Limites da liberdade

Não compete à ninguém expor a intimidade e a vida privada de terceiros

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  • Leonardo Vizeu Figueiredo

    é procurador Federal mestre em Direito Constitucional e diretor da Escola da AGU da 2ª Região. Advogado constitucionalista e economicista presidente da Comissão de Direito Econômico da OAB-RJ. Ex-presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-RJ (2013-2015).

14 de outubro de 2014, 8h54

Recentemente, fui surpreendido com uma notícia. Narrava-se que o Tribunal de Justiça de Sergipe tinha liberado à venda e circulação, contra a vontade da família, uma biografia não autorizada sobre Virgulino Ferreira, o Lampião. Nessa obra, o autor atribui-lhe a condição de homossexual. Não se entra, tampouco se pretende, debater a homoafetividade no presente artigo. Todavia, o Rei do Cangaço e bandoleiro das terras nordestinas, foi companheiro de Maria Bonita e juntos protagonizaram um dos mais notórios e aventureiros casais da história do Brasil. Habitam até hoje o imaginário popular. São cantados em nosso cancioneiro e descritos em nossa literatura.

Apesar de não ter lido a obra, ao se atribuir a Lampião a condição de homossexual, não há como o autor não por em dúvida a fidelidade deste à Maria Bonita, uma vez que está era mulher e a condição de homossexual pressupõe o envolvimento com homens. Reforça-se, amiúde, que não se pretende discutir a homoafetividade, mas o impacto que esta biografia não autorizada pode causar na memória do casal Lampião e Maria Bonita, bem como sobre seus descendentes, colocando em cheque a união do casal.

Em que pese às netas de Lampião terem conseguido em primeira instância a retirada de circulação dos livros, a decisão foi reformada pelo TJ-SE. Argumentou-se que “as pessoas públicas, por se submeterem voluntariamente à exposição pública, abrem mão de uma parcela de sua privacidade, sendo menor a intensidade de proteção” e que “querer impedir o direito de livre expressão do autor da obra, no caso concreto, caracterizaria patente medida de censura, vedada por nossa Constituinte”.

Com todo respeito aos excelentíssimos Julgadores, se é verdade que não existe direito fundamental absoluto em nossa Constituição, isso inclui a liberdade de expressão, não apenas a proteção à intimidade.

A mesma Constituição que garante a liberdade de expressão veda expressamente o anônimato (artigo 5º, inciso IV), garante o direito de resposta (artigo 5º, inciso V) e protege a intimidade (artigo 5º, inciso X).

O ponto busílis, assim, é estabelecer qual o limite, qual a linha que separa a violação à intimidade e o direito de exposição de terceiros, sob a pecha de liberdade de expressão.

Sou partidário da prevalência da proteção à intimidade, em que pese a tendência atual do direito seja garantir a liberdade de expressão para depois se resolver em perdas e danos. Salvo melhor juízo, não compete à ninguém expor a vida privada de terceiros. Intimidade e vida particular não são do interesse de ninguém, a não ser do próprio indivíduo.

Se a pessoa resolve comentar e abrir sua intimidade ao grande público, por sua espontânea vontade, ela o faz por escolha de seu livre arbítrio e se coloca em situação de risco por exposição demasiada. Assim, arcará com as consequências de seu ato, que poderão ser nefastas e, muitas vezes, moralmente irreparáveis.

Atualmente, confunde-se a notoriedade do trabalho de algumas carreiras com a vida íntima dos profissionais. O fato da pessoa ter como ofício interpretar, atuar, pintar, escrever, esculpir ou ter qualquer forma de trabalho que a exponha ao grande público não se traduz em um cheque em branco para que qualquer um de seus fãs ou admiradores possam devassar sua intimidade.

Entender em contrário é transferir para terceiros o direito de decidir sobre a vida intima do ser humano, usurpando do titular a faculdade e prerrogativa de tornar pública um fato de sua vida privada. Isto porque, a exposição pública de um trabalho, em virtude do ofício abraçado, não se traduz em outorga de direito para que terceiros possam invadir a intimidade dos indivíduos.

Por fim, entendo que o direito à reparação em perdas e danos, sob a forma de indenização pecuniária, jamais compensará o estrago causado na vida da pessoa e de suas famílias. Existem certas condutas que são moralmente irreparáveis. Defender que se publique a obra e se exponha irrestritivamente o terceiro, para que se depois resolva a questão em perdas e danos pecuniários, é, praticamente, acabar com o direito de defesa prévio. Isto porque, reparação moral não se paga com dinheiro. Muitas vezes, não há numerário que cubra o estrago causado na vida do ser humano por uma exposição não autorizada de sua vida íntima, por um fato privado que o interessado não comentou com terceiros, tampouco autorizou que seja do conhecimento do grande público.

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