são afetos e o respeito aos parâmetros processuais predeterminados.

Assim, princípios como o do devido processo legal, do prévio contraditório, da ampla defesa, da razoável duração do processo e da eficiência, da razoabilidade e proporcionalidade e da efetividade da prestação jurisdicional devem ser constantemente curados pelo juiz e pelas partes na busca do processo ético e justo.

Portanto, o que se espera do processo, sob o aspecto ontológico, verdadeiramente, é o resultado prático, substancial, material que ele serve a viabilizar. Assim não fosse, o processo assumiria papel principal, em vez de seu papel assessório e instrumental. Mais que o exclusivo direito de acesso ao Poder Judiciário ou que o direito de ver judicialmente apreciada certa pretensão, o processo deve servir eficazmente à efetiva tutela jurisdicional de direitos. A existência de direitos e seu livre exercício devem ser prestigiados pelo processo, que utilmente serve senão que para lhes garantir o reconhecimento e para permitir sua fruição.

Nesse contexto, “o processo justo está diretamente relacionado com a justiça do seu resultado”, conforme leciona Sergio Chiarloni (Giusto processo, garanzie processuali, giustizia della decisione. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano, v. 62, n. 1, p. 129-152, Mar. 2008., p. 146, tradução nossa).

A retratação sentencial proposta permite que o provimento judicial seja prontamente ajustado e mesmo integralmente substituído, em caso de o próprio magistrado sentenciante apurar a procedência dos esclarecimentos fáticos contidos na peça de embargos de declaração. Acelera-se, assim, a efetiva e justa prestação jurisdicional, ensejando ainda, eventualmente, o adiantamento do encerramento do feito. Mais que isso, a retratação permitirá entregar ao verdadeiro sucumbente os ônus do decurso do tempo de tramitação processual, desestimulando comportamentos meramente protelatórios.

Não se pretende com o processo apenas encenar um pseudo-resultado, assim entendido o resultado técnico dissociado da justa solvência de uma crise de interesses. Para que o resultado eficaz seja alcançado, o juiz deve analisar a crise que lhe é apresentada tomando em conta de consideração todas as circunstâncias fáticas relevantes ao encontro da solução legítima e justa.

O exercício do juízo de retratação sentencial é, nesse contexto, justamente a oportunidade ensejada ao magistrado para que substitua um seu anterior entendimento formalmente expressado, por outro pronunciamento ajustado aos exatos fatos relevantes do processo.

Alguns dispositivos contidos no Código de Processo Civil preveem a possibilidade do exercício do juízo de retratação da sentença. Dentre eles, destaca-se o artigo 463 e seus incisos I e II. Esse dispositivo consagra a ideia de que o Juízo de primeiro grau encerra a sua jurisdição no caso concreto com a prolação da sentença, não podendo mais revê-la senão apenas para lhe corrigir meras inexatidões ou, por meio de embargos de declaração, para integrá-la, suprimindo omissão, contradição ou obscuridade dela constante. Neste último caso, somente reflexamente à correção da mácula objeto da oposição declaratória poderá atribuir efeitos infringentes e eventualmente modificar substancialmente o teor da sentença embargada.

O cabimento da retratação de sentença por decorrência do julgamento dos embargos de declaração, pois, não enseja dúvida. Para que isso ocorra, contudo, o ato deve estar formalmente maculado pelo vício da omissão, da contradição ou da obscuridade. Se um desses vícios houver, caberá ao julgador revisar sua sentença para torná-la formal e materialmente justa. Note-se, todavia, que tal expediente processual tem como objetivo estrito a declaração do verdadeiro sentido, ou a integração, de uma decisão portadora de omissão, de obscuridade ou de contradição em seus próprios termos. Os embargos de declaração, portanto, permitem que o juiz revisite apenas internamente sua sentença, cotejando a mútua adequação de seus próprios termos, em princípio sem nova apreciação dos fatos que lhe deram ensejo.

Todavia, a justa prestação jurisdicional não pode ser negada pelo exclusivo argumento da impossibilidade de superação, no caso concreto, do disposto no artigo 463 do Código de Processo Civil ou da máxima de que “o juiz esgota sua jurisdição com a prolação de sentença”.

O dever de observância irrestrita e incondicionada dos termos materiais desse dispositivo legal (artigo 463, CPC) não pode suplantar o dever do magistrado com a entrega da justa tutela jurisdicional, com a instrumentalidade material do processo e com o valor da justiça.

A ampliação, no caso concreto, das hipóteses de cabimento do juízo de retratação de sentença é medida necessária ao real cumprimento de postulados constitucionais, sobretudo ao da efetividade da prestação jurisdicional e ao da justiça das decisões emanadas do Poder Judiciário.

A finalidade da presente proposição de afastamento da limitação legal em questão é ensejar que o magistrado sentenciante reveja, com vista nos reais fundamentos de existência do processo e nos princípios constitucionais e direitos fundamentais, seu inicial entendimento veiculado pela sentença que, equivocadamente, restou fundada sobre erro de fato.

Evidentemente que a presente hipótese não visa a estimular a oposição dos embargos de declaração em toda e qualquer hipótese de mera insatisfação da parte com o resultado do julgamento ou em relação a erro sobre fato que não seja relevante ao deslinde do feito. O presente artigo visa, antes e exclusivamente, a destacar meio processual de correção imediata, em caso de erro sobre fato essencial, de ato sentencial cuja reforma pelo órgão revisor mostra-se de pronto identificada pelo próprio magistrado sentenciante.

Ao fim e ao cabo, com a extensão jurisprudencial das hipóteses de cabimento dos embargos de declaração, que podem ser opostos também em face de sentença prolatada a partir de erro sobre fato relevante, pretende-se atribuir máxima eficácia aos princípios da efetividade da jurisdição e do devido processo legal material, ou substantive due process of law.

Se a necessidade de reforma da sentença originária, porque prolatada com erro sobre fato, é admitida pelo próprio juízo sentenciante, por qual razão remeter tal declaração ao Órgão recursal? Por que esperar que órgão jurisdicional superior reveja uma determinada sentença fundada em erro sobre fato essencial, se o próprio órgão que a prolatou admite a necessidade dessa pronta retificação? Não parece haver mesmo sentido em submeter a parte prejudicada a esse desnecessário lapso temporal.

A vinculação do magistrado é certamente com o cumprimento da lei, mas também e sobretudo com o respeito e com a eficácia dos princípios constitucionais, dos direitos fundamentais e, de resto, com a realização da Justiça no caso concreto. Nesse contexto, em sendo o caso de aferição de erro sobre fato essencial, deverá o magistrado sentenciante desde logo prestigiar a via da retratação de sentença, dando acolhimento aos embargos de declaração.

O exercício da judicatura indica que hipóteses que tais — de erro judicial sobre fato relevante — são casos ínfimos em relação ao elevado número de sentenças proferidas mensalmente por cada magistrado brasileiro. Justamente por serem excepcionais, essas hipóteses merecem da jurisdição tratamento também excepcional, mediante a admissão e acolhimento dos embargos de declaração opostos ao fim de prontamente corrigi-los.

O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça chancelam o entendimento aqui esposado. Essas cortes sufragam, com efeito, o cabimento dos embargos de declaração também em face de provimento jurisdicional que, a despeito de não contar com contradição, obscuridade ou omissão no conceito técnico estrito, foi prolatado com base em pressuposto de fato equivocadamente considerado pelo julgador. Nesse sentido da serventia dos embargos de declaração para corrigir também esse quarto possível vício da sentença, veja-se: STF: STA 446 MC-AgR-ED/CE; SS 4119 AgR-ED/PI; AI 492629 AgR-ED-ED/RS; RE 203981 ED/PE; RE 193775 ED/SP; RE 203054 ED/RS; RE 191203 AgR-ED/SP; STJ: EDAGRESP 412393; EADRES 720186; ADRESP 1242507; RESP 1065913.

Nesse último julgado, aponta de forma precisa o relator, ministro Luiz Fux, então no STJ: “(…) 2. Assim, há erro de fato quando o juiz, desconhecendo a novação acostado aos autos, condena o réu no quantum originário. "O erro de fato supõe fato suscitado e não resolvido", porque o fato "não alegado" fica superado pela eficácia preclusiva do julgado – tantum iudicatum quantum disputatum debeat (artigo 474, do CPC). (…). 3. A interpretação autêntica inserta nos §§ 1º e 2º dissipa qualquer dúvida, ao preceituar que há erro quando a sentença admitir um fato inexistente, ou quando considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido, sendo indispensável, num como noutro caso, que não tenha havido controvérsia, nem pronunciamento judicial sobre o fato.” (STJ; REsp 1.065.913; 1.ª Turma; DJE 10/09/2009).

Ao magistrado, portanto, cabe cuidar da efetividade de sua atividade decisória, cotejando os resultados dela decorrentes com os objetivos da própria existência do valioso serviço jurisdicional que está a prestar. Cabe-lhe, no desencargo dessa função de poder, sindicar a justiça de sua sentença, em verdadeiro exercício de saneamento material da justa tutela jurisdicional.

Isso porque a tutela jurisdicional não existe senão para ser justa.

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    é juiz federal em Campinas(SP), especialista em Direito Processual Civil pela Escola Paulista da Magistratura e mestrando em Efetividade da Jurisdição pela PUC-SP.

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